terça-feira, 29 de junho de 2010

CHILE, CAMPEÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL


Editorial da revista chilena “Punto Final”:

"Enquanto a imensa maioria dos torcedores esperava que o Chile se classificasse entre os oito primeiros países da Copa do Mundo, quase todos esquecem que já estamos entre os mais destacados numa competição desagradável e vergonhosa: a da desigualdade.

Há tempos figuramos entre os três ou quatro países mais injustos do mundo em termos da distância que separa ricos de pobres. No final do governo Ricardo Lagos, 5% da população mais rica tinha 209 vezes mais renda que os 5% dos mais pobres. Enquanto a renda deste último setor subia