"O criador da sigla BRIC, Jim O’Neill, sabia bem o que estava dizendo quando fez rasgados elogios à conduta do governo brasileiro no enfrentamento da crise que abalou os mercados financeiros a partir de setembro de 2008. Ele anda pelo mundo como chefe de pesquisa econômica global do Goldman Sachs. Esteve em São Paulo recentemente para palestras aos clientes do banco e falou da capacidade que a equipe dirigente do País revelou no auge da crise. Sua referência ao papel desempenhado pelo chefe da nação brasileira foi superlativa: “Dá para argumentar que o presidente Lula é o melhor e mais bem-sucedido gestor político desta década em um grande país”.
Muitos brasileiros concordam. De outra parte, é natural que a oposição reaja amuada diante dos “exageros” de O’Neill, mas quem conhece um pouco da história econômica deve reconhecer que a atitude dos dirigentes políticos é sempre decisiva para enfrentar os momentos de pânico. É impossível negar que o exercício de liderança do presidente Lula foi fundamental para a adesão de empresários e trabalhadores aos estímulos de uma política que conservou empregos, manteve salários e sustentou níveis de consumo, possibilitando uma razoável normalidade à atividade econômica.
Ele foi às fábricas e sindicatos, convocou os empresários a Brasília e os convenceu a manter a produção na indústria. Recentemente, comentei o quanto foi decisiva essa conciliação entre empregados e patrões, diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos. O Brasil tem coisas extraordinárias e nem sempre estão no governo. Peguem o exemplo de como reagiram quatro grandes empresas internacionais e quatro grandes empresas brasileiras logo nas primeiras semanas do apagão financeiro. Os chefões americanos chamaram a rapaziada e disseram: “Procurem o seguro-desemprego e passem bem...” Aqui, as turmas se reuniram, tomaram uns chopes e acertaram a vida por alguns meses até as coisas melhorarem. Houve um mínimo de demissões e logo recomeçaram as contratações.
Quem leu alguns livros sobre as crises econômicas aprendeu que as reações dos governos podem ser catastróficas (a maioria) ou virtuosas. A maior recessão mundial dos tempos modernos, que começou com o crash da Bolsa de Nova York, em outubro de 1929, foi pródiga em decisões equivocadas de chefes de governo, das autoridades econômicas, dos gestores financeiros privados (em algumas praças eram as mesmas cabeças) e até dos parlamentos. As lições dessa crise servem até hoje e ajudam a evitar a reedição de alguns (não todos) erros dramáticos. Por exemplo:
Em 17 de junho de 1930, quando parecia que a crise ia arrefecer, o presidente Hoover sancionou a lei Smoot-Hawley, aprovada no Congresso dos EUA, elevando fortemente as tarifas comerciais, “em defesa da autossuficiência americana”. Produziu o efeito de generalizar as práticas protecionistas, o que paralisou o comércio entre as nações e aprofundou e deu longa vida à recessão em toda a economia mundial.
Pressionado pela oposição conservadora e pela “city londrina”, o gabinete trabalhista inglês elaborou um orçamento para 1931 com drástica redução nas despesas do governo, inclusive cortes importantes nos salários do funcionalismo civil e militar e até mesmo no auxílio-desemprego! O equilíbrio orçamentário manteria a valorização da libra esterlina, vinculada ao padrão-ouro. A estabilidade financeira era exigência dos bancos, da grande imprensa conservadora e das entidades representativas da própria indústria britânica.
Como todos sabem, a história é plena de acidentes. Num ancoradouro naval escocês, marinheiros da esquadra imperial, descontentes com a profundidade dos cortes salariais, se recusaram a obedecer ordens dos oficiais para zarpar, no que ficou conhecido como o Motim de Invergordon. Pior que a desobediência, fato raro que implicava severas punições, desandaram a entoar The Red Flag, o que foi interpretado como uma ameaça revolucionária, à semelhança dos motins de 1917 da marinha russa em São Petersburgo.
O susto produziu as consequências indesejadas: os mercados financeiros desabaram, a libra passou a flutuar, a Grã-Bretanha abandonou o padrão-ouro (e na sequência os demais países). O contágio da recessão não poupou nenhum país. Medidas protecionistas ampliadas afundaram as economias num longo período de depressão. A esperança de milhões de trabalhadores de recuperar seus empregos hibernou em todo o mundo pelo período de uma geração, a geração perdida."
FONTE: escrito por Delfim Netto e publicado na revista Carta Capital desta semana.
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