Li hoje no site defesa@net o seguinte artigo de Cosme Degenar Drumond. O autor é diretor de Jornalismo da Editora de Cultura:
O BRASIL NO FUTURO
O PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO NACIONAL DE DEFESA, RECENTEMENTE LANÇADO PELO GOVERNO FEDERAL, DEVERÁ INAUGURAR UM NOVO TEMPO PARA O PODER MILITAR BRASILEIRO
“Historicamente, o Brasil sempre manteve seus meios de defesa de forma improvisada, herança deixada pelos portugueses. Embora nação próspera, Portugal dava pouca importância à proteção de suas riquezas. Até para fugir da ameaça representada por Napoleão Bonaparte, o regente D. João VI recorreu à escolta inglesa. O Brasil assimilou o exemplo. Assim foi em 1822, na luta contra as tropas do general Madeira; na Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870); e na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
O país continuou tratando com indiferença a qualidade de seus meios militares. E pagou caro por isso. Pouca gente sabe, mas, na década de 1980, sérios incidentes aconteceram na Amazônia: ações de guerrilheiros das Forças Revolucionárias da Colômbia (FARC) e do Sendero Luminoso; crescimento avassalador do contrabando e do tráfico de drogas; e a porosidade nas divisas com a Colômbia, Bolívia, Paraguai e Peru. A inteligência militar percebeu tudo isso, mas foi impedida de agir e de mobilizar a opinião pública. Quando o Exército peruano iniciou o combate ao narcotráfico, um produto se destacou nessa luta: o turboélice brasileiro Tucano. Aliás, o conceito do Super Tucano nasceu dessas operações aéreas peruanas. Pouca gente também sabe disso.
Enquanto isso, as Forças Armadas brasileiras perdiam mais personalidade. Com a obsolescência rondando o setor, o governo planejou o reaparelhamento militar. Mas não saiu da intenção. Não havia vontade política. Aliás, o Ministério da Defesa foi criado com o objetivo de diminuir a influência militar no campo político. No ano passado, o presidente Lula tocou no assunto, ao comentar a Constituinte de 1988: “Muitas vezes debatíamos com certa inocência, sem ter a compreensão do significado e do papel das Forças Armadas. No fundo, o que persistia na cabeça de muitos deputados era que os militares tinham governado o país durante 21 anos e, portanto, era preciso ter o Ministério da Defesa apenas imaginando tirar o poder das Forças Armadas”.
As fronteiras na Amazônia continuaram abertas. Quando o projeto SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia) foi estruturado, o quadro na região já era grave. Não apenas as FARC ameaçavam a soberania brasileira. Havia algo mais preocupante. Aeronaves não-tripuladas estrangeiras e aviões clandestinos violavam o espaço aéreo brasileiro. O alerta foi dado. No entanto, as medidas para reprimir a ilegalidade na Amazônia só começaram a ser efetivamente cogitadas por ocasião da ascensão política de Luis Inácio Lula da Silva à presidência da República, período em que também emergiu a figura do líder venezuelano Hugo Cháves. O governo dos EUA se mobilizou, receando que pudesse voltar a ocorrer na América do Sul o mesmo movimento de esquerda do passado. A Colômbia aliou-se aos americanos na tentativa de deter ou diminuir o tráfico de drogas para os EUA, via México. As ONGs passaram a falar da Amazônia e a imprensa viu que havia notícia na região.
É bem verdade que, em 1996, o governo lançara uma Política de Defesa Nacional (PDN) para servir de base ao planejamento militar. Todavia, considerado pelos analistas como peça de retórica política, pois não retratava o verdadeiro pensamento estratégico do Estado nem estava vinculado a nenhum projeto nacional maior, o documento não logrou obter no Parlamento orçamento ao seu cumprimento nem definiu o novo papel para as Forças Armadas. Por outro lado, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica ainda ostentavam status de ministério e praticavam o planejamento operacional individualizado, embora houvesse na estrutura do governo, desde 1949, a figura ministerial do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) para coordenar as atividades militares. Mas o EMFA era um órgão apenas alegórico. Além disso, a política de defesa aprovada tinha uma postura meramente dissuasória e priorizava a ação diplomática.
Mais de uma década depois, chega o Planejamento Estratégico Nacional de Defesa.
Chega com atraso, é certo, mas a tempo de corrigir as ações equivocadas do passado.
