O Ministro Extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, emitiu há poucos dias idéias genéricas de estudos para melhorar o Brasil a longo prazo. Algumas de suas conjecturas futuristas causaram polêmica em toda a mídia brasileira, sempre dando cunho pejorativo àquelas idéias do ministro.
Causou muita chacota na imprensa a sugestão de futuros estudos para levar água da Amazônia, onde há o desperdício de água lançada no Atlântico, para o Nordeste, onde há carência.
Imagino o ridículo que passou o primeiro romano que há mais e dois mil anos sugeriu a construção de aquedutos que levassem água de regiões distantes para Roma.
Morei em Roma durante mais de dois anos em frente a um belo parque onde há o que restou de um grande e longo aqueduto. Mesmo em ruínas, era impressionante a enorme dimensão daquela construção. Há 2000 anos ele fora construído com uma extensão da ordem de 70 km! E a obra levou menos de 20 anos, e sem os recursos de engenharia e de construção que hoje temos!
Retrato o clima de controvérsia sobre o tema no Brasil transcrevendo a seguir dois artigos da Folha de São Paulo de hoje. O primeiro é o do próprio ministro. O segundo de um crítico, Marcelo Leite. Coloquei trechos em negrito para destacar alguns conceitos, colocados como estímulo ao "brain storming". Achei as idéias do ministro mais consistentes e lógicas do que as do crítico selecionado pela Folha de São Paulo.
1º) "O longo prazo a curto prazo
ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Há toda diferença entre um projeto que paira sobre o mundo e um que intervém. Não há futuro viável que não se possa prefigurar já.
Modelo de desenvolvimento baseado em ampliação de oportunidades econômicas e educativas, para dar braços e asas ao dinamismo frustrado dos brasileiros -é isso o que mais quer a nação. Para construir esse modelo, é preciso formular plano de longo prazo e traduzi-lo em iniciativas tangíveis e prontas: primeiras prestações de outro futuro.
É preciso tratar do longo prazo a curto prazo.
Desse entendimento resultou a decisão de organizar o trabalho inicial de minha pasta em torno de quatro grandes temas: oportunidade econômica, oportunidade educativa, Amazônia e defesa. Para cada um deles, formulamos, em colaboração com os ministros das respectivas áreas e com o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ações que encarnem e antecipem novo modelo de desenvolvimento.
Idéias, quando reforçadas por uma lógica de co-autoria dentro do governo e da sociedade, constituem o primeiro requisito para mudar o país.
Uma das iniciativas de oportunidade econômica é política industrial e agrícola voltada para as pequenas empresas e os empreendimentos emergentes que constituem a maior força de nossa economia. Formação de práticas e de quadros, ampliação do crédito ao pequeno produtor e transferência de tecnologia são as diretrizes.
Outra iniciativa se destina a refazer nosso modelo institucional de relações entre o trabalho e o capital. O Brasil está ameaçado de ficar espremido no mundo entre economias de trabalho barato e economias de produtividade alta. Precisamos escapar dessa prensa pelo lado alto, o da valorização do trabalho e da escalada de produtividade. Não temos futuro como uma China, com menos gente. É essa a preocupação que orienta o esforço de construir, com as centrais sindicais e as lideranças do empresariado, um plano para resgatar mais da metade de nossos trabalhadores da informalidade, reverter a queda da participação dos salários na renda nacional e reorganizar o regime sindical.
Em matéria de oportunidade educativa, são três os programas a que nos dedicamos, junto com os ministros Fernando Haddad (Educação), Sergio Rezende (Ciência e Tecnologia) e Gilberto Gil (Cultura).
Rede de escolas médias federais que, ao fortalecer o elo fraco de nossa rede escolar, também sirva de instrumento para mudar nosso paradigma pedagógico no rumo de ensino analítico e capacitador.
Conjunto de procedimentos para reconciliar a gestão local das escolas pelos Estados e municípios com padrões nacionais de investimento e de qualidade. (A qualidade do ensino que uma criança brasileira recebe não deve depender do acaso do lugar onde ela nasce.)
E programa de inclusão digital que organize infovia nacional, fortaleça as capacitações populares de acesso à rede, estimule a produção de conteúdos nacionais e crie estrutura de governança capaz de dar voz à sociedade civil, não só aos governos e às empresas.
Na Amazônia, o Brasil pode revelar-se ao Brasil.
Zoneamento econômico e ecológico, que tome por pressuposto a resolução das questões fundiárias, é ponto de partida para delinear estratégias econômicas distintas para diferentes partes da Amazônia.
Uma estratégia para a Amazônia já desmatada, onde temos chance para deixar de repetir os erros de nossa formação econômica.
E outra estratégia para a Amazônia com mata, que assegure que a floresta em pé, porém aproveitada de forma controlada e sustentável, valha mais do que a floresta derrubada.
