Na matéria que ontem postamos sobre o acordo nuclear firmado sexta-feira última pelo Brasil e pela Argentina, percebe-se escondida nas entrelinhas a ponta de um ferrão com forte veneno.
Na reportagem lá transcrita, de Eleanora Gosman do jornal argentino Clarin, destoa sem fundamento o seguinte trecho nocivo: "Argentina y Brasil producirán juntos uranio enriquecido". Até aí tudo correto. Contudo, ela continua: "Será para vender a terceros países. Es un tema muy sensible internacionalmente". "Como observó una calificada fuente del Palacio San Martín, en una breve charla con Clarín, "la binacional que se formará puede hacer uso de las dos tecnologías y vender el producto al mundo".
Viram? Esses conceitos falsos inseridos sutilmente pela jornalista no texto, baseados numa incógnita fonte do palácio do governo argentino, contaminam propositada e maliciosamente os objetivos formais e explícitos do acordo, que são desenvolver um reator nuclear exclusivamente para aliviar a demanda crescente de energia elétrica nos dois países e, para alimentar o reator, a criação de uma empresa binacional de enriquecimento de urânio. Nada foi firmado ou visa à exportação de urânio enriquecido e de tecnologias nucleares para suspeitos "terceros", conforme teria confidenciado para a jornalista a enigmática fonte do Palácio San Martín na tal "charla"...
Por que esse veneno?
Explico.
Já abordamos com maiores detalhes, em vários artigos postados neste blog, como na década de 90 o Brasil (governado pelo PSDB/PFL/FHC) e a Argentina (presidida por Menem) foram obedientes instrumentos dos interesses dos EUA e das demais grandes potências industrializadas em detrimento dos respectivos interesses nacionais.
As diretrizes aprovadas "consensualmente" em Washington e implantadas no Brasil e na Argentina na década de 90, estavam, inclusive, em harmonia com a estratégia norte-americana de impedir a difusão de tecnologias em outros países. Impedir, para assim, cada vez mais, crescer a preeminência relativa dos EUA nos campos tecnológico e econômico.
Por quê? Porque essas tecnologias, especialmente a nuclear e a espacial, aumentam muito o valor agregado dos produtos nacionais. Há consenso entre os especialistas de que elas trazem de volta para a economia nacional mais de 10 vezes o valor nelas investido.
Elas "desarrumam a nova ordem mundial". Sob a ótica dos EUA e das demais potências já industrializadas, eles devem sempre exportar para nós produtos de alto valor agregado e nós devemos somente exportar para eles produtos agrícolas e matérias-primas, com baixíssimos valores por quilograma. Assim, eles sempre serão os ricos e nós sempre seremos os úteis periféricos submissos.
O jornalista Carlos Heitor Cony já escreveu no jornal Folha de São Paulo de 18/07/2004: "Documento do Congresso (dos EUA) orienta o FMI para garantir a hegemonia nuclear para os EUA e para os atuais detentores dessa tecnologia, impedindo que outros países venham a ter condições de também se beneficiar da referida tecnologia".
O FMI também era um dos instrumentos para nos impor os interesses dos EUA no Brasil.
Na década de 90, especialmente (e até hoje), muitas autoridades nacionais e segmentos da imprensa no Brasil agiam como se não percebessem isso e estivessem, ingênua ou dolosamente, a mando do grande, muito rico e muito armado "irmão do norte". Até reforçavam, multiplicavam, as pressões evidentes do governo dos EUA contra o nosso avanço em áreas de alta tecnologia, como a nuclear e a dos projetos espaciais.
Até mesmo altos dirigentes nacionais, com grande louvação da imprensa, propugnavam que a pesquisa e o desenvolvimento (P&D) no Brasil, na "nova e moderna ótica", deveriam ser encargos não do Estado, mas exclusivamente da empresa privada. O Estado deveria ser "mínimo, enxuto".
Porém, não nos explicavam que, como as grandes empresas "nacionais" foram vendidas e passaram naquela década a ser filiais de multinacionais estrangeiras, que hoje respondem por mais de 65% das "nossas" exportações, elas aqui não faziam P&D, atividade com mão-de-obra qualificada, nobre, recompensadora, reservada à matriz no exterior.
Uma das eficientes maneiras que os EUA utilizam para inibir o desenvolvimento dessas tecnologias em outros países é lançar mentirosamente a suspeição de que esses outros países querem é fazer bombas atômicas ou exportar essas tecnologias para terceiros países, muitos deles apoiadores de terroristas. A citada matéria do Clarín deu sua pequena contribuição para essa maligna difamação.
Apesar de tudo que já fizeram (ex.: Hiroshima e Nagasaki), os EUA ainda conseguem passar uma imagem de ativos defensores da não-proliferação nuclear em prol da paz, da democracia e da liberdade. São muito bons de mídia.
Ao contrário dos EUA e das demais potências atômicas, o Brasil e a Argentina têm fins nucleares exclusivamente pacíficos, especialmente a produção de energia elétrica. Além disso, ambos os países já consolidaram e praticam uma política de total transparência. Todas as instalações brasileiras e argentinas com projetos nucleares são submetidas a inspeções regulares pelas organizações fiscalizadoras dos dois países. Também, somos fiscalizados por organizações internacionais, como a AIEA, integradas inclusive por técnicos norte-americanos.
Os EUA, e os demais do G-7, que têm capacidade bélica nuclear, exigem e participam dessas fiscalizações, mas não as permitem em seus territórios.
Os acordos claramente pacíficos e transparentes firmados pelo Brasil e Argentina já vêm de longe.
Cito o Decreto nº 88.946, de 07/11/1983, assinado pelo presidente João Figueiredo. Ele promulgou o Acordo de Cooperação para o Desenvolvimento e a Aplicação dos Usos Pacíficos da Energia Nuclear entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Argentina.
Mais tarde, outros acordos foram consolidando os laços entre os dois países naquela área. Baseado em texto extraído do site http://www.geocities.com/kurtdennis/brasarg.htm, recordo que a aliança nuclear Brasil-Argentina foi, pouco a pouco, eliminando os falsos e malignos preconceitos. Foi no governo Sarney que o Brasil começou a melhorar em termos mais práticos as relações com a Argentina. Foram feitos acordos, como o que permite a fiscalização recíproca dos estudos sobre a tecnologia nuclear. Quando cada um dos dois países parou de ter medo um do outro, medo de o outro estar preparando uma bomba nuclear, o Brasil e a Argentina puderam começar a construção do Mercosul.
Em 18 de julho de 1991, foi assinado mais um acordo bilateral. O que permite inspeções mútuas em instalações nucleares e estabelecem a "Argentine-Brazilian Accounting and Control Commission (ABACC)", Agência Argentina-Brasil para Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares, com sede no Rio de Janeiro, para inventariar combustível nos dois países. Naquele mesmo ano, em Viena, em 13 de dezembro de 1991, foi assinado o Acordo de Salvaguardas Abrangentes ou Quadripartite entre os Governos do Brasil, Argentina, ABACC e AIEA.
As inspeções começaram nos dois países em 4 de março de 1994, porque o Congresso Nacional somente aprovou o acordo em 25 de fevereiro de 1994. O argentino o fizera em 5 de agosto de 1992.
Durante 1995, a AIEA terminou o levantamento de material nuclear e de instalações no Brasil. Para exemplificar o real funcionamento do acordo, cito que já no ano seguinte, 1996, a ABACC fez 81 inspeções.
O acordo assinado sexta-feira última pelos presidentes Lula e Cristina Kirchner, significa um grande avanço no sentido mais prático, o de geração de energia elétrica.
Assim, todo o relacionamento brasileiro-argentino na área nuclear tem sido construído seriamente, passo a passo, com fins pacíficos e transparentes. Não dão margem a qualquer especulação maliciosa, venenosa, como a agora feita pela jornalista do Clarín.
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