O site Terra Magazine publicou ontem o seguinte texto de Pablo Calvi, de Nova Iorque:
“Quando se analisa o legado político dos dois mandatos de George W. Bush em termos de política externa na América Latina é necessário recorrer a um conceito cunhado por cientistas políticos norte-americanos e que indica uma inesgotável criatividade: benign neglect, ou, negligência benigna, remete a uma situação na qual uma sistemática falta de interesse culmina num cenário claramente positivo.
É claro que nos últimos oito anos, América Latina foi posta de lado na agenda prioritária do Executivo norte-americano. Claro que esta situação, somada ao interesse quase exclusivo de George W. Bush pelo Oriente Médio, resultou num fortalecimento institucional na América Latina.
Graças, justamente, à falta de intervenção na região estamos hoje falando de mais de 20 anos de democracia ininterrupta, explica Maria Victoria Murillo, analista e professora de Ciência Política da Universidade de Columbia, em Nova Iorque.
"As intervenções norte-americanas foram sempre negativas e o que ocorreu nos últimos anos comprova isso", diz Murillo. "As democracias estão num momento excelente na região, as instituições mostram-se mais sólidas e há mostras de que isto continuará assim por muito tempo. Há 30 ou 40 anos, ninguém poderia imaginar que as coisas estariam assim tão bem".
A surpresa tem a ver não apenas com a estabilidade institucional na região, que desde os anos 80 vem trabalhando em diferentes processos de consolidação.
"Curiosamente, Bush foi o presidente com mais interesse pessoal pela América Latina e uma das provas disso é que em sua primeira viagem como presidente ele foi para o México", recorda a analista. "Desde que era governador do Texas, sempre mostrou-se próximo à América Latina. Mas a pauta do Oriente Médio o manteve quase que completamente distraído", exceto por algumas claras exceções, pontua Murillo.
Patricio Navia, cientista político e professor da Universidade de Nova Iorque (NYU) converge com a analista de Columbia. Para Navia, "durante os últimos 8 anos, Estados Unidos e América Latina se ignoraram um ao outro, mas isso permitiu ir deixando para trás uma história complexa de intervenções indesejadas. Agora a agenda está muito mais limpa para poder reconstruir relações que vão além do livre comércio sem que pese a herança da Guerra Fria".
De fato, a disputa silenciosa iniciada com o fim da Segunda Guerra Mundial teve conseqüências sumamente nocivas para a região. Desde intervenções em temas de política interna até reiteradas invasões, os Estados Unidos não deixaram de marcar território nas frágeis e circunstanciais democracias latino-americanas, amparando, inclusive, vários regimes totalitários nos casos em que considerou haver risco ideológico de uma iminente ascensão da esquerda.
"Se recapitularmos, desde Noriega (Manuel Noriega, líder militar que governou o Panamá entre 1983 e 1989) que os EUA não invadem nenhum país da América Latina", assinala Murillo. "E se comparamos com os últimos 100 anos, isto é muito interessante. Claro que há problemas, sobretudo econômicos, porém, parece que os países da região estão passando por um grande momento institucional".
Para ambos analistas, a negligência benigna de Bush teve, entretanto, dois pontos questionáveis. O primeiro foi o apoio ao golpe institucional na Venezuela, em 2002.
Com Otto Reich como Secretário de Estado para Assuntos Hemisféricos, Bush deu continuidade à política de intervenção regional que começou com Reagan, a qual Bush Pai seguiu quase ao pé da letra. "Mas a mudança ocorreu assim que Bush integrou ao seu gabinete o diplomata Thomas Shannon", explica Murillo. "Basicamente a partir desse momento, a América Latina teve liberdade de agir como quisesse".
O segundo erro foi a política antidrogas aplicada na Colômbia, por causa da pouca eficiência apresentada na hora de limitar a entrada de cocaína nos Estados Unidos, o que acabou deslocando a produção e o tráfico para países como México e Brasil.
Dos países que mais se beneficiaram, Navia sugere que, sem dúvida, foram aqueles que conseguiram firmar acordos de livre comércio com o gigante do norte. "Muito embora este tema se complicará daqui pra frente", antecipa.
"Acho que o acordo com a Colômbia tem menos de 50% de possibilidades de ser aprovado com Obama", confirma Murillo.
Para os dois analistas, um dos temas que mais mudará na agenda do Executivo será a relação com Cuba. "As restrições para viagens e remessas de dinheiro cairão assim que Obama assumir o governo", vaticina a professora da Columbia. "E tudo que tenha a ver com decretos, e tudo o que puder ser feito para melhorar as relações entre os dois países, sairá rápido. O bloqueio está apoiado numa lei e seguramente tardará mais", assegura.
"Na nova administração, a ênfase terá que ser a consolidação das instituições e a democracia", adianta Navia.
"Porque já não há mais espaço para avançar em acordos de livre comércio, dado que a maioria deles já foi assinada e os países da região que não assinaram não estão interessados em fazê-lo".
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