Segundo os analistas econômicos, como resultado natural do crescimento econômico, num futuro próximo o Brasil poderá se tornar a quarta maior economia do mundo, ficando atrás de EUA, Japão e China. Nesse raciocínio, o país terá de criar condições materiais a fim de dissuadir potenciais ameaças e agressões externas que venha a sofrer.
No ano passado, a Força Aérea Brasileira (FAB) fez uma revoada de Super Tucano na divisa com o Paraguai, uma típica demonstração de força, coisa que os americanos fazem o tempo todo no mundo. A projeção de força é fundamental. Porém, precisa também ser exibida contra ameaças poderosas. Os comandantes militares sabem disso; a classe política também. Enfim, parece que o Brasil acordou para a importância de cuidar bem da Defesa Nacional.
VISÃO ESTRATÉGICA
O novo planejamento pretende tirar o país do circulo vicioso. O primeiro passo será discutir com a sociedade a melhor forma de aparelhar as Forças Armadas, elemento fundamental à Defesa Nacional. Nessa discussão, uma das prioridades é o rastreamento das fronteiras do país (terra, mar e ar), com ou não o engajamento dos Estados vizinhos.
A Amazônia é um dos pontos relevantes, assim como a participação brasileira em missões de manutenção da paz e a preservação do escopo militar como garantidor da lei e da ordem internas.
A reorganização do poder militar será complementada pela inclusão de outros setores estratégicos – o espacial, o cibernético e o nuclear. A indústria de defesa é outro instrumento essencial. Na opinião do ministro Roberto Mangabeira Unger, da Secretaria de Planejamento Estratégico da Presidência da República, a premissa da nova política de defesa é vinculá-la ao projeto de desenvolvimento nacional. “Se o Brasil quiser desbravar um caminho singular e rebelde no mundo e ascender ao primeiro plano precisa aprender a dizer não quando tiver que dizer não”, disse o ministro em fins do ano passado.
O Brasil tem índole pacifista. Porém, essa realidade, segundo ainda o ministro, não diminui a responsabilidade brasileira quanto à Defesa Nacional. Pelo contrário. Para ele, um projeto de desenvolvimento nacional será fundamental para que o país possa resistir não só as agressões, mas às intimidações. “O Brasil terá de decidir se está disposto ou não a pagar por sua independência”.
Na essência da nova estratégia, o mais relevante será reconstruir uma cultura militar pautada na imaginação, na audácia, na flexibilidade e na capacidade de desbordar e surpreender, de forma imaginativa e arrojada. A construção de uma força armada ideal terá de contar com núcleos de modernidade, para transformá-la numa vanguarda radical e flexível. “Esse ideal tem de estar encarnado no combatente brasileiro, seja infante, aviador, marinheiro ou fuzileiro. Cada um deles terá de reunir vários atributos, como a capacidade de atuar em rede com outros componentes”.
Mobilizar milhares de combatentes, como se fazia antigamente, e colocar uma arma na mão de cada um, pode ainda ser uma opção para dissuadir certas ameaças. Mas algo mais inovador terá de ser adotado. O quê exatamente, os oficiais de Estado-Maior dirão.
Entretanto, nenhum tipo de sistema bélico deve ser descartado na defesa da soberania nacional. Em certos países, a projeção de força costuma ser vista como tentativa de desenvolver armas de destruição em massa, um raciocínio que também prevaleceu no Brasil de vinte anos atrás. Pouca gente sabe, mas a África do Sul e Suécia desenvolveram a arma atômica e renunciaram ao seu conhecimento. Em 1952, a Suécia atingiu o pleno estágio nessa área. Outros países alcançaram idêntico êxito e também renunciaram ao artefato nuclear. Todos entenderam que usar essa tecnologia como arma militar seria conviver com genocídio e suicídio ao mesmo tempo.
O Brasil esteve perto de obter os componentes críticos da bomba atômica. Se tivesse persistido com o programa, possivelmente teria atingido sua plenitude na época em que denunciou o acordo, em meados dos anos 1990. Menos mal. Ao renunciar à bomba, evitou o gerenciamento complexo que essa tecnologia exige. Imagine-se como deve ser a vigília dos militares paquistaneses no esforço para manter a inviolabilidade da bomba que desenvolveram, convivendo ao lado de islâmicos radicais. Os americanos, mais organizados, já deixaram a bomba cair acidentalmente de um B-52. Por sorte o artefato não tinha espoleta. Os russos, por sua vez, causaram desastres medonhos. Gerenciar a bomba atômica é mesmo tarefa complicada.
