O jornal O Estado de São Paulo publicou ontem em seu editorial:
“Um dilema que lembra o dos países que passaram da ditadura à democracia confronta a primeira grande nação democrática da história. Os Estados Unidos, com efeito, discutem se, como e até onde devem ser investigadas as torturas sistemáticas contra suspeitos de terrorismo, praticadas pela Agência Central de Inteligência (CIA) em Guantánamo e nos seus centros secretos de detenção no exterior com autorização escrita do governo Bush. Um amargo debate instalou-se na semana passada quando, diante de uma ação judicial da União Americana pelas Liberdades Civis, com base na Lei de Liberdade de Informação, a Casa Branca divulgou quatro documentos preparados entre 2002 e 2005 pela Consultoria Jurídica do Departamento de Justiça, que detém a última palavra no Executivo em matéria de interpretação das leis.
Os memorandos, dirigidos à CIA, regulamentam o emprego de 14 técnicas brutais de interrogatório, detalhadamente descritas. Os textos asseguram que as violências seriam compatíveis com as leis americanas e o direito internacional. (Para não ser acusado de violar, entre outros tratados assinados pelos Estados Unidos, as Convenções de Genebra sobre o tratamento de prisioneiros de guerra, o governo Bush decidiu que os terroristas eram "combatentes ilegais".) A modalidade mais citada de tortura, a simulação de afogamento, foi usada nos anos 1940 por militares japoneses depois considerados criminosos de guerra e pelo Khmer Rouge, no Camboja, na década de 1970. Um prisioneiro da CIA sofreu o suplício 183 vezes em um mês. Outros métodos incluíam a privação de sono por 11 dias seguidos e duchas a 5 graus Celsius.
Assim que assumiu, o presidente Barack Obama revogou os pareceres que legitimavam a tortura, ordenou o fim das prisões secretas e o fechamento de Guantánamo em um ano. Mas, ao tornar públicas as provas cabais da negação, sob o bushismo, dos valores fundamentais dos Estados Unidos, ele prometeu que nenhum agente da CIA será processado se tiver agido de acordo com tais pareceres e argumentou que "nada se ganhará gastando tempo e energia para estabelecer as culpas do passado". Obama instruiu os líderes democratas no Congresso a se opor à proposta do presidente da Comissão de Justiça do Senado, o também democrata Patrick Leahy, de criação de uma comissão independente para investigar a conduta do governo Bush em relação à tortura. A presidente da Câmara, Nancy Pelosi, outra democrata, apoia a ideia.
As entidades de defesa dos direitos humanos, por sua vez, pedem a designação de um promotor especial para apurar em toda a extensão o que o próprio Obama chamou de "um capítulo tenebroso" da história americana. Por enquanto, apenas o Escritório de Responsabilidade Profissional do Departamento de Justiça investiga a conduta dos autores dos memorandos. A Comissão de Inteligência do Senado deverá fazer uma apuração preliminar, cujos resultados deverão sair perto do fim do ano. No editorial O manifesto dos torturadores, transcrito sexta-feira neste jornal, o New York Times, depois de elogiar o presidente pela divulgação dos memorandos, sustenta que, se o Executivo não conduzir uma investigação exaustiva do assunto, o Congresso terá o dever constitucional de responsabilizá-lo pela omissão.
A rigor, o que está em jogo vai além da tortura - que, de mais a mais, se revelou ineficaz, segundo especialistas em contraterrorismo, e prejudicou a cooperação entre os Estados Unidos e alguns de seus aliados europeus, como a Alemanha, no combate ao inimigo comum. Sob os auspícios de Bush e invocando o imperativo da segurança nacional, o seu círculo íntimo - o vice Dick Cheney, o conselheiro Karl Rove, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, e o da Justiça, Alberto Gonzales - tentou transformar os EUA em um Estado policial. As suas tendências ditatoriais foram exacerbadas, mas não criadas pelo 11 de Setembro. Com o Congresso e a imprensa acoelhados, instalaram um regime que dotou o presidente de poderes extraordinários, quando não secretos, de controle da sociedade. Bush autorizou o grampo das comunicações de quem quer que o governo quisesse, numa escala que superou até os amplos limites da autorização legislativa recebida. Estiveram próximos de desfigurar o país.”
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