O portal UOL publicou ontem a seguinte entrevista realizada por Mathias Müller von Blumencron, Gregor Peter Schmitz e Gabor Steingart, do jornal alemão "Der Spiegel", com o megainvestidor George Soros:
“George Soros, 78, ganhou bilhões como gerente de fundos hedge e investidor. "Der Spiegel" conversou com ele sobre a atual crise financeira, a forma como ele espera que o presidente eleito Barack Obama responda ao desastre econômico e as responsabilidades assumidas pelos especuladores.
SPIEGEL: APESAR DAS INTERVENÇÕES MACIÇAS DOS GOVERNOS E BANCOS FEDERAIS, A CRISE FINANCEIRA ESTÁ PIORANDO. AS BOLSAS DE VALORES ESTÃO EM QUEDA LIVRE, MILHÕES DE PESSOAS PODERÃO PERDER OS SEUS EMPREGOS. A CADA DIA MAIS COMPANHIAS VÊEM-SE EM APUROS, DA GENERAL MOTORS, EM DETROIT, À BASF, EM LUDWIGSHAFEN. VOCÊ JÁ VIU ALGO COMO ISTO?
SOROS: Nunca. Acho a situação atual dramática e devastadora. No meu último livro, "The New Paradigm for Financial Markets: The Credit Crisis of 2008" ("O Novo Paradigma para os Mercados Financeiros: A Crise de Crédito de 2008"), eu previ a pior crise financeira desde a década de 1930. Mas, para falar a verdade, eu não antecipei de fato que ela tornar-se-ia assim tão grave. A situação superou os limites da minha imaginação.
SPIEGEL: QUAIS SÃO OS SEUS TEMORES EM RELAÇÃO AOS PRÓXIMOS MESES?
SOROS: Acho que a escuridão precede a aurora. Os mercados financeiros estão sob uma pressão enorme devido à falta de liderança durante o período de transição. Nos próximos dois meses, os mercados experimentarão a pressão máxima. Depois disso, veremos algumas iniciativas do governo Obama. A duração da crise dependerá do sucesso dessas medidas.
SPIEGEL: OS MERCADOS NÃO PARECEM TER MUITA CONFIANÇA NO NOVO PRESIDENTE - ALGO QUE CONTRASTA BASTANTE COM O ENTUSIASMO DA POPULAÇÃO. DESDE 4 DE NOVEMBRO, O DIA DA ELEIÇÃO, AS AÇÕES DESPENCARAM QUASE 20%.
SOROS: Eu tenho grandes esperanças em Barack Obama. Mas à época da eleição a comunidade financeira ainda não havia compreendido integralmente a magnitude da declínio econômico. Ela não previu que a inadimplência do Lehman Brothers provocaria uma insuficiência cardíaca nos mercados. A economia despencou em um precipício, e passamos a ver corpos despedaçados lá no fundo.
SPIEGEL: PERMITIR A FALÊNCIA DO LEHMAN BROTHERS FOI UM ERRO DE POLÍTICA ECONÔMICA?
SOROS: Foi um erro fatal. Eu jamais esperaria que as autoridades deixassem um banco de investimentos tão grande falir.
SPIEGEL: HAVERÁ MAIS VÍTIMAS?
SOROS: Possivelmente. O CitiBank, um dos maiores bancos do mundo, está atualmente no centro das atenções (nota da editoria: o plano de US$ 300 bilhões do governo dos Estados Unidos para estabilizar o CitiBank não havia sido aprovado quando esta entrevista foi feita). Há outras instituições na fila para potenciais encrencas. A situação é bastante similar à da década de 1930 - mas ela irá se desenrolar de forma diferente. Nós aprendemos a não permitir que o mercado financeiro entre em colapso. Gastaremos todo o dinheiro disponível no mundo para impedir que isto aconteça.
SPIEGEL: ESPERA-SE QUE OBAMA SALVE OS BANCOS, SOCORRA A INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA E REVIGORE A ECONOMIA EM GERAL. SERÁ QUE UMA ÚNICA PESSOA É CAPAZ DE ATENDER A EXPECTATIVAS TÃO ALTAS?
SOROS: Talvez não, mas o problema poderá ser administrado de maneira bem melhor do que no atual governo.
SPIEGEL: ATUALMENTE, O SECRETÁRIO DO TESOURO, HENRY PAULSON, ESTÁ A CARGO DOS BAILOUTS (PACOTES DE SOCORRO A INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS E EMPRESAS EM CRISE). QUAIS SÃO AS SUAS RESERVAS EM RELAÇÃO AO DESEMPENHO DELE?
