O jornal francês Le Monde ontem publicou a seguinte reportagem de Hervé Morin (li no UOL em tradução de Lana Lim):
O "DR. MADOFF" DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA
“Era tudo falso. Os pacientes, que supostamente teriam testado medicamentos que deveriam acelerar sua recuperação pós-operatório, nunca existiram. Os 21 artigos científicos onde estavam descritos os benefícios dessas fórmulas milagrosas não passavam de um emaranhado de estatísticas sem fundamento. Mas, acreditando nesses resultados fraudulentos, milhões de pessoas ingeriram fórmulas bem reais, que renderam quantias gigantescas às empresas que as comercializam: Pfizer, Merck ou Wyeth.
Scott Reuben inventou tudo. O anestesista americano, autor respeitado de dezenas de artigos médicos, confessou a fraude. Não por remorso. Mas porque ele foi desmascarado: dois dos resumos de estudos que ele havia produzido em maio de 2008 intrigaram os serviços de saúde do Baystate Medical Center (Massachusetts), onde ele chefiava o setor de analgesia. O dr. Reuben não tinha autorização para conduzir esses testes. A extensão da farsa não demorou a ser descoberta.
A fraude vinha acontecendo desde 1996. É uma das maiores do gênero. O sul-coreano Hwang Woo-suk, que em 2004 fingiu ter conseguido a primeira clonagem humana a partir de resultados falsificados, ou ainda o físico Hendrik Schön, da Bell Labs, autor de pelo menos 16 artigos "forjados" entre 1998 e 2001, são fichinha perto de Scott Reuben, às vezes chamado pela imprensa anglo-saxônica de "Dr. Madoff", em referência ao vigarista das finanças.
A corrida pelas glórias, e pelos créditos que as acompanham, é o que move esse tipo de comportamento. Os "trabalhos" do dr. Reuben eram em parte financiados pela Pfizer, que havia feito dele um de seus porta-vozes durante conferências científicas nas quais suas intervenções eram remuneradas. Um representante da firma se disse "desapontado ao saber das acusações contra o sr. Reuben". Este último não hesitava em defender junto às agências reguladoras de medicamentos o uso de fórmulas testadas em pacientes fictícios...
Enquanto se esperam eventuais desdobramentos judiciários, este caso, como a cada vez que uma fraude do tipo é revelada, leva ao questionamento da confiabilidade das publicações científicas, especialmente as médicas. Segundo a famosa máxima "publish or perish" [publique ou morra], na verdade é graças à publicação em revistas científicas que se constrói uma carreira. É por isso que elas possuem uma responsabilidade em especial sobre a qualidade dos trabalhos que lhes são submetidos. As melhores delas fazem com que eles sejam sistematicamente examinados por especialistas antes da publicação.
No caso do dr. Reuben, a falha desse filtro foi gravemente exposta.
Como o sistema editorial não desconfiou, especialmente pela produtividade de Reuben? Confiança abusiva, e abusada? Muitos estudos recentes mostram que inúmeros pesquisadores, em menor escala, se aproveitam de falhas desse sistema de autorregulação - muitas vezes considerado como o menos imperfeito.
O plágio parece ser uma forte tentação, ainda que a prática permaneça marginal. Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade do Texas, e publicado na revista "Science" em 5 de março, permitiu assim identificar 212 pares de artigos duplicados em 86,2%, mas assinados por autores diferentes. Quando contatados, os plagiadores reagiram de formas diversas: 28% negaram ter agido de forma errada; 35% admitiram ter feito empréstimos, e se desculparam; 22% se declararam ser coautores não envolvidos na redação; 17% disseram ignorar que seus nomes apareciam no artigo incriminado. Metade dos casos de plágio apontados nos jornais científicos não recebeu resposta por parte dos editores.
Um outro estudo, publicado em 13 de fevereiro no "British Medical Journal", mostra que algumas revistas facilitam, inconscientemente ou não, a publicação de trabalhos financiados pela indústria farmacêutica. Passando no pente fino 274 estudos sobre as vacinas de gripe, Tom Jefferson (Cochrane Vaccine Field, Itália) constatou que as que apareciam nos jornais consideradas como as melhores não eram necessariamente as mais bem concebidas ou mais pertinentes. O que fazia a diferença era a natureza do patrocinador do estudo. Em outras palavras, as grandes companhias farmacêuticas têm mais chance de ver os trabalhos que elas financiam publicados nas revistas de alta categoria. "Os patrocinadores industriais encomendam um grande número de exemplares dos estudos que valorizam seus produtos, garantindo eles mesmos a tradução. Eles também compram espaços publicitários nesses jornais. Já está na hora de revelarem suas fontes de financiamento", observa Jefferson.
A Fundação Europeia para a Ciência (ESF) manifesta uma preocupação muito parecida em recomendações publicadas em 12 de março: ela acredita que os testes clínicos guiados pela curiosidade dos pesquisadores acadêmicos, mais do que pelos interesses industriais, podem ser um benefício maior para os pacientes.
Suspeita de instrumentalização, a publicação médica às vezes também é criticada por aquilo que ela não publica. Um estudo divulgado na Internet, pela revista "PLoS Medicine" em 17 de fevereiro, mostra que os estudos clínicos franceses de fase I - destinados a avaliar a toxicidade de um possível medicamento - possuem uma probabilidade muito pequena de serem publicados em revistas científicas: 17%, contra 43% dos estudos de fase II a IV, mais próximos da comercialização. Ora, mesmo que eles se revelem negativos, os resultados de fase I não devem ser ignorados: pode-se aprender sobre as fórmulas testadas, evitando que outros sigam pistas falsas.
Será que esses estudos, no contexto do caso Reuben, devem levar a novos códigos de conduta entre os cientistas e editores? Os otimistas dirão que os trapaceiros sempre acabam se traindo. Os outros pedirão por uma maior transparência sobre os laços financeiros entre os diversos agentes. Mas em um contexto mais geral de crise econômica, a maior parte concordará que um aumento na vigilância é indispensável.”
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