O jornal “O Estado de São Paulo” de ontem publicou com o título acima uma interessante entrevista de Carlos Marchi com Mozart Valadares Pires, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
O tema principal da entrevista é oportuno, considerando o muito estranho comportamento do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, na sua flagrante obstinada defesa do banqueiro Daniel Dantas, ora investigado pela Polícia Federal por muitas e gigantescas ações criminosas.
Transcrevo:
“Os corruptos, diz, apostam na impunidade, confiando na ineficiência do Judiciário e de legislação que oferece prazos excessivos”
“Uma das origens da impunidade no Brasil está na legislação que favorece a manobra e a chicana jurídica, retardando a limites extremos a tramitação dos processos, afirma o juiz Mozart Valadares Pires, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). A outra é que o Estado brasileiro é ''propício à corrupção''.
Os corruptos, diz ele, apostam na impunidade confiando na ineficiência do Judiciário e de uma legislação que oferece facilidades, garante prazos excessivos e lhes assegura, quase sempre, que não serão julgados em vida, tal o número de recursos que possibilita.
Valadares preconiza duas ações imediatas para vencer a corrupção. Uma é a mudança da legislação, reduzindo a possibilidade de recursos judiciais sem sacrificar o amplo direito de defesa e sem arranhar o princípio do contraditório. Outra é que o País adote, em todos os graus da Justiça, prioridade para julgar os casos de corrupção que tenham envolvimento de agentes públicos.
O juiz admite excessos nas ações da Polícia Federal, mas prefere realçar seus méritos, frisando que ela eliminou ''quadrilhas enraizadas no Estado''. Ele sublinha: ''Em alguns momentos, não conseguíamos distinguir o que era marginalidade do que era Estado.'' Eis a íntegra da entrevista:
IMPUNIDADE É UMA QUESTÃO DE LEI OU DEPENDE DE VONTADE POLÍTICA?
A impunidade não depende da vontade política, nem é apenas uma questão de lei. É que o Estado não tem como dar resposta rápida às questões que provocam o sentimento de impunidade. Temos uma estrutura arcaica e um excesso de ações. Não temos uma defensoria pública estruturada, não temos um número suficiente de juízes e promotores. No ano passado, o STF julgou perto de 150 mil processos. Isso não existe em país algum.
ONDE COMEÇAM OS PECADOS DA LEGISLAÇÃO?
Nossa legislação peca pelo excesso de formalismo, oferece um excessivo número de recursos judiciais. Tudo isso contribui para a morosidade do Judiciário. E a morosidade contribui decisivamente para o sentimento de impunidade. Os dados são alarmantes. Quarenta por cento da população carcerária são presos provisórios, não foram julgados. Muitos deles, quando forem julgados, e se forem condenados, talvez já tenham pago a pena. Isso acontece porque são pessoas pobres, e o Estado não oferece uma defensoria para acompanhar os casos e protestar por um processo ágil. O Judiciário pode ter a sua parcela de culpa, mas a morosidade não pode ser atribuída única e exclusivamente a nós.
O SR. ACHA QUE A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA PERMITE RECURSOS EM EXCESSO?
Sem dúvida. A um simples despacho de um juiz, já cabe recurso. É agravo de instrumento, é agravo regimental, é agravo retido, é embargo de declaração, é apelação. Existe um número infinito de recursos que impedem a tramitação normal do processo.
POR QUE RICO NÃO FICA NA CADEIA NO BRASIL?
Porque o rico tem condições financeiras para constituir bons advogados, que conhecem em profundidade a legislação. E a legislação favorece a manobra, a chicana jurídica, o que faz com que o processo não tenha uma tramitação célere. A legislação permite que réus confessos, condenados no primeiro grau ou pelo tribunal do júri, recorram em liberdade.
ATÉ ONDE A INFLUÊNCIA POLÍTICA PODE FUNCIONAR PARA QUE SE ADIE A PRISÃO DE UM CORRUPTO BRASILEIRO?
Vejo uma mudança substancial na questão do tráfico de influência. A Polícia Federal vem dando uma contribuição valiosa no combate à corrupção. O Ministério Público também vem se comportando de maneira altiva. Recentemente, o STF recebeu por unanimidade uma denúncia que envolvia pessoas de alto poder na República, que antes jamais seriam atingidas e hoje são réus perante o STF. Isso é uma demonstração de que o País caminha para combater seriamente a corrupção e tratar todos os brasileiros de forma igual.
OS GRANDES GOLPES DO COLARINHO BRANCO TÊM SEMPRE O ENVOLVIMENTO DE UM AGENTE PÚBLICO CORROMPIDO. COMO CONTROLAR MELHOR ISSO?
Acima de tudo, a sociedade exige uma reforma política que traga mais clareza e fortaleça os partidos políticos. Não podemos aceitar a existência de legendas de aluguel, partidos que apóiam o governo para lotear cargos públicos em estatais. O que passa a existir é uma relação de troca de favores - e não uma relação institucional -, que facilita por demais esse tipo de atividade ilícita. Temos de buscar uma relação em que o Legislativo cumpra a sua missão constitucional de legislar e fiscalizar o Executivo, e o Executivo realize seus programas e obras. E não ter um poder que funciona como um apêndice do outro.
O ambiente que temos no Estado é propício à corrupção. Os corruptos apostam na impunidade, na ineficiência do Judiciário e na legislação que lhes dá facilidades, prazos excessivos que lhes permitem o conforto de não serem julgados em vida, tal o número de recursos que seus advogados poderão invocar na Justiça. Tudo isso facilita que pessoas com esse perfil pratiquem crimes contra o erário público.
O PRESIDENTE DO STF, GILMAR MENDES, FALOU EM ''ESPETACULARIZAÇÃO'' DA MISSÃO DE POLÍCIA. O PRESIDENTE DO SENADO, GARIBALDI ALVES, FALOU EM ''USO ABUSIVO DE ALGEMAS''. ESSAS CRÍTICAS SÃO JUSTAS?
Nenhum brasileiro desconhece a contribuição que a Polícia Federal vem dando ao País, ao eliminar algumas quadrilhas que estavam enraizadas no Estado brasileiro. Em alguns momentos, nós não conseguíamos distinguir o que era marginalidade do que era Estado. A Polícia Federal deu essa contribuição à Nação. Isso é um mérito. Não podemos desqualificar o mérito maior por algum excesso cometido. Não podemos admitir que alguém que esteja incomodado ou que tenha interesses contrariados possa desqualificar o mérito maior por causa de algum excesso cometido. É óbvio que algemas só devem ser usadas quando um acusado resiste. Fora disso, são totalmente desnecessárias. Em alguns casos, vimos que a Polícia Federal usou algemas desnecessariamente. Não podemos generalizar, dizendo que isso é feito pela Polícia Federal. Alguns agentes podem cometer excessos, mas não a instituição.
COMO OS CASOS TÊM SE REPETIDO, NÃO SERIA O CASO DE DIZER QUE ALGEMAR O RICO QUE É PRESO MAIS PARECE UMA FORMA DE FAZÊ-LO EXPIAR ANTECIPADAMENTE UMA PENA QUE ELE NÃO VAI CUMPRIR?
Um segmento social do Brasil gosta dessa atitude da Polícia Federal exatamente pelo sentimento de impunidade que existe em relação a algumas classes privilegiadas. Mas nós vivemos num Estado Democrático de Direito, temos uma Constituição vigente, e essa Constituição protege todos os cidadãos, independente do poder econômico ou do poder político. Não poderemos praticar excessos nem contra o rico nem contra o pobre.
É ÉTICO E LEGAL QUE A POLÍCIA FEDERAL FILME A PRISÃO E EM SEGUIDA DISTRIBUA O VÍDEO A CERTAS EMISSORAS DE TV?
Absolutamente. Nem vazar para uma empresa jornalística nem filmar e depois ceder com exclusividade para uma empresa. Não cabe à Polícia Federal esse tipo de comportamento, que é aético e criminoso.
E SE UM JORNAL DESCOBRIR UMA AÇÃO POLICIAL E REPORTÁ-LA - ISSO É PERMITIDO OU CONSTITUI ABUSO CONTRA A PRIVACIDADE DO PRESO, SEJA ELE RICO OU POBRE?
Algumas medidas têm de ser sigilosas. Mas, se um jornal descobre que está sendo feita uma investigação, tem todo o direito de prestar essa informação a seu público, de tentar arrancar o máximo de informações sobre ela. Não vejo qualquer crime ou qualquer atitude aética de um jornalista que tenha descoberto uma investigação e a divulgue para a sociedade.
A POLÍCIA FEDERAL DEVE SER COMPLETAMENTE AUTÔNOMA? ELA JÁ FOI MANOBRADA PELO GOVERNO?
É possível que isso tenha ocorrido com algum membro da corporação, mas não com a Polícia Federal como instituição. O nosso modelo é ideal, subordinando a Polícia Federal ao Ministério da Justiça. Não vejo aí qualquer arranhão ao conceito de imparcialidade. Quanto aos excessos, o Estado brasileiro tem mecanismos para combater os desvios de conduta, quando eles ocorrerem.