SOROS: Paulson reagiu aos problemas à medidas que estes surgiram. Ele não teve a capacidade de antecipá-los. Quando ele permitiu que o Lehman Brothers fracassasse, o colapso dos mercados financeiros o pegou totalmente despreparado. Quando dirigiu-se ao Congresso ele não foi com um plano, mas sim com um plano para criar um plano. E o plano que ele tinha em mente - a compra dos ativos tóxicos - foi mal concebido. A injeção de capital de equity no sistema bancário fazia muito mais sentido, e ele acabou enxergando isto, mas novamente abordou o fato da maneira errada. A seguir, Paulson parou de agir, deixando um vácuo de liderança, e os mercados entraram em colapso.
SPIEGEL: QUAIS SÃO AS EXPECTATIVAS EM RELAÇÃO AO PRÓXIMO SECRETÁRIO DO TESOURO?
SOROS: Creio que necessitaremos de um grande pacote de estímulos que fornecerá fundos aos governos estaduais e municipais para que esses mantenham os seus orçamentos - já que a constituição não lhes permite administrar déficits. Para que tal programa tenha êxito, o governo federal precisará fornecer centenas de bilhões de dólares. Além disso, outros programas de infra-estrutura são necessários. Ao todo, o custo poderá ficar na faixa de US$ 300 bilhões a US$ 600 bilhões.
SPIEGEL: ALÉM DOS US$ 700 BILHÕES EM SOCORRO À INDÚSTRIA FINANCEIRA?
SOROS: Sem dúvida. Creio que esta é uma grande oportunidade para finalmente lidarmos com o aquecimento global e a dependência energética. Os Estados Unidos necessitarão de um limite e de um sistema comercial consistindo de leilões de licenças para emissões. Eu utilizaria esses leilões para lançar uma nova política energética que não fosse agressiva ao meio ambiente. Esse seria mais um programa federal que poderia ajudar-nos a superar a atual estagnação.
SPIEGEL: A SUA PROPOSTA FOI DESCARTADA POR WALL STREET COMO SENDO UMA INICIATIVA DO TIPO "BIG GOVERNMENT" ("GOVERNO GRANDE", TERMO USADO PARA DESIGNAR GOVERNOS QUE INTERFEREM NA ECONOMIA). OS REPUBLICANOS PODERIAM CHAMÁ-LA DE "SOCIALISMO" DE ESTILO EUROPEU.
SOROS: É exatamente disto que precisamos neste momento. Sou contra o fundamentalismo de mercado. Creio que esta propaganda segundo a qual o envolvimento do governo é sempre ruim foi muito bem sucedida - mas também muito prejudicial à nossa sociedade.
SPIEGEL: VOCÊ RECOMENDARIA AO NOVO PRESIDENTE QUE DISSESSE ISTO PUBLICAMENTE?
Soros: Ele já se manifestou a respeito da mudança do discurso político. Creio que é melhor ter um governo que deseja fornecer uma boa administração do que um que não acredita em governo.
SPIEGEL: NO ENTANTO, NEM MESMO UM GOVERNO FORTE É CAPAZ DE FAZER MILAGRES. ELE PRECISA DE DINHEIRO DOS CONTRIBUINTES. FALA-SE MUITO NOS ESTADOS UNIDOS A RESPEITO DO NOVO PAPEL DO ESTADO E DO GOVERNO - MAS NINGUÉM PARECE DISPOSTO A PAGAR POR ISSO. OBAMA ANUNCIOU A REDUÇÃO DE IMPOSTOS PARA 95% DOS TRABALHADORES NORTE-AMERICANOS. ISTO NÃO SERIA UMA CONTRADIÇÃO?
SOROS: Em tempos de recessão, é altamente desejável operar um déficit orçamentário. Assim que a economia começa a se recuperar, é preciso equilibrar o orçamento. Em 2010, as reduções de impostos de Bush expirarão e não devemos estendê-las. Mas precisaremos também de receitas adicionais. Se o governo não arrecadá-las, todos seremos punidos com taxas de juros mais elevadas.
SPIEGEL: TODOS DIZEM QUE TEMOS QUE REGULAR MAIS OS MERCADOS FINANCEIROS. ISSO SOA BEM, MAS SERÁ QUE É REALISTA? SERÁ QUE ALGUÉM CONSEGUE DE FATO DOMAR OS MERCADOS?
SOROS: Entre os reguladores e os participantes do mercado existe um jogo de gato e rato que transcorre indefinidamente...
