"O BRASIL NÃO PEDE LICENÇA.
Uma espécie de ideólogo da política externa na Era Lula, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ex-número 2 do Itamaraty, recebeu há um mês a incumbência de pensar o Brasil de 2022. Sentado na cadeira que pertenceu ao ex-ministro Mangabeira Unger, de onde desfruta uma vista privilegiada da Esplanada dos Ministérios, o diplomata se diz à vontade na Secretaria de Assuntos Estratégicos. Planeja desenvolver programas interministeriais e políticas para o desenvolvimento da Amazônia, cujos mapas decoram seu ambiente.
A reportagem e a entrevista é de Fábio Schaffner e Klécio Santos e publicada pelo jornal Zero Hora, 22-11-2009.
Foram as controversas relações diplomáticas do Brasil, porém, que dominaram os 52 minutos da entrevista concedida sexta-feira a Zero Hora, a primeira a um jornal desde que assumiu o ministério. Acostumado a agir nos bastidores, influente e sobretudo polêmico, Pinheiro é amigo do presidente venezuelano, Hugo Chávez, e tachado como “representante do anti-imperialismo” no Itamaraty. Sobre o papel do Brasil na política latino-americana e os empréstimos concedidos pelo BNDES aos países vizinhos, é categórico:
– Sou favorável a um Plano Marshall para a América do Sul. Tão grave quanto uma guerra é o subdesenvolvimento.
Bacharel em Direito e mestre em Economia pela Universidade de Boston, em 2006 Pinheiro recebeu da União Brasileira de Escritores o título de Intelectual do Ano, pela obra Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes. Sobre o prêmio, revela uma mágoa:
– Não saiu uma linha na imprensa sobre isso.
Eis a entrevista:
A diplomacia do governo Lula é estratégica para o governo. Da sua experiência no Itamaraty, o que o senhor pretende aplicar no ministério, por exemplo, em relação ao Mercosul?
Quando se prepara um plano para o país, tem de se levar em conta os vizinhos. Os laços econômicos e políticos que o Brasil mantém com países vizinhos são muito intensos. É do nosso interesse contribuir para o desenvolvimento regional e reduzir diferenças. Quanto mais prósperos, mais estáveis social e politicamente serão esses países.
Mas o Brasil se envolveu em vários conflitos nos últimos anos, com Argentina, Bolívia, Paraguai.
Temos disputas comerciais com a Argentina, assim como os Estados Unidos têm com a Europa, com a China. Isso é normal, pois afeta o interesse de empresas, que acabam pressionando os governos. São coisas pontuais, de circunstância. Nossa relação com a Bolívia é amistosa. No episódio das refinarias, a imprensa disse que haviam sido expropriadas. Elas foram compradas, por um preço avaliado como justo. O desenvolvimento do Paraguai também é do nosso interesse, trata-se de um dos países mais ricos do mundo em recursos hídricos, mas tem dificuldade de investimento.
O senhor se arrepende de ter sido contra o ingresso do Brasil na Área de Livre Comércio das Américas (Alca)?
Nem por um décimo de segundo. Se tivéssemos entrado na Alca, talvez hoje estaríamos como o México, cujo PIB retrocedeu em mais de 10%. A Alca não é um acordo de livre comércio, ela estabelece regras que eliminam a possibilidade de uma política econômica autônoma. Em um país subdesenvolvido como o Brasil, com enormes diferenças sociais, a ação do Estado é indispensável. Se tivéssemos aderido à Alca, o Banco do Brasil não seria mais público, nem existiriam o BNDES ou a Caixa Econômica Federal.
O senhor não se incomoda com o rótulo de antiamericano?
Não sou antiamericano, sou a favor do Brasil.
O senhor tinha fama de ser doutrinador na época do Itamaraty, de incentivar leituras de esquerda. Isso é verdade?
Incentivar leituras é uma coisa importante. Agora, de esquerda não é verdade. É uma coisa extraordinária achar que as pessoas no mundo vão ser doutrinadas porque leem. Um dos livros que indiquei era a biografia de Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira.
Por que há tanta controvérsia em relação a sua figura? Dizem que foi o senhor quem incentivou a entrada do presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, na embaixada brasileira.
Imagina. Quem disse isso foi o ex-ministro Jorge Castañeda. Não o conheço e jamais estive com ele.
O senhor acha que o Brasil não deve reconhecer a eleição presidencial em Honduras?
Claro que não. É uma eleição conduzida por um governo ilegal.
O senhor acha que a oposição está tratando de forma ideológica o ingresso da Venezuela no Mercosul?
Certamente. Há um equívoco e muita desinformação. Nós temos com a Venezuela o maior superávit comercial.
O senhor é realmente o guru do presidente Hugo Chávez?
(Risos) Tenho certeza que não. Ele nunca disse isso. Alguém fez esse comentário porque ele mencionou uma vez que gostava do meu livro (500 Anos de Periferia).
A Venezuela é importante para o Brasil? Há muita controvérsia em relação ao governo de Chávez.
A Venezuela é muito importante para nós, um país muito rico, não só em petróleo. A soberania é parte do povo. Se o povo decide... Aqui no Brasil houve uma prorrogação de mandato que não foi aprovada pelo povo. Foi um episódio nebuloso, em que pessoas confessaram ter vendido o voto. O presidente Chávez concorreu em mais de 10 eleições, todas consideradas legítimas e com acompanhamento de organizações internacionais.
Mas e quanto à liberdade de imprensa?
Vocês conhecem algum jornalista que esteja preso na Venezuela? Se houvesse, estaria denunciado nos jornais. Houve uma emissora de TV cuja concessão não foi renovada. Talvez esteja aí o foco da preocupação em outros países. As TVs são concessões públicas, não são propriedade privada. É necessário que os veículos de comunicação sejam imparciais para que a liberdade de imprensa seja efetiva.
Política externa é um assunto um tanto árido para a maioria da população, mas no governo Lula ganhou uma dimensão maior, virou assunto de bate-papo entre amigos. A que o senhor atribui isso?
É a dimensão brasileira que mudou. Na política internacional ninguém diz: “Vou ser líder”. Isso é uma convicção que se forma nos outros. O presidente Lula é um grande líder popular porque ele interpreta os anseios das pessoas. Isso nos permite influir de forma mais eficaz nas negociações de interesse do Brasil.
Por que a política externa do governo Lula gera tanta controvérsia? O governo irá enfrentar mais polêmica agora com a visita do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad.
Antes havia o hábito de se pedir licença para fazer as coisas, o hábito de ser pequeno. O Brasil agora é maior de idade, não pede licença para ter relações com qualquer país. Agora mesmo, veio ao Brasil o presidente de Israel, Shimon Peres. Também está aqui o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas. Eles não vêm aqui para visitar as belezas naturais. É porque eles consideram importante a posição e a atuação do Brasil. Quem critica é quem não faz ou quem não fez.
O chanceler Celso Amorim se filiou ao PT, o senhor se tornou ministro. A diplomacia está indo às urnas?
Nunca fui filiado a nenhum partido político. O futuro não se sabe. Não sei quais os objetivos do ministro Celso Amorim, mas há outros diplomatas politicamente engajados. O ministro das Cidades, Márcio Fortes, é filiado ao PP. Há vários diplomatas vinculados à oposição, não sei se são filiados, que nos criticam. Eu prefiro a crítica ao elogio. O elogio me ilude, mas a crítica me aperfeiçoa."
FONTE: reportagem e entrevista de Fábio Schaffner e Klécio Santos, publicada pelo jornal Zero Hora ontem (22/11) e postada no blog "De um sem mídia", de Carlos Augusto de A. Dória.
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