O jornal espanhol El Pais publicou ontem a seguinte reportagem de Andrea Rizzi (li no UOL, em tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves):
“Quase 25 séculos depois de o ateniense Péricles ter castigado as intemperanças da cidade de Megara, ditando por decreto o primeiro grande embargo em estilo moderno - e quase meio século depois de Dwight Eisenhower e John F. Kennedy infligirem a Cuba o mesmo destino -, a história dessa ferramenta de pressão internacional se encontra diante de um ponto de inflexão. A época dos embargos comerciais e financeiros gerais parece em seu ocaso, em favor de medidas mais específicas, criadas para atingir os regimes sem prejudicar de maneira indiscriminada as populações civis.
A transição, em fermentação há alguns anos, hoje se consolida com os novos ventos que sopram dos EUA, a potência que mais recorreu ao uso da asfixia econômica com fins políticos no último século. Estas palavras indicam bem a situação: "Depois de 47 anos, o embargo unilateral a Cuba fracassou em conseguir o objetivo de 'levar a democracia à população cubana'. Temos de reconhecer a ineficácia de nossa política".
A relevância dessas frases está em sua autoria, até mais que em seu conteúdo: não foram pronunciadas pelo grande messias da mudança, Barack Obama. Foram redigidas por Richard Lugar, senador republicano e representante máximo na Comissão de Assuntos Exteriores do Senado do partido que defendeu o isolamento de Cuba.
Lugar se atreveu a sentenciar assim meio século de política americana em relação a Havana em fevereiro, antes que o governo Obama decidisse dar um primeiro passo levantando restrições às viagens e ao envio de remessas para a ilha. O senador deu voz a uma virada cada vez mais aceita nas vísceras de seu partido, outrora o grande guardião do embargo a Cuba e berço ideológico de outras sanções semelhantes, hoje disposto a colaborar na tarefa de levantamento do mesmo. O novo plano dos republicanos justifica a expectativa de mudança mais que os discursos do próprio presidente.
A reflexão sobre os embargos no século 21 começa aí, pelo regime castrista no poder depois de 47 anos de bloqueio econômico, e com a lembrança de Saddam Hussein, que conseguiu resistir ao mais duro embargo da história, entre 1990 e 2003. Foram necessários aviões F-16 para derrubá-lo, depois que a população iraquiana sofreu inutilmente um tremendo estrangulamento internacional com base em uma resolução do Conselho de Segurança da ONU.
As sanções econômicas também não derrubaram o ditador norte-coreano Kim Jong-il, que continua bebendo seu amado conhaque em Pyongyang enquanto seu povo passa fome, nem detiveram o programa nuclear da República Islâmica do Irã. A lista de países submetidos a embargos ou sanções comerciais e financeiras nas últimas décadas é muito longa: infelizmente, a dos regimes que sobreviveram a eles tem praticamente o mesmo tamanho, sendo a única exceção de destaque a África do Sul do apartheid.
"É verdade que embargos e sanções econômicas não foram eficazes para derrubar regimes de ditadores. Os fracassos em casos de perfil elevado projetam a sensação de ineficácia absoluta, mas essa é uma percepção distorcida da realidade", argumenta Gary Hufbauer, analista do Instituto Peterson e autor de "Economic Sanctions Reconsidered" [Sanções econômicas reconsideradas], um estudo detalhado sobre a matéria.
"Estudamos cerca de 200 casos de embargos e sanções econômicas de envergadura desde a Primeira Guerra Mundial", continua Hufbauer. "Nossa conclusão é que em 34% das vezes as medidas foram pelo menos parcialmente bem-sucedidas. Com frequência com êxitos marginais. Mas às vezes muito substanciais. Os objetivos estratégicos dos bloqueios vão além da derrubada de um regime."
"A Líbia é o exemplo perfeito", indica Kimberly Elliott, coautora do livro. "As sanções não derrubaram Khadafi, mas contribuíram significativamente para uma mudança de atitude do regime. As sanções sem dúvida têm uma capacidade limitada, mas alcançaram objetivos no passado e poderão continuar atingindo-os."
Mas, comprovada a incapacidade de se obter o objetivo supremo - a derrubada de ditadores -, é suficiente a esporádica obtenção de fins estratégicos secundários para justificar o grande sofrimento que os embargos infligem às populações civis? Até que ponto vai a responsabilidade de uma população pelo fato de seu país ser governado por um determinado regime?
"Sem dúvida a comunidade internacional está progressivamente se afastando do modelo de sanção econômica geral em favor de pressões mais perfiladas, dirigidas especificamente aos responsáveis e que afetam menos a população civil", observa Richard Gowan, analista do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR na sigla em inglês), especializado no estudo do Conselho de Segurança da ONU. "As medidas gerais foram muitas vezes ineficazes e às vezes até contraproducentes, ao criar uma síndrome de encurralamento no país afetado que aglutina a população ao redor do regime", prossegue Gowan.
