sábado, 24 de janeiro de 2009

ACHO QUE A GENTE ROUBOU A BANDEIRA DA ALEMANHA

Li no site “Terra Magazine” do jornalista Bob Fernandes, o seguinte artigo de Marcelo Carneiro da Cunha, escrito em Berlim. O autor é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe".

“Está certo que quando Dom Pedro I mandou brasa e independentizou o Brasil, não havia ainda a Alemanha e por isso fomos de bandeira com brasão, folhas de café e coisinhas decorativas, coisas de um país que começou com uma independência de mentirinha e uma monarquia ainda mais de mentirinha.

Mas, quando decidiram que o negócio da China para o Brasil era virar República, Bismarck já tinha inventado a Alemanha a partir da Prússia e mais dez, e, seguramente, se eles tivessem pensado no assunto, óbvio que a bandeira DELES ia dizer o tal Ordem e Progresso.

Talvez porque eles já estivessem por aqui de tanta ordem, e estivessem no meio de uma onda de progresso sem igual, não tenham se preocupado em ficar afirmando isso ao mundo. Mas que a frase fazia e faz sentido aqui, como em nenhum outro lugar fora do Japão, isso é verdade.

O Japão pode ser um tanto mais extremo. Lá a bandeira deveria ter o sol nascente e a frase: "Obsessividade com a ordem e então progresso". Na Alemanha a coisa não chega tão longe, havendo ordem, mesmo sem ser totalmente obsessiva, eles já ficam contentes.

Penso nisso porque, seguindo a minha tradição, fugi do verão e vim me trancar em Berlim, a melhor cidade do mundo, desde que a gente nao faça muita questão de coisas exóticas tais como árvores frutíferas nas ruas, pessoas fazendo um sambão na esquina ou mulheres sensuais e que gostem de sexo. Isso não tem aqui, todos sabem. Agora, no quesito progresso organizado, Deus nos livre.

A última Copa mostrou que os alemães sabem ser gentis e divertidos, e isso é verdade. Mas a festa só comeca depois que tudo, mas tudo mesmo, estiver organizado, inclusive o final da festa. E eles são mesmo gentis e divertidos, sempre que não estão prá lá de Bagdá de tanta cerveja (e nessas horas eles podem se tornar barulhentos e um tanto assustadores) ou invadindo a Polônia, quando certamente se tornam barulhentos e assustadores. Se tornavam, parece que do militarismo eles se curaram pra valer, sorte do mundo.

Penso em tudo isso porque uma amiga hoje me mostrou que, no porta-luvas, ela tinha um colete fosforecente e um manual de instruções de como usar o colete. Eu perguntei se ela fazia serviço voluntário como flanelinha, mas ela não entendeu o conceito de voluntário, muito menos o de flanelinha, mesmo comigo traduzindo "little flannel person". Não houve jeito.

O fato é que havia um conjunto de instruções para o caso de algo acontecer com o carro. Ou seja, se o carro estraga, o governo daqui espera que você vista um colete fosforecente (laranja e prata, tudo brilhando e visível até em Marte) antes de sair do carro.

As instruções sao claras: "Abra o porta-luvas" (adorei essa parte), "remova o colete. Coloque o colete ANTES de sair do carro. Olhe para os dois lados. Abra o carro. Saia do carro e sinalize que você tem problemas".

Perfeito. Simples. Controlado.

A questão é que isso se multiplica para TODOS os aspectos da vida, desde como você tira o lixo de casa, como anda de bicicleta, como embrulha as compras no supermercado, como prepara a casa para o inverno, TUDO é regulamentado. O conjunto de instruções que você tem que seguir para ser um bom cidadão em Berlim fica maior do que uma Bíblia de Guttemberg, e somente por isso eu não moro aqui.

Eu não leio manual nem de aparelho de DVD, imaginem se vou ler o manual de uma cidade? E óbvio que eu iria fazer um monte de besteira e ia ser expulso daqui no primeiro mês. Eu não sei como se faz para pagar o bonde, não sei como se faz para abrir a porta do bonde (alguém tem que fazer isso ou eu passo do ponto onde queria descer). Não sei como usar a máquina que pesa as frutas no supermercado, nem como se faz para trocar as garrafas vazias por dinheiro (tem sempre uma fila de sem-teto no supermercado na frente da máquina de recuperar garrafas e trocar por dinheiro e eu nunca consigo chegar até ela). Não sei operar a máquina de lavar roupas, portanto tenho que jogar fora as usadas e comprar novas o tempo inteiro.

Adoro Berlim mais do que consigo descrever. Se as pessoas que vivem em São Paulo vissem o sistema de transporte público deles, o nosso prefeito teria que sair escondido da cidade. TUDO funciona tão perfeitamente que você nem percebe que funciona.

Mas tudo funciona assim porque as pessoas também funcionam assim. Ordem e progresso, na prática.

No Brasil, a bandeira certa teria que dizer, "Desordem, e se ainda assim a gente conseguir, então Progresso". A parte do Progresso sempre me agrada, aqui ou lá. É na parte da Ordem que eu me atrapalho um pouco. Fico sem saber se gosto mais dessa ordem meio sanitizada deles, onde até os germes parecem saber o seu lugar, e a desordem humanizada nossa, onde todo mundo reclama, mas parece se divertir mais enquanto vive. Eu gosto das duas coisas, pra valer, e acho que vivo no Brasil por isso mesmo, porque a ordem deles requer estudo, requer leitura de manual, para quem não nasceu aqui e aprendeu tudo direitinho e ainda por cima em alemão.

Por isso, mesmo amando a ordem como amo, sei que não dá. Em algum momento eu vou querer dizer ao médico que sinto dor na cacunda, e ele nao vai entender. Em algum momento eu vou querer atravessar a rua caminhando em pleno sinal vermelho para pedestres, vou ser um mau cidadão daqui.

Por isso vivo feliz no Brasil, no ordem relativa das nossas coisas, no progresso até bonzinho que a gente vinha atingindo até mandarem essa crise parar com a nossa festa. Do Brasil eu só saio mesmo de vez em quando e prá curtir essa desbagunca, essa overdose de praticidade, de alinhamento que é a Alemanha.

Daqui e saio renovado e ansioso por barulho e pela padaria da esquina da Arthur com a Capote, com aquele jeito de fazer as coisas que não tem manual, não tem quem ordene e, de alguma maneira que eu nao posso entender a não ser como um milagre, funciona.

Até breve.”

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