“O ano é o de 1969. Os americanos comemoram o envio da primeira espaçonave tripulada à lua. Na França, começa a voar o primeiro jato supersônico para transporte comercial de passageiros, o Concorde. E o Brasil, em que pese uma participação ativa nos primórdios da história da aviação – a começar pelos feitos de Alberto Santos-Dumont, com o primeiro voo em uma máquina mais pesada que o ar de que se tem registro, em 23 de outubro de 1906 –, acumula tentativas infrutíferas de avançar na produção de aviões em série. Ao que tudo indicava, ficávamos para trás em mais uma corrida tecnológica mundial.
Boas ideias não faltavam. E podem ser medidas pelos inúmeros esforços privados, como as construções do monoplano São Paulo, apenas quatro anos após a façanha de Santos-Dumont, e do bimotor Independência, em 1922. Iniciativas que até decolavam, mas dificilmente chegavam a voar longe, do ponto de vista industrial. A história só começaria a mudar com a criação, em 1941, do Centro Técnico de Aeronáutica (CTA), em São José dos Campos. A pequena cidade do interior paulista tornou-se um núcleo de conhecimento que começou a atrair também empreendedores interessados no setor aéreo.
O contato com a iniciativa privada desenvolveu nos militares a consciência de que não bastava saber projetar aviões. Para ganhar projeção e escala, era preciso ir além de bons protótipos. O produto teria de responder às necessidades do mercado global. O conceito é seguido à risca até hoje pela Embraer, fundada em 19 de agosto daquele mesmo 1969, e hoje a terceira maior fabricante mundial de aviões comerciais.
"O ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica, ligado ao CTA) formava engenheiros com espírito empreendedor, preocupa-dos com a questão comercial", conta Ozires Silva. À época jovem major da Aeronáutica, Silva era um dos maiores entusiastas da criação de uma companhia capaz de dar asas aos sonhos dos alunos da instituição.
"Nas pesquisas de mercado, notamos que, em 1957, havia 350 cidades atendidas pelo transporte aéreo e o número caiu para apenas 45 localidades em 1965. Os aviões de passageiros ficavam maiores e ninguém, no mundo, pensou que seria necessário construir aviões pequenos para atuar fora dos grandes centros urbanos", narra o engenheiro. Essa premissa levou às pranchetas o projeto do Bandeirante - um turboélice pequeno, robusto, equipado com motores capazes de realizar vários voos de curta duração em um mesmo dia. O avião, principal produto comercial da Embraer por vários anos, ganhou os céus em 1968, um ano antes da criação da própria empresa.
Mesmo de posse de um projeto promissor, não foi fácil erguer a Embraer. Quem conta a história é o engenheiro Antonio Garcia da Silveira, o primeiro diretor de relações industriais da companhia: "O governo deixou claro, desde o início, que queria um empreendimento de capital privado. Muitos empresários foram procurados, mas ninguém queria assumir o risco".
Quando o grupo liderado por Ozires dava por perdida a iniciativa, Garcia diz ter descoberto o ainda recente Decreto-Lei n° 200, de 1967, que previa a formação de empresas de capital misto, compostas de recursos privados e estatais. "O modelo permitiu à União entrar com o terreno, ao lado do CTA, e com um aporte inicial de recursos", lembra. "O restante da estratégia de capitalização foi resolvido pelo Ministério das Finanças, que criou um mecanismo de incentivo fiscal que permitia às empresas investirem 1% do imposto a pagar nas ações da Embraer. Estava aberto o caminho para o aporte de dinheiro privado."
Outro impulso ao futuro da companhia foi dado pelo governo em 1970. Tratava-se da encomenda, em nome do Ministério da Aeronáutica, de 80 Bandeirantes e 112 jatos de treinamento militar Xavante - produzido em cooperação com a italiana Aermacchi. "Sabíamos fazer projeto, mas a produção era outro mundo, exigia todo um ferramental e processos específicos. Decidimos aprender com quem já sabia", diz Garcia.
A Aermacchi seria novamente parceira da Embraer, cerca de dez anos depois, no projeto do caça AMX, ao lado da também italiana Aeritalia (hoje Alenia). "Foi um período difícil", conta o brigadeiro Lélio Viana Lôbo, ex-ministro da Aeronáutica. Lôbo era então o responsável, do lado dos militares, pelo projeto AMX. "Ficou claro para mim o motivo da trajetória bem-sucedida da Embraer. Tínhamos dificuldade para chegar ao fim do mês, mas continuávamos a manter o foco nas décadas seguintes, sem economizar na formação de capital humano e na criação da capacidade industrial da empresa." O projeto permitiu transferir definitivamente ao Brasil a tecnologia de produção de jatos, um fator fundamental para outro passo decisivo da companhia.
Até a década de 1980, a fabricante de aviões de São José dos Campos colecionava êxitos. A aeronave de uso agrícola Ipanema, o turboélice de 30 lugares Brasília, o executivo Xingu e o avião de treinamento Tucano fizeram sucesso no Brasil e no exterior e garantiram o reconhecimento internacional à empresa. Em aviação, porém, bons resultados passados não garantem o futuro. Além de requerer uma sequência de projetos de qualidade, o setor exige elevados investimentos para tirá-los do papel e financiar as vendas.