DEPOIS DE ALGUNS VAZAMENTOS SOBRE SUPOSTAS IRREGULARIDADES DE MEMBROS DO JUDICIÁRIO, O MINISTRO GILMAR MENDES DISSE QUE A POLÍCIA FEDERAL TENTA FAZER ''CONTROLE IDEOLÓGICO'' DOS JUÍZES. ISSO EXISTE?
Primeiro, não pode haver vazamentos. A Polícia Federal não tem competência para vazar qualquer tipo de informação. A informação só é colhida, em casos como quebra de sigilo, por autorização judicial. Assim também devem ser as eventuais liberações de informações coletadas no processo.
O STF TEM SIDO ACUSADO DE ADOTAR DECISÕES LEGIFERANTES, PRINCIPALMENTE NAS QUESTÕES PARTIDÁRIAS. EM TROCA, O LEGISLATIVO TEM APROVADO LEIS QUE DESFAZEM A DECISÃO DO STF, PARA MANTER BENEFÍCIOS QUE INTERESSAM AOS POLÍTICOS. ONDE ISSO VAI ACABAR?
Eu não vejo usurpação do STF em relação ao Legislativo. Em momento nenhum consegui identificar que o STF estivesse desempenhando papel reservado ao Legislativo. O que o STF e o TSE decidiram sobre questões partidárias, em especial sobre a fidelidade partidária, foram apenas interpretações da legislação, em resposta a consultas feitas por partidos brasileiros.
A IMPUNIDADE COMEÇA NO FORO PRIVILEGIADO?
Com certeza. Temos dados que mostram que não há celeridade de julgamento para os que têm foro privilegiado. O que é até uma contradição, porque, se eles têm foro privilegiado, a ação já começa na última instância e eles não teriam outra instância para reexaminar a questão. Por que isso ocorre? Nós temos, nos tribunais superiores, uma quantidade enorme de processos. Não há mais tempo para julgar; há tempo para decidir. O volume de processos, a falta de tradição dos tribunais superiores no colhimento da prova, no interrogatório e na oitiva de testemunhas faz com que os processos não tenham a celeridade desejada. Veja o caso do mensalão. Só agora, com o recebimento da denúncia, deu-se o pontapé inicial da ação penal. Nenhuma testemunha foi ouvida, nenhuma nova prova material foi ainda colhida.
A AMB ESTÁ DEFENDENDO QUE OS PROCESSOS DE CORRUPÇÃO PÚBLICA TENHAM PRIORIDADE DE JULGAMENTO. A IDÉIA É FAZER ISSO EM TODAS AS INSTÂNCIAS?
Em todas as instâncias. Desde o primeiro grau até o STF. Nós precisamos julgar essas pessoas, precisamos combater a corrupção com muita eficiência. A experiência do Rio Grande do Sul, que tem uma câmara criminal só para julgar prefeitos e vereadores, funciona, e funciona muito bem. Daríamos um salto de qualidade e diminuiríamos o sentimento de impunidade.
É EXEQÜÍVEL PENSAR NUM ESFORÇO NACIONAL PARA REDUZIR OS RECURSOS, MANTENDO O GRAU DE JUSTIÇA NOS JULGAMENTOS?
É possível. O ministro Tarso Genro, no dia da promulgação das alterações no Código de Processo Penal, garantiu que o Ministério da Justiça, através da Secretaria da Reforma do Judiciário, está aprofundando estudos para adequar a nossa legislação aos anseios da sociedade, sem sacrificar a ampla defesa e o princípio do contraditório.
COMO O SR. EXPLICA OS DESENCONTROS DAS DECISÕES DO MINISTRO MENDES E DO JUIZ FAUSTO DE SANCTIS, QUE LEVOU A ESSE PRENDE-SOLTA?
Eu não me pronuncio sobre decisões judiciais. Assim como um ministro do STF não pode manifestar censura a um juiz de primeira instância, eu não posso censurar a decisão de um ministro do STF. Só se pode discordar de uma decisão judicial interpondo um recurso à instância superior.
O QUE O SR. DIZ DO PEDIDO ENCAMINHADO PELO MINISTRO MENDES AO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, SOLICITANDO QUE O JUIZ DE SANCTIS SEJA INVESTIGADO?
É inadmissível. Nenhum juiz pode sofrer constrangimentos quando está no exercício de sua função, venha de onde vier. Se um juiz se convence das provas, deve ter liberdade para proferir a sua decisão.”
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