quarta-feira, 24 de setembro de 2008

CEM ANOS DA MORTE DE MACHADO DE ASSIS

OS DOUTORES DO POVO

O jornal Folha de São Paulo ontem publicou o interessante artigo sobre Machado de Assis, Guimarães Rosa, Noel Rosas, Cartola e outros. Agora em setembro, se completam os cem anos da morte de Machado de Assis. O autor do artigo, Cássio Schubsky, é formado em direito pela USP e em história pela PUC-SP, editor e historiador, é co-autor, com Miguel Matos, do livro "Doutor Machado - o Direito na Vida e na Obra de Machado de Assis".

Machado de Assis e Cartola, em artes distintas, têm em comum a origem humilde e o autodidatismo radical

Este ano de 2008 está se celebrizando pela enorme quantidade de efemérides, de datas que ensejam reflexão ou comemoração. O que é bastante animador, sobretudo em um país estigmatizado pela memória curta, pela amnésia coletiva, pelo vergonhoso descaso com a preservação do patrimônio histórico e cultural.

O cardápio de marcos históricos contempla variados gostos: dos 200 anos da chegada da família real portuguesa, passando pelo cinqüentenário da conquista da Copa da Suécia de futebol, sem falar no centenário da imigração japonesa, incluindo os 50 anos da bossa nova, os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos ou os 20 anos da promulgação da Constituição e os 40 anos da decretação do hediondo ato institucional nº 5 -para resumir os exemplos.

Alguns centenários recaem sobre expoentes da cultura brasileira. Ainda em setembro, irão se completar os cem anos da morte de Machado de Assis, caso em que os festejos poderiam até ser dispensados, pois a comemoração da obra do escritor é permanente, não carece de data redonda -Machado é sempre cultuado.

Em outubro será a vez de celebrar o centenário de nascimento do cantor e compositor Cartola. Este, sim, legítimo representante do que se poderia chamar de "bossa velha", merece mais festa e, até agora, quase nada, apenas um sambinha aqui, outro ali...

Machado de Assis e Cartola, em artes distintas, têm em comum a origem humilde e o autodidatismo radical -não freqüentaram escolas ou as freqüentaram muito pouco. Apesar disso, se destacam pela elevada qualidade artística no manejo da palavra.

Cariocas da gema, os dois são exímios intérpretes da alma humana, com um refinamento intelectual que dá realmente o que pensar. Longe de mim a blasfêmia, mas parece que a qualidade da elaboração lingüística dos dois gênios da cultura brasileira não resulta de inspiração divina -ao menos não só dela. Tampouco da educação formal obtida em sala de aula. De todo modo, se a verve é fruto da sensibilidade, o vocabulário escorreito é proveniente de algum esforço de aprendizado -se não por meio de livros, por outro qualquer, transmissão oral, talvez.

Há quem especule que, no caso de Machado de Assis, a esposa, Carolina, teria sido uma boa professora -além de revisora de seus livros. O escritor, que foi fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, conviveu com luminares da inteligência nacional, com quem certamente pôde enriquecer seu repertório cultural. Pouco importa.

Quem, afinal, saberá explicar o dom do gênio? E quanto a Guimarães Rosa, cuja data de nascimento completou cem anos também em 2008? Não é justamente o contrário de Cartola e Machado, com sua linguagem empolada, intrincada, cheia de salamaleques? Lembremos que o autor de "Grande Sertão: Veredas" era um poço de erudição, homem bem-nascido e bem-criado, diplomata, poliglota, médico. Como diria Riobaldo, um dos mais notáveis personagens do autor mineiro: "É fácil pensar mal, pois essa vida é embrejada". Quer dizer, o que é não é só o que parece que é.

João Guimarães Rosa floreava seus textos com riqueza de neologismos e influência de línguas estrangeiras, mas a seiva de sua linguagem residia na sabedoria popular de Manuelzão, Riobaldo, Augusto Matraga e de tantos outros tipos literários inspirados em gente de carne e osso, cujas idéias e modo de falar sertanejo o escritor transplantou para suas obras. Em certa medida, é possível dizer -como Cartola- que o Rosa não fala, porque quem fala mesmo, em seus livros, é o matuto.

Por tudo isso, tendo nascido ou morrido há cem anos, Cartola, Machado e Guimarães Rosa são, verdadeiramente, doutores do povo brasileiro. Ou, melhor dizendo, doutores em povo brasileiro.

Noel Rosa -centenário de nascimento daqui a dois anos- cantou em versos a supremacia da inspiração popular, ensinando que, "na Vila Isabel, quem é bacharel não tem medo de bamba". Estudante de medicina, Noel sabia que "batuque é um privilégio, ninguém aprende samba no colégio".

O Brasil é um país abençoado em termos de sensibilidade artística e talento intelectual, um celeiro de Cartolas, Machados e Rosas. Com mais estímulo educacional, crescerá a chance de aparecerem exímios artistas em série, e não como fenômenos de desassombro pessoal.

Seja como for, os doutores do povo brasileiro, inspirados e criativos, espalhados pelo país afora, tirando leite de pedra, labutando no dia-a-dia, merecem nossas melhores homenagens.

Com centenários ou sem centenários.

Entendeu, seu dotô?!”

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