SPIEGEL: ...NO QUAL, FREQÜENTEMENTE, OS RATOS, OS PARTICIPANTES DO MERCADO, ESTÃO EM POSIÇÃO VANTAJOSA.
SOROS: Porque eles recebem um apoio extra dos fundamentalistas de mercado. Mas o resultado foi desastroso, conforme vemos agora. Creio que é melhor ter um jogo de gato e rato no qual o gato tenha vantagem do que um jogo no qual os ratos dominem. Isto porque, este último caso significa que os participantes do mercado contam com total liberdade de ação. Este foi de fato o grande equívoco do nosso herói nacional Ronald Reagan, que sempre falou a respeito da mágica do mercado.
SPIEGEL: ENTÃO, VOCÊ APÓIA A REGULAÇÃO MAIS RÍGIDA E O CONTROLE MAIS EFICIENTE DOS MERCADOS?
SOROS: De fato. Entretanto, é preciso reconhecer que as regulações jamais terão êxito completo e que elas sempre estarão repletas de buracos. É preciso que se esteja constantemente preparado para preencher os novos buracos. Na verdade, a regulação deve ser mantida em um nível mínimo, mas é preciso que haja alguma cooperação entre os participantes do mercado e as autoridades - conforme ocorreu nos anos iniciais do período de pós-guerra. O Banco da Inglaterra foi um regulador de bastante sucesso ao cooperar com os participantes do mercado. Esse espírito cooperativo foi quebrado pelos fundamentalistas de mercado.
SPIEGEL: NÃO NA ALEMANHA. TEMOS MUITOS BANCOS SEMI-PRIVADOS QUE DOMINAM GRANDE PARTE DO MERCADO. OS POLÍTICOS ATUAM NOS SEUS COMITÊS DE SUPERVISÃO. MAS ELES ESTÃO EM UM ESTADO PARTICULARMENTE RUIM.
SOROS: Essas parcerias entre o público e o privado são extremamente perigosas. A parte mais podre do sistema financeiro nos Estados Unidos consiste das entidades patrocinadas pelo governo, o Fannie Mae e o Freddie Mac. Eles de fato desencadearam a crise.
O Estado deveria estabelecer as regras e fazer com que elas fossem cumpridas - mas não envolver-se como um ator do mercado.
SPIEGEL: VOCÊ É UM DOS MAIS PODEROSOS ESPECULADORES DO MUNDO E ESTEVE ALTAMENTE ENVOLVIDO COM ATIVIDADES DE FUNDOS NOS ÚLTIMOS MESES. COMO É QUE VOCÊ LIDA COM O DILEMA DE SER UM ESPECULADOR - QUE MUITAS VEZES SAI LUCRANDO COM UMA TRANSAÇÃO FINANCEIRA CAPAZ DE PREJUDICAR A SOCIEDADE?
SOROS: Esta é uma falsa questão. Eu sempre joguei segundo as regras. Ao mesmo tempo, tento aprimorar as regras. Ao fazer isto, eu sugiro com freqüência mudanças que não poderiam gerar benefícios pessoais para mim. Trago no meu coração o interesse comum, e não o meu interesse pessoal.
SPIEGEL: MAS A IDÉIA QUE MUITAS PESSOAS FAZEM DE VOCÊ E DOS SEUS COLEGAS É MUITO DIFERENTE. ELAS CULPAM OS ESPECULADORES PELA CRISE FINANCEIRA ATUAL - FOI ESTA A RAZÃO PARA A SUA DECISÃO DE DOAR BILHÕES DE DÓLARES A ORGANIZAÇÕES DE CARIDADE E À SUA FUNDAÇÃO?
SOROS: As pessoas acham que estou doando dinheiro por ter crises de consciência.
SPIEGEL: HÁ ALGUMA VERDADE EM RELAÇÃO A ISSO?
SOROS: Não. É um equívoco total. Os grandes acontecimentos dos quais eu participei teriam ocorrido com ou sem a minha participação. Por exemplo, quer eu tivesse nascido ou não, a libra britânica teria sido expelida do Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio em 1992.
SPIEGEL: MAS SERÁ QUE VOCÊ É UMA ENGRENAGEM TÃO PEQUENA QUANTO ALEGA? SE VOCÊ FIZER AS SUAS APOSTAS CONTRA GRÃOS, ARROZ OU ÓLEO, MUITOS INVESTIDORES O SEGUIRÃO. ISSO PODERIA PREJUDICAR CONSUMIDORES QUE NÃO CONSEGUEM MAIS ARCAR COM OS PREÇOS DE ALIMENTOS ESSENCIAIS OU ENERGIA. NÃO HÁ DÚVIDA DE QUE VOCÊ É CAPAZ DE INFLUENCIAR OS MERCADOS.