A alternativa seria o armamento inteligente. Para isso, no entanto, o Brasil terá de evoluir mais em tecnologias. Ao estágio atual, básico de operacionalidade, deverá se seguir o projetado pelo novo caça de superioridade aérea que pretende comprar, ora em processo de seleção. Nessa mesma fase, a Marinha terá de usar meios capazes de negar o uso do mar territorial brasileiro a qualquer força naval inimiga. No Exército, as brigadas de ação rápida estratégica são o que melhor projetam para a operacionalidade futura. O mais importante, contudo, será manter as três Forças Armadas operando por enlace de dados e apoiadas por avançados conceitos de logística, doutrina e estratégia.
O F-X2 dará à FAB o salto quântico. Com ele, a instituição vai projetar considerável força com agilidade, inteligência e flexibilidade. Adicionalmente, a FAB terá de migrar mais densamente para as fronteiras com alto grau de sensibilidade. Novas medidas de reestruturação serão complementadas. Não se justifica mais, por exemplo, em plena era supersônica, manter bases aéreas tão próximas uma das outras, situação ora visível no Rio de Janeiro. A FAB já deu um grande passo ao adotar o sistema AEW. Essa proa terá de ser mantida, inclusive à base da disponibilidade total.
No Exército, a prioridade são as forças especiais espalhadas pelas fronteiras do país. Isso implicará em repensar o emprego da extensa avenida de unidades e escolas militares que funcionam de Deodoro à Realengo, no Rio, até como forma de ajustar seu custo de administração. No futuro, a cavalaria e a artilharia deverão ser substituídas por brigadas. Força Panzer é coisa do passado. Na guerra regular moderna, a aviação cumpre esse papel.
Na Marinha, implantar bases aeronavais ao longo da costa, dotadas com sistemas inteligentes, inclusive nas áreas de águas interiores de importância político-estratégica, econômica e militar, será fundamental. Alguns objetivos são elencados como prioritários: a defesa das plataformas petrolíferas e instalações navais e portuárias; os arquipélagos e ilhas oceânicas em águas brasileiras; e pronta resposta a qualquer ameaça ao comércio marítimo. Também será necessário à Armada operar submarinos convencionais e de propulsão nuclear. Nenhuma marinha de superfície convencional sobrevive mais a um eficiente ataque aéreo de mísseis anti-navio se não tiver uma defesa inteligente. Que futuro terá uma marinha operando no módulo básico? Hoje, uma esquadrilha de caças voando reto e nivelado a 10 mil pés pode furar o sistema antiaéreo naval brasileiro, pois o país não tem uma defesa contra mísseis. Além disso, o armamento que emprega tem pouco alcance. Mísseis anti-navio lançados em salva têm reais possibilidades de saturar qualquer defesa naval desatualizada.
A Marinha terá de operar submarinos, navios de superfície de múltiplo emprego e meios aeroespaciais, com capacidade de monitoramento a partir do espaço. Manter bases navais ao longo da costa é tão importante quanto ter o submarino nuclear. Os fuzileiros navais manterão a posição de destaque como força de excelência. Na aviação naval, o UAV e a rede de comunicações integrada, serão vitais. O porta-aviões está destinado ao obsoletismo nos próximos 20 anos. Além de ser alvo naval visível, de difícil proteção e dispendioso, sua perda causa impacto psicológico arrasador. Aliás, os americanos estão numa encruzilhada por causa de suas 13 frotas. No tempo da Guerra Fria a coisa era menos complexa; se o inimigo sabia onde se encontrava o porta-aviões, também sabia que dezenas de caças, aeronaves de vigilância aérea e navios-escolta atuavam no seu entorno, em alerta permanente, sobretudo quanto à ameaça submarina. Hoje, as frotas diminuem puxadas pelos sistemas inteligentes. Na aviação naval, o UAV deverá substituir o modelo convencional, funcionando integrado ao submarino nuclear, às lanchas, corvetas e às fragatas rápidas, tudo produzido com tecnologia Stealth e operando a partir de diferentes bases no litoral.
A nova Estratégia Nacional de Defesa é pretensiosa, mas absolutamente necessária. São se sabe ainda como será implementada. Porém, uma coisa é certa: as mudanças que projeta encontrarão resistência no próprio meio militar, o que é normal nesses casos.
