No portal UOL li o seguinte texto de Javier Valenzuela do jornal espanhol El País, traduzido por Luiz Roberto Mendes Gonçalves:
“A Espanha carece de uma política de Estado para os mais de 45 milhões de hispânicos dos EUA, uma comunidade chave nas próximas eleições e no futuro desse país. Uma relação mais estreita seria mutuamente vantajosa”
“Poucos compatriotas de Obama e McCain sabem que o primeiro europeu que pisou o solo do que hoje conhecemos como EUA foi um espanhol: Juan Ponce de León, em 1513, nas costas da Flórida. Ou que a cidade americana mais antiga é San Agustin, na Flórida, fundada em 1565. Ou que o nascimento de Santa Fe (Novo México) foi anterior à chegada a Massachusetts, em 1620, do navio inglês Mayflower com seus peregrinos.
Escritos a partir do anglocentrismo, os manuais americanos ignoram a história de um terço desse país. Mas quantos conhecem esses fatos na própria Espanha? Poucos, muito poucos.
O espanhol não é nenhuma novidade nos EUA, embora a maioria de seus habitantes, educados em uma mitologia estritamente branca, anglo-saxã e protestante (wasp), o desconheça. Os ancestrais de muitos hispânicos do Novo México, Texas ou Califórnia viviam ali muito antes da independência americana (1776). Como dizem achando graça, não é que eles atravessaram a fronteira, foi a fronteira que os atravessou quando em 1847 os jovens Estados Unidos anglos arrebataram ao México a metade setentrional de seu território.
Há pouco tempo soubemos que a valenciana Noelia Zanón tinha sido contratada para cantar os temas em castelhano da campanha de Obama.
Aqui houve alguns risos a respeito (quem é Noelia Zanón?) e nenhuma reflexão sobre o fundo do assunto: por que o Partido Democrata escolhe uma espanhola para se dirigir aos eleitores latinos? E, sobretudo, a Espanha pode desempenhar um papel no universo das comunidades hispânicas ao norte do rio Bravo?
Calcula-se que em 4 de novembro cerca de 10 milhões de latinos irão às urnas. A maioria deles, 3 em cada 5, parece inclinada por Obama; é o presidente poeta, como o chamou Ariel Dorfman. Mas essa é só a ponta de um grande iceberg. Os hispânicos, 45 milhões de pessoas no mínimo, já são a primeira minoria dos EUA, 15,1% da população, segundo o centro de pesquisas Pew. E o castelhano, usado por Obama e McCain para divulgar mensagens eleitorais, não é só a segunda língua dos EUA como esse país é o segundo de fala hispânica no mundo, depois do México e à frente da Espanha e da Colômbia.
É verdade que os hispânicos constituem um mosaico. Suas divisões são inúmeras: em função das cerca de 20 origens nacionais diferentes; da data de sua chegada aos EUA e de suas motivações (políticas para os exilados cubanos, econômicas para os mexicanos e quase todos os demais). Mas embora a grande maioria ganhe a vida em inglês já não existe como em tempos distantes a vontade de esquecer a língua de Cervantes e as raízes hispânicas.
Perderam o complexo, acaba de indicar Eduardo Lago, diretor do Instituto Cervantes em Nova York, na apresentação da Enciclopédia do Espanhol nos EUA. E acima da diversidade de suas procedências surge a consciência de uma identidade comum. Além disso, já não são só trabalhadores braçais - sua transformação em classe média é galopante.
O interesse do fenômeno para a Espanha deveria ser evidente. Para começar, os hispânicos (cerca de US$ 60 mil de renda média anual) são um mercado natural para produtos editoriais e culturais espanhóis, assim como uma via de entrada para outro tipo de bens e serviços no mercado americano em geral. Podem, é claro, desempenhar o papel de ponte política, econômica e cultural entre a Espanha e os EUA, sem esquecer as possibilidades de "triangulação" com a América Latina.
A maioria dos latinos dos EUA desconhece a Espanha; mal a localiza no mapa, e quando o faz não lhe dá mais importância que à Itália ou o Reino Unido. No entanto, uma estratégia espanhola de penetração e influência nesse mundo, da qual participassem os poderes públicos, empresas privadas e meios de comunicação, poderia lhes oferecer um pacote interessante:
1. Um elemento simbólico unificador das diferentes comunidades hispânicas. O que todas têm em comum - idioma, tradições, forma de vida, elementos culturais... - não se explica sem a Espanha. É o que disseram o rei Juan Carlos em Nova York (1997) e Washington (2001) e o príncipe de Astúrias em Washington (2003).