SOROS: Desde que eu me tornei uma figura pública, o homem que supostamente "quebrou o Banco da Inglaterra", fui retratado como um guru financeiro capaz de influenciar os mercados. Isso na verdade criou mais problemas morais para mim. Isso me forçou a impor certas autocontenções nas minhas declarações - exatamente porque eu posso influenciar os mercados, assim como o investidor Warren Buffett. Assim sendo, nós tentamos agir de forma muito responsável.
SPIEGEL: O MUNDO PRECISA DOS FUNDOS HEDGE?
SOROS: Acho que os fundos hedge são uma forma muito eficiente de gerenciar dinheiro. Mas eu vejo nitidamente os riscos. Os fundos hedge usam crédito, e crédito é uma fonte de instabilidade. A minha conclusão é que as transações envolvendo crédito deveriam ser reguladas.
SPIEGEL: AGORA VOCÊ SOA COMO UMA PESSOA QUE ADMINISTRA UMA DELEGACIA DE POLÍCIA E DIZ AOS POLICIAIS: "POR FAVOR, ME ALGEME. EU SOU PERIGOSO!".
SOROS: Na verdade, não. Creio que é preciso haver regulação apropriada dos mercados financeiros, mas é impossível prevenir a especulação. Existe pouquíssima diferença entre especulação e investimento. A única diferença é basicamente que os investimentos são especulações bem-sucedidas porque, se o indivíduo antecipa o futuro com êxito, ele obtém um lucro especulativo. Não tenho de forma alguma problemas de consciência. Sinto muito orgulho por ser um especulador de sucesso.
SPIEGEL: OS CIDADÃOS COMUNS NÃO SE IMPRESSIONAM MUITO COM ISSO. ELES NÃO CONFIAM MAIS EM WALL STREET.
SOROS: Esta desconfiança tem fundamento. As instituições de muito prestígio em Wall Street buscam atender aos seus interesses próprios, e isso difere do interesse comum - que precisa ser protegido.
SPIEGEL: MUITA GENTE NÃO TEM MAIS CONFIANÇA NAS MEDIDAS DE BAILOUT ADOTADAS PELO GOVERNO BUSH. ALGUNS CRÍTICOS ALEGAM QUE O SECRETÁRIO DO TESOURO, HENRY PAULSON, ESTÁ SIMPLESMENTE PROCURANDO SALVAR OS SEUS EX-COLEGAS DE WALL STREET. PAULSON JÁ FOI DIRETOR-EXECUTIVO DO GOLDMAN SACHS.
SOROS: Isso pode ser um exagero. Mas é verdade que Paulson enxerga os problemas exageradamente sob a ótica de um banqueiro de Wall Street.
SPIEGEL: ELE TAMBÉM RELUTA EM FAZER PRESSÕES PELA ADOÇÃO DE TETOS SALARIAIS PARA OS DIRETORES-EXECUTIVOS OU RESTRIÇÕES DE BÔNUS NOS BANCOS QUE RECEBEM AJUDA GOVERNAMENTAL.
SOROS: O fornecimento de dinheiro governamental a um banco transforma esta instituição basicamente em uma companhia de serviço público. Os salários enormes desse setor são apenas um sintoma de um desajuste mais profundo. A rentabilidade da indústria financeira tem sido excessiva. Durante certo tempo, 35% de todos os lucros corporativos no Reino Unido e nos Estados Unidos vieram do setor financeiro. Isso é um absurdo.
SPIEGEL: NÓS FALAMOS BASTANTE SOBRE OS PERDEDORES NO ATUAL DESASTRE FINANCEIRO. VOCÊ ENXERGA TAMBÉM GANHADORES?
SOROS: A China poderá facilmente emergir como a grande vencedora caso os líderes chineses administrem bem a situação. Por outro lado, eles poderiam tornar-se também os maiores perdedores caso lidassem mal com o que está acontecendo. Se a administração for ruim, isto poderá levar a uma crise política na China. Ainda é muito cedo para declarar vencedores e perdedores.
SPIEGEL: OBAMA PODERIA SER O PRIMEIRO "PRESIDENTE PÓS-AMERICANO" - PORQUE O SEU PAÍS PERDE FORÇA ECONÔMICA E "PODER SUAVE"?
SOROS: Se Obama for esperto, ele encontrará pontos em comum com a China para resolver esta crise. Se ele quiser fazer isto sozinho, nós entraremos em uma depressão mundial porque os Estados Unidos não estão em uma posição que lhes permita consertar a bagunça que criaram”.
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