A Embraer chegou aos anos 90 com boas ideias, mas completamente esgotada do ponto de vista financeiro. Sua crise refletia a do próprio País, sem recursos para investimento e com o nome sujo no mercado internacional de crédito, após os calotes na dívida externa. Para piorar, um atentado a bomba em um voo da Pan Am, em 1988, e, depois, a alta do preço do petróleo desencadeada pelo início da primeira Guerra do Golfo provocaram unia queda até então sem precedentes no tráfego aéreo comercial. Além da dificuldade de financiamento, a empresa assistiu ao cancelamento de 70% dos pedidos. O número de funcionários caiu à metade, para 6 mil. A situação era crítica e a falência parecia iminente.
À época ministro da Aeronáutica, o brigadeiro Sócrates da Costa Monteiro decidiu buscar o auxílio de Ozires Silva, que, de-pois de fundar a Embraer; havia presidido a Petrobras. Os dois haviam sido colegas no curso de aviador da Escola da Aeronáutica. Conversaram e decidiram levar ao alto comando militar a proposta de privatização da companhia. "Ninguém acreditava que os militares permitiriam a venda da Embraer, mas conseguimos mostrar que não havia outra saída. O plano foi aprovado por unanimidade", conta o brigadeiro.
0 processo de privatização, concluído em dezembro de 1994, trouxe capital novo e representou uma mudança na cultura da companhia. Mas o que reergueu mesmo a empresa foi um projeto elaborado na fase estatal: o jato regional ERJ 145, maior sucesso de vendas da história da Embraer. Até hoje, mais de mil unidades da aeronave permanecem em operação no mundo. Para conquistar o mercado global de aviação regional, a Embraer teve de enfrentar concorrentes poderosos, como a canadense Bombardier. A disputa comercial virou um embate diplomático. No fim, estabeleceu-se o espaço de cada uma.
Para chegar ao terceiro lugar no ranking da aviação comercial - ainda que a uma enorme distância das líderes Boeing e Airbus -, a Embraer deu mais um passo ousado. Lançou uma nova família de jatos, a 170, e criou uma categoria até então praticamente inexistente, a dos aviões para 80 a 120 passageiros. A estratégia atraiu a atenção da concorrência, mas a brasileira conta com a vantagem do pioneirismo, e pode estar um passo à frente quando se dissiparem os efeitos da crise financeira internacional sobre o setor. Uma prova de que, após 40 anos, o espírito dos jovens aviadores do interior paulista permanece vivo.
Mãos firmes - o presidente da Embraer, Frederico Curado, espera que a empresa saia da crise fortalecida diante da concorrência internacional
A Embraer completa 40 anos em meio a uma crise financeira internacional que afeta diretamente o setor aéreo. A exemplo do que foi feito após os atentados terroristas de 2001, a empresa cortou, em março, o equivalente a 20% do quadro de funcionários. No primeiro semestre, os resultados financeiros se mantiveram positivos. O presidente Frederico Curado afirma, porém, que será preciso manter mãos firmes no manche para atravessar a tempestade.
CARTACAPITAL: QUAL O EFEITO, ATÉ AGORA, DA CRISE SOBRE A EMBRAER?
FREDERICO CURADO: Estávamos caminhando para atingir 7,1 bilhões de dólares em receita anual, depois de 6,4 bilhões em 2008. Não só não crescemos como a previsão caiu para 5,5 bilhões de dólares. Uma queda de mais de 20%. Sentimos o impacto ainda no terceiro trimestre do ano passado.
CC: 0 QUADRO ATUAL COMPROMETE O FUTURO DA COMPANHIA?
FC: Olhamos para a situação além da crise. Nosso plano operacional é de cinco anos, mas nós olhamos os cenários de vinte anos. Vamos adaptar custos, ajustar despesas e investimentos, desde que não comprometam o futuro, para preservar caixa e manter a empresa saudável. Mas não cancelamos nem adiamos nenhum programa de investimento, por acreditar que há vida após a crise.
CC: A EMPRESA PODE SAIR DA CRISE À FRENTE DAS CONCORRENTES?
FC: Podemos até ficar mais fortalecidos, relativamente falando. Foi o que aconteceu em 2001, quando a empresa sobreviveu enquanto um de nossos concorrentes desapareceu, a alemã (Fairchild) Dornier. Agora, a Cessna cancelou um programa novo qe iria concorrer com o Legacy (jato excutivo da Embraer). É um exemplo de ameaça competitiva que estava presente ante da crise e agora não está mais.
CC: OS POTENCIAIS CONCORRENTES DA FAMÍLIA 170 (DE 80 LUGARES) CONTINUAM ATIVOS?
FC: Particularmente os russos, chineses e japoneses. Olho com pragmatismo. Poderão tomar uma fatia do mercado, mas as dificuldades que nós passamos também são as deles. Estamos gerando resultados de caixa com os aviões, e eles estão despendendo. Não podemos ficar como avestruz. O mercado está ruim, mas não é só para a gente”.
FONTE: reportagem de André Siqueira publicada na revista Carta Capital desta semana.
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