"Concordo que essa transição para medidas mais refinadas está em andamento", diz Hufbauer. Os cinco especialistas consultados para este artigo concordaram nesse ponto. "Para isso há razões humanitárias e também de 'real politik'. Um embargo total também causa muito dano aos parceiros comerciais do país atingido."
Diante das sanções gerais - como os bloqueios totais a exportações, importações e fluxos financeiros -, as medidas específicas ou "refinadas" impõem o congelamento de determinadas contas bancárias e ativos financeiros, embargos a produtos específicos ou armas, obstáculos a viagens e sanções destinadas a golpear exclusivamente os hierarcas dos regimes e suas funções.
Essas medidas cumprem adequadamente uma das principais funções das sanções econômicas: enviar uma mensagem. Ao público mundial - aliados e inimigos -, ou ao eleitorado interno.
"Mandar sinais sempre é uma parte importante desses processos, e o objetivo nem sempre é de caráter internacional. Cuba é um exemplo. Uma sanção que surgiu com um objetivo de política externa se manteve durante o tempo, fundamentalmente por motivos de política interna, pensando em certos grupos de pressão", argumenta Elliott, que trabalha para o Centro para o Desenvolvimento Global.
A ironia do líder liberal britânico David Lloyd George esculpiu em 1935 a relevância dessa função dos embargos, com uma referência ferina à reação tardia do Executivo de Londres diante da invasão italiana na Abissínia [atual Etiópia]. "[As sanções] chegaram tarde demais para salvar a Abissínia da subjugação italiana... mas a tempo de salvar o governo britânico!", declarou Lloyd George no Parlamento. A inação pode ter custos muito elevados e, entre indiferença e ação militar, as sanções econômicas são uma boa opção.
"O problema das sanções específicas é que são muito complexas de se implementar e precisam de um difícil e constante acompanhamento", observa Paul Holtom, especialista em embargos de armas do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri na sigla em inglês).
"Trata-se de ferramentas mais sofisticadas, mas mais frágeis e, na maioria dos casos, não idôneas para conseguir objetivos estratégicos consideráveis", indica Elliott.
A diferença de peso é evidente. Os bloqueios comerciais e financeiros impostos de 1915 em diante custaram aos países alvo das medidas cerca de 4% do PIB anual em média. No caso iraquiano, devido à enorme adesão ao embargo contra Saddam promovido pela ONU, a queda foi de 54% anuais em média, segundo "Economic Sanctions Reconsidered". Brutal. Sanções específicas não podem alcançar nem de longe esse nível de pressão.
"Mas em nossas pesquisas comprovamos que a equação 'sanção mais dura igual a melhor resultado' não é tão automática quanto se poderia pensar. O próprio caso iraquiano o sugere", indica Hufbauer. "Infelizmente, os regimes autocráticos normalmente conseguem proteger seu entorno, isolá-lo do impacto e transferir o sofrimento para a população."
Exatamente a reflexão sobre o caso iraquiano promoveu uma transição para novos horizontes. Agora a polêmica nos EUA sobre o outro grande embargo simbólico do mundo, o de Cuba, parece afiançar definitivamente a mudança.
A passagem não está isenta de obstáculos. Há quem interprete certas opções políticas menos agressivas como sinais de fraqueza. A ofensiva do ex-vice-presidente americano Richard Cheney contra Obama esta semana resume bem esse antagonismo. "Tanto nossos amigos como nossos adversários aproveitarão rapidamente a situação se pensarem que estão diante de um presidente fraco", disse Cheney, criticando a atitude de Obama em seus giros internacionais, o excesso de mãos apertadas (como a de Hugo Chávez) e "esse frequente tom de desculpas". "Não creio que os EUA tenham muito a se desculpar."
Mas hoje os falcões parecem mais isolados que nunca. "Diante do que aconteceu nos últimos anos, o embargo a Cuba parece realmente um resíduo de outra era. Na Europa a transição para sanções específicas está consolidada. Às vezes há divergências entre países que defendem o diálogo a todo custo e outros mais inclinados à sanção... mas sem dúvida está consolidada a preferência por medidas pontuais contra as gerais", comenta Anthony Dworkin, colega de Gowan no ECFR e analista especializado em direito humanitário.
Quase toda a questão se encontra no terreno das opiniões. Mas certos fatos parecem lições, embora remontem ao século 5º antes de Cristo. Assim relata Aristófanes a história do decreto megarense de Péricles em um trecho de sua obra "Os Acarnenses": "Então Péricles decretou que os megarenses não entrassem em nosso território, e em nossos mercados, por mar ou por terra. Os megarenses, que já morriam de fome, pediram que o decreto fosse retirado. Nós rejeitamos, apesar de eles terem pedido muitas vezes. Então veio o estrondo das armas". A guerra do Peloponeso.”
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