"Pela primeira vez em muito tempo o Haiti parecia bem posicionado para retomar o desenvolvimento
O HAITI é um dos nove países que represento na diretoria do Fundo. Ontem, aprovamos um empréstimo de US$ 102 milhões, em condições muito favoráveis de prazo e custo.
Não haverá cobrança de juros e o principal só começa a ser pago depois de cinco anos e meio. O diretor-gerente do FMI (Fundo Monetário Internacional), Dominique Strauss-Kahn, prometeu trabalhar com doadores para cancelar toda a dívida haitiana, inclusive o empréstimo aprovado ontem.
Evidentemente, isso ajuda, mas não resolve. O terremoto que atingiu o Haiti é um dos piores desastres já registrados. Foi como se tivessem jogado uma bomba atômica na capital do país. Ninguém sabe ao certo, mas o governo estima em mais de 110 mil o número de mortos e em quase 200 mil o número de feridos. Em Hiroshima, morreram provavelmente mais de 100 mil pessoas; em Nagasaki, algo como 70 mil.
O terremoto atingiu o país num momento em que seu desempenho econômico era bastante bom. Pela primeira vez em muito tempo o Haiti parecia bem posicionado para retomar o desenvolvimento e escapar da miséria. No ano passado, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) chegou a quase 3%, a taxa mais alta no Caribe. A inflação havia sido controlada. O deficit de balanço de pagamentos em conta-corrente diminuíra consideravelmente. Em 2009, apesar da crise internacional, as exportações do país aumentaram, e as remessas da diáspora haitiana permaneceram em nível elevado.
Agora, a economia sofreu um choque de oferta extraordinariamente violento. O PIB deve desabar. A inflação voltará a aumentar. Grande parte da capacidade exportadora e da infraestrutura foi destruída. O deficit das contas externas e o deficit público aumentarão de forma expressiva. O governo e o setor privado perderam muitos funcionários qualificados. Estive em Porto Príncipe no final do ano passado. O hotel Montana, onde fiquei hospedado, veio abaixo, soterrando cerca de 200 pessoas.
Algumas pessoas que conheci, entre elas o chefe da missão das Nações Unidas, o tunisiano Hédi Annabi, e o seu vice, o brasileiro Luiz Carlos da Costa, morreram no terremoto.
Uma das coisas que mais me impressionaram naquela viagem foi a visita a uma escola dirigida por freiras brasileiras, que acolhe crianças "restavec". "Restavec" vem do francês: "Reste avec!" (Fique com!). As famílias muito pobres e com muitos filhos mandam crianças pequenas ficarem com outras famílias. Essas crianças levam uma vida duríssima nas famílias que as acolhem, sofrem maus-tratos, viram empregados, quase escravos. Uma ironia para um país como o Haiti, o primeiro a abolir a escravidão nas Américas.
Fiquei sabendo que, inicialmente, as freiras davam uniformes às crianças, que chegavam à escola seminuas. Não deu certo. Quando voltavam para casa, os "restavec" perdiam tudo e apareciam no dia seguinte sem roupa de novo. A solução encontrada pelas freiras: no final das aulas, as crianças passaram a ser obrigadas a devolver o uniforme. Contaram-me que era uma cena de cortar coração ver aquelas crianças forçadas a entregar seus uniformes, todo dia, antes de voltar para casa.
Onde estarão essas crianças agora? A maioria das escolas de Porto Príncipe foi destruída pelo terremoto. Lembrei-me de Dostoievsky: "O sofrimento das crianças é o maior argumento contra a existência de Deus".
FONTE: escrito por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR., diretor-executivo no FMI, onde representa um grupo de nove países (Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Haiti, Panamá, República Dominicana, Suriname e Trinidad e Tobago). Publicado hoje (28/01) na Folha de São Paulo.
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