Poderá uma ou outra liderança defender, por exemplo, a mobilização de dois milhões de homens em armas, distribuídos em divisões, batalhões e brigadas, um raciocínio visível entre certos estrategistas, para quem a ficha da artilharia de campo superada pelo míssil ainda não caiu. Em vez de ficar dando tiro em alvo de montanha, por exemplo, o míssil arrasa tudo. E já está aposentando o armamento de cano. A qualidade operacional moderna exige para o combatente desde o radar portátil ao sistema de visão noturna. A nova política de defesa prevê como vanguarda as brigadas. Veículos espaciais, satélites de baixa e alta altitude, sobretudo geoestacionários de múltiplo uso, sistemas de localização e de posicionamento, meios aéreos de monitoramento terrestre e capacitações e instrumentos cibernéticos, também são previstos.
Se eventualmente o Brasil tiver de dar um peteleco num adversário menor, o F-X2 e mísseis de cruzeiro poderão resolver. Porém, para assustar uma força poderosa isso não basta. E aí, o Brasil terá de ingressar na fase de evolução seguinte, onde o arsenal é mais sofisticado em sistemas, eletrônica e integração. Nessa fase o fator preponderante será o parque industrial, com empresas de engenharia desenvolvendo a parafernália eletrônica e softwares. Sem isso, a confiança nas chamadas vanguardas será inútil.
TEATRO FUTURO
A Amazônia é vista como cenário de guerra futuro. Ali a mobilidade é difícil e exige o emprego de unidades inteligentes. O UAV já demonstrou do que é capaz. Operado a mil metros de altitude, é capaz de ler placas de automóvel e de transmitir imagens para uma TV de pulso, usada pelo combatente em terra como relógio, a chamada TV Rambo. O Exército teve o mérito de transformar índio em combatente de selva. No futuro, terá de armar esse mesmo homem com tecnologia de ponta para que ele possa transitar melhor entre as árvores.”
O soldado americano especializou-se na selva, embora montanha e deserto sejam o seu foco no momento. O Exército Brasileiro terá de ser superior, mestre na mobilidade e na criação de meios de transporte e de comunicação para a selva. O tempo das armadilhas de bambu passou. O combatente de caatinga, outro elemento fundamental, será obrigado de conhecer também o pampa. A tropa de montanha terá de tomar banho na Amazônia.
Afinal, a característica do terreno é singularmente brasileira, e exige tamanha adaptação.
O guerreiro de selva será transformado em elemento multi-função.
No passado, tudo era organizado em função da guerra convencional. Todavia, em menos de dez anos um grupo de loucos avançou sobre as torres gêmeas do World Trade Center; outro desequilibrado explodiu a bomba atômica; uma nação religiosa e rica em petróleo adotou programa nuclear; o pirata do mar foi reinventado; e surgiram os ataques cibernéticos a computadores. Novas modalidades de guerra virão, enquanto a guerrilha ameaça bases militares no Sri Lanka, a Alcaida causa terror e o caldeirão da guerra ferve com regularidade no Oriente Médio.
A probabilidade da guerra tradicional caiu, levando as forças armadas no mundo a mudarem o seu centro de gravidade. Os países, inclusive os de índole pacifista, terão de estar preparados para qualquer ameaça ou agressão, seja a guerra tradicional, a irregular (guerrilha), a catastrófica (armas de destruição em massa de várias naturezas, como ataque a símbolos nacionais) e de ruptura (ataque cibernético ou guerra de informações).
No ambiente de certos países existe ainda uma ameaça de difícil percepção e igualmente devastadora: os movimentos internos que buscam destruir a estrutura e o pensamento nacional.
Segundo os estrategistas, a água será a causa de conflitos futuros. Um estudo da ONU mostra que nos próximos 25 anos os países que compartilham bacias hidrográficas conhecerão contenciosos nessa área. Metade da população mundial sofrerá com a falta de água, sobretudo nos países pobres. E não é só. Outras causas poderão levar à guerra: meio-ambiente, petróleo, água, madeira.
Por sua enorme potencialidade em recursos naturais, maior reserva de água doce do mundo e alta capacidade de produzir alimentos o Brasil terá de estar diuturnamente vigilante e preparado. Espera-se, portanto, que a Estratégia Nacional de Defesa possa oferecer uma eficiente blindagem contra as atuais e as futuras ameaças ou agressões aos brasileiros.”
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