Na defesa, começa esforço vital para nosso futuro. Não há estratégia de desenvolvimento nacional sem estratégia nacional de defesa. A diretriz é reorganizar as Forças Armadas em torno de vanguarda tecnológica e operacional, pautada por cultura de mobilidade e de flexibilidade e baseada em capacitações nacionais.
Essas iniciativas são apenas um começo.
Não asseguram a reconstrução de nossas instituições, necessária para democratizar o mercado e para aprofundar a democracia. Não nos eximem de formular estratégia de desenvolvimento nacional que seja abrangente e de longo prazo. O objetivo de tal estratégia não é tolher nosso futuro; é, pelo contrário, prover a nação de meios para que ela se possa reconstruir experimentalmente.
Há toda diferença, porém, entre projeto que paira sobre o mundo e projeto que intervém no mundo. Não há futuro viável que não se possa prefigurar já.
O bom do Brasil tem sido sua vitalidade. O ruim tem sido seu conformismo. Não basta nos rebelarmos contra a falta de justiça se não nos rebelarmos também contra a falta de imaginação. Vitalidade -vibrante, anárquica, quase cega- já temos. Quando a imaginação der olhos à rebeldia, teremos também grandeza".
OBERTO MANGABEIRA UNGER , 60, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Harvard (licenciado), é ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos e ex-colunista da Folha .
2º) "O ideoduto de Mangabeira
Há grandeza nessa visão da vida amazônica; o que lhe falta é acuidade.
Depois de trocar a aprazível Cambridge, Massachusetts, pela aridez de Brasília, Roberto Mangabeira Unger, o extraordinário ministro de Assuntos Estratégicos, baixou na Amazônia com comitiva de mais de 30 pessoas. Cheio de idéias. Fora de seu lugar natural, pareciam também fora de propósito.
Estava na lista o nome de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, que fez o caminho inverso (dos cafundós do Acre para o Plano Piloto), mas não deu as caras. Deu foi um cano, e logo depois de falar em São Paulo num simpósio... criacionista (mas isso são outros 500).
Assim funciona o governo. Dá na veneta de um ministro formular um plano grandioso para metade do país, e os outros o deixam falando sozinho. É bem verdade que o alcance das idéias de Mangabeira não deve animar ninguém a acompanhá-lo naquela altitude. Nem em pensamento. Sua idéia que mais chamou atenção, a ponto de ocupar manchete de primeira página do jornal "O Globo", foi a de aquedutos para levar água da Amazônia ao Nordeste. Direto da sobra "inútil" para a falta "calamitosa". Simples. Tão simples que o próprio Mangabeira se perguntou se não seria ingênuo. Sua resposta é técnica: novas maneiras de conceber e construir aquedutos. "A razão, porém, acabará por assistir ao ingênuo, não ao técnico. O custo do transporte de água é relativo às tecnologias disponíveis para transportá-la", pontificou. Empreiteiros devem ter aplaudido à beça. Engenheiros contraporiam, em reserva, que distância e valor por peso do bem a transportar também pressionam a equação, mesmo sem lastrear a imaginação. Sendo imponderáveis, não custa nada transportar muitas idéias -por exemplo- de avião. Mangabeira aproveitou o vôo para despejá-las em cascata sobre a comitiva brasiliense e as platéias amazônidas.
Duas mais merecem comentário -uma deslocada, outra desinformada.
O ministro está preocupado com os índios da Amazônia: "Ameaçam afundar na desagregação social e moral -no ócio involuntário, no extrativismo desequipado, no alcoolismo e no suicídio". Para um filósofo e titular de Harvard, a incorreção antropológica soa chocante. Além de não se justificar pelos valores, o dito tampouco se fundamenta em fatos. Pode valer para um ou outro indígena na Amazônia, mas não é a regra para os muitos povos que lá tiveram suas terras demarcadas e homologadas. Decerto se aplica à tragédia dos guaranis em Mato Grosso do Sul, que não fica na Amazônia, no entanto.
Mais alarmante é sua proposta de mobilizar o "potencial energético latente nas árvores -na celulose e na lignina". Em outras palavras, usar a floresta chuvosa para fazer combustível (álcool de madeira). Com "replantio constante das árvores", cuida de esclarecer o ministro. É a prova cabal de que Mangabeira nada entende de mata amazônica. Apenas transfere para elas esquemas mentais lobrigados nos bosques temperados do hemisfério Norte. O potencial energético das árvores amazônicas já é mobilizado -à taxa de mais de 2 milhões de metros cúbicos por ano- na forma de carvão vegetal e ilegal. Tudo para alimentar uma dúzia de usinas de ferro-gusa no Pólo Carajás (Pará). A ferro e fogo, bem no estilo nacional.
Além disso, o filósofo desconhece que o manejo florestal, na Amazônia, prescinde do replantio de árvores. A reposição é feita naturalmente, se forem deixadas produtoras de sementes em densidade suficiente na mata.
Há grandeza nessa visão da vida amazônica. O que lhe falta é acuidade. "
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007).
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