2. Uma raiz na própria história americana. O reino da Espanha teve uma ampla presença ao norte do rio Bravo tanto no tempo (1513-1822) como no espaço (do Caribe ao Pacífico). Os hispânicos não são recém-chegados aos EUA, estão em casa. Não tanto quanto os indígenas, mas tanto ou mais que os anglos.
PRESTÍGIO
3. A Espanha é um país europeu tão antigo ou mais que a Inglaterra e hoje constitui uma sociedade democrática, aberta, tolerante, com um nível razoável de proteção social e uma cultura atraente (Pedro Almodóvar, Antonio Banderas, Javier Bardem...), onde vivem amplas comunidades procedentes do outro lado do Atlântico e que renovou seus vínculos com a América Latina. Diante da superioridade política, econômica e cultural dos wasp, os hispânicos têm uma grande necessidade do que eles mesmos chamam de "respeito", e a Espanha pode lhes oferecer uma imagem de qualidade, suscetível de ser um patrimônio próprio.
4. Porta da Europa, o maior mercado do mundo. Como escreveu neste jornal Vicente Palacio, a Espanha deve se apresentar aos hispânicos dos EUA como "um parceiro europeu confiável, dinâmico e que vai ao encontro em seu mesmo idioma".
EDUCAÇÃO E FINANCIAMENTO
5.Em um congresso de empresários hispânicos e espanhóis realizado em 2004, na Casa América, os primeiros contaram que as duas grandes demandas de sua comunidade são educação e capital. Em relação à educação, salientaram que a contribuição espanhola poderia consistir na concessão de bolsas para universitários e uma maior presença editorial e cultural.
Em relação ao segundo, convidaram as entidades bancárias espanholas a se implantar em localidades com alta presença latina, coisa que o BBVA e o Santander Central Hispano já começaram a fazer.
INDÚSTRIAS DE PONTA
6. Jaime Malet e Paul Isbell lembraram aqui mesmo que a Espanha é vanguardista no setor de energias renováveis e que isso é muito atraente para os EUA, que já não podem continuar funcionando com o consumo ilimitado de petróleo barato. O setor espanhol das grandes infra-estruturas tem muitas possibilidades nesse país.
Na segunda metade dos anos 1990, coincidindo com o crescente peso latino nos EUA de Clinton - a moda Macarena - e com a maré de investimentos espanhóis na América Latina, começou-se a falar na Espanha sobre os hispânicos como um possível assunto de Estado. "Os espanhóis temos a obrigação de definir que papel podemos ter em uma nova dinâmica social que pode mudar os próprios EUA", disse Antonio Garrigues Walker na qualidade de presidente da Fundação Conselho Espanha-Estados Unidos. De fato, as primeiras análises sobre o fenômeno procederam dessa entidade, que definiu os hispânicos como um potencial aliado estratégico da Espanha.
Deve-se reconhecer que Aznar incorporou os hispânicos às prioridades de sua política externa, a ponto de ele mesmo ter feito várias viagens aos EUA destinadas exclusivamente a esse universo; em 2003 dirigiu-se em Austin (Texas) à assembléia anual do Conselho Nacional La Raza.
Lamentavelmente, tudo ficou na retórica, o apoio a Bush na guerra do Iraque e a um Aznar falando com um grotesco sotaque "tex-mex". Cabe igualmente lamentar que nem Zapatero nem Moratinos tenham evidenciado a menor preocupação por esse tema.
E se algum destinatário evidente tem o projeto de uma marca Espanha que vários organismos públicos e privados tentam promover, é essa comunidade de comunidades que são os hispânicos dos EUA. Segundo especialistas, seria preciso forjar uma política de Estado da qual participassem não só os governos, mas também as empresas e a sociedade civil. Seus primeiros destinatários teriam de ser os líderes e as organizações do mundo latino-americano, em particular os que transcendem suas origens nacionais e defendem o pan-hispanismo. E não se trata de que a Espanha pretenda substituir países como México, Cuba ou Brasil. A estratégia espanhola deve se inserir no âmbito ibero-americano.
Esperando Obama, há aqui o que María Jesús Criado, do Real Instituto Elcano, definiu uma vez como uma "relação por construir".
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