No blog “De um sem-mídia” (ver em "recomendamos") li hoje (26/04) um interessante artigo sobre diversos paradoxos encontrados ao longo da história da humanidade.
O autor é o escritor e jornalista uruguaio Eduardo Hughes Galeano, nascido em Montevidéu em 3 de setembro de 1940.
O texto foi extraído, pelo blog de “um sem-mídia”, do blog “Abaixo e à esquerda”.
Vejamos o texto de Galeano:
“O PARADOXO AMBULANTE”
“A cada dia, lendo os jornais, assisto a uma aula de história. Os jornais me ensinam pelo que dizem e pelo que calam.
A história é um paradoxo ambulante. A contradição move-lhe as pernas.
Talvez por isso seus silêncios dizem mais que suas palavras, e com freqüência suas palavras revelam, mentindo, a verdade.
Daqui a pouco será publicado meu livro que se chama “Espejos” (“Espelhos”). É algo assim como uma história universal, e perdão pelo atrevimento. "Eu posso resistir a tudo, menos à tentação", dizia Oscar Wilde, e confesso que sucumbi à tentação de contar alguns episódios da aventura humana no mundo, desde o ponto de vista dos que não saíram na foto. Para dizer de outra maneira, trata-se de fatos não muito conhecidos.Aqui resumo alguns, apenas alguns.
Quando foram desalojados do Paraíso, Adão e Eva mudaram-se para a África, não a Paris. Algum tempo depois, quando seus filhos já haviam se lançado nos caminhos do mundo, inventou-se a escrita. No Iraque, não no Texas.Também a álgebra foi inventada no Iraque. Fundou-a Mohamed al Jwarizmi, há mil e duzentos anos, e as palavras algorítmo e algarismo derivam de seu nome.
Os nomes costumam não coincidir com o que nomeiam.
No Museu Britânico, tomemos como exemplo as esculturas do Partenon que se chamam "mármores de Elgin", mas são mármores de Fídias. Elgin era o nome do inglês que as vendeu ao museu.
As três novidades que tornaram possível o Renascimento europeu, a bússola, a pólvora e a imprensa, haviam sido inventadas pelos chineses, que também inventaram quase tudo o que a Europa reinventou.
Os hindus sabiam antes de qualquer um que a Terra era redonda e os maias haviam criado o calendário mais exato de todos os tempos.
Em 1493, o Vaticano presenteou a Espanha com a América e obsequiou a África negra a Portugal, "para que as nações bárbaras sejam reduzidas à fé católica". Então, a América tinha quinze vezes mais habitantes que a Espanha, e a África negra cem vezes mais que Portugal.
Tal como havia determinado o Papa, as nações bárbaras foram reduzidas. E muito.
Tenochtitlán, o centro do império asteca, era de água. Hernán Cortés demoliu a cidade, pedra por pedra, e com os escombros tapou os canais por onde navegavam duzentas mil canoas. Esta foi a primeira guerra da água na América. Agora Tenochtitlán chama-se México DF. Por onde corria a água, correm os automóveis.
O monumento mais alto da Argentina foi erigido em homenagem ao general Roca, que no século dezenove exterminou os índios da Patagônia.
A maior avenida do Uruguai leva o nome do general Rivera, que, no século dezenove, exterminou os últimos índios charruas.
John Locke, o filósofo da liberdade, era acionista da Royal Africa Company, que comprava e vendia escravos.
Enquanto nascia o século dezoito, o primeiro dos Bourbons, Felipe V, estreou seu trono assinando um contrato com seu primo, o rei da França, para que a Compagnie de Guinée vendesse negros na América. Cada monarca levava uns 25 por cento do lucro. Nomes de alguns navios negreiros: Voltaire, Rousseau, Jesus, Esperança, Igualdade, Amizade.
Dois dos Pais Fundadores dos Estados Unidos desvaneceram-se na névoa da história oficial. Ninguém recorda de Robert Carter nem de Gouverner Morris. A amnésia recompensou seus atos. Carter foi o único prócer da independência que libertou seus escravos. Morris, redator da Constituição, opôs-se à cláusula que estabeleceu que um escravo equivalia às três quintas partes de uma pessoa.
"O nascimento de uma nação", a primeira superprodução de Hollywood, estreou em 1915, na Casa Branca. O presidente, Woodrow Wilson, aplaudiu-a em pé. Ele era o autor dos textos do filme, um hino racista de louvor a Ku Klux Klan.
Algumas datas: Desde o ano 1234, e durante os sete séculos seguintes, a Igreja Católica proibiu que as mulheres cantassem nos templos. Suas vozes eram impuras, por aquele assunto de Eva e o pecado original.
No ano 1783, o rei da Espanha decretou que não eram desonrosos os trabalhos manuais, os chamados "ofícios vis", que até então implicavam perda da fidalguia.
Até o ano 1986, foi legal o castigo das crianças nas escolas da Inglaterra, com correias, varas e porretes.
Em nome da liberdade, a igualdade e a fraternidade, a Revolução Francesa proclamou em 1793 a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Então, a militante revolucionária Olympia de Gouges propôs a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. A guilhotina cortou-lhe a cabeça.
Meio século depois, outro governo revolucionário, durante a Primeira Comuna de Paris, proclamou o sufrágio universal. Ao mesmo tempo, negou o direito de voto às mulheres, por unanimidade menos um: 899 votos contra, um a favor.
A imperatriz cristã Teodora nunca disse ser revolucionária, nem algo no estilo. Mas, há mil e quinhentos anos, o império bizantino foi, graças a ela, o primeiro lugar do mundo onde o aborto e o divórcio foram direitos das mulheres.
O general Ulisses Grant, vencedor na guerra do norte industrial contra o sul escravista, foi a seguir presidente dos Estados Unidos. Em 1875, respondendo às pressões britânicas, respondeu:– Dentro de duzentos anos, quando obtivermos do protecionismo tudo o que nos pode oferecer, nós também adotaremos a liberdade de comércio.
Assim, pois, no ano 2075, a nação mais protecionista do mundo adotará a liberdade de comércio.
Lootie, "Botincito", foi o primeiro cão pequinês que chegou à Europa. Viajou para Londres em 1860. Os ingleses batizaram-no desse modo porque era parte do botim arrancado da China, ao cabo das duas longas guerras do ópio. Vitória, a rainha narcotraficante, impusera o ópio a tiros de canhão. A China foi convertida em uma nação de drogados, em nome da liberdade, a liberdade de comércio.
Em nome da liberdade, a liberdade de comércio, o Paraguai foi aniquilado em 1870. No fim de uma guerra de cinco anos, este país, o único país das Américas que não devia um centavo a ninguém, inaugurou sua dívida externa. Às suas ruínas fumegantes chegou, de Londres, o primeiro empréstimo. Foi destinado a pagar uma enorme indenização para o Brasil, a Argentina e o Uruguai. O país assassinado pagou aos países assassinos pelo trabalho que tiveram assassinando-o.
O Haiti também pagou uma enorme indenização. Desde que, em 1804, conquistou sua independência, a nova nação arrasada teve que pagar uma fortuna à França, durante um século e meio, para expiar o pecado de sua liberdade.
As grandes empresas têm direitos humanos nos Estados Unidos. Em 1886, a Suprema Corte de Justiça estendeu os direitos humanos às corporações privadas, e assim segue sendo. Poucos anos depois, em defesa dos direitos humanos de suas empresas, os Estados Unidos invadiram dez países, em diversos mares do mundo. Então, Mark Twain, dirigente da Liga Antiimperialista, propôs uma nova bandeira, com caveirinhas no lugar de estrelas, e outro escritor, Ambrose Bierce, comprovou:– A guerra é o caminho que Deus elegeu para nos ensinar geografia.
Os campos de concentração nasceram na África. Os ingleses iniciaram o experimento, e os alemães o desenvolveram. Depois Hermann Göring aplicou, na Alemanha, o modelo que seu papai havia ensaiado, em 1904, na Namíbia. Os mestres de Joseph Mengele haviam estudado, no campo de concentração da Namíbia, a anatomia das raças inferiores. Todos os negros eram cobaias.
Em 1936, o Comitê Olímpico Internacional não tolerava insolências. Nas Olimpíadas de 1936, organizadas por Hitler, a seleção de futebol do Peru derrotou por 4 a 2 a seleção da Áustria, o país natal do Führer. O Comitê Olímpico anulou a partida. Não faltavam amigos para Hitler.
A Rockefeller Foundation financiou investigações raciais e racistas da medicina nazi.
A Coca-Cola inventou a Fanta, em plena guerra, para o mercado alemão.
A IBM tornou possível a identificação e classificação dos judeus, e esta foi a primeira façanha em grande escala do sistema de cartões perfurados.
Em 1953, explodiu o protesto operário na Alemanha comunista. Os trabalhadores lançaram-se às ruas e os tanques soviéticos ocuparam-se em lhes calar a boca. Então Bertolt Brecht propôs: “Não seria mais fácil o governo dissolver o povo e escolher outro?”
Operações de marketing. A opinião pública é o target. As guerras vendem-se mentindo, como se vendem os automóveis.
Em 1964, os Estados Unidos invadiram o Vietnã, porque o Vietnã havia atacado dois navios dos Estados Unidos no golfo de Tonquin. Quando a guerra já havia destripado a uma multidão de vietnamitas, o ministro de Defesa, Robert McNamara, reconheceu que o ataque de Tonquin não existira.
Quarenta anos depois, a história se repetiu no Iraque. Milhares de anos antes que a invasão norte-americana levasse a civilização ao Iraque, nesta terra bárbara havia nascido o primeiro poema de amor da história universal. Em língua suméria, escrito no barro, o poema narrou o encontro de uma deusa e um pastor. Inanna, a deusa, naquela noite amou como se fosse mortal. Dumuzi, o pastor, foi imortal enquanto durou essa noite.
Paradoxos ambulantes, paradoxos estimulantes.
O Aleijadinho, o homem mais feio do Brasil, criou as mais belas esculturas da era colonial americana.
O livro de viagens de Marco Polo, aventura da liberdade, foi escrito no cárcere de Gênova.
Dom Quixote de La Mancha, outra aventura da liberdade, nasceu no cárcere de Sevilha.
Foram netos de escravos os negros que geraram o jazz, a mais livre das músicas. Um dos melhores guitarristas de jazz, o cigano Django Reinhardt, tinha não mais que dois dedos em sua mão esquerda.
Não tinha mãos Grimod de la Reynière, o grande mestre da cozinha francesa. Com ganchos escrevia, cozinhava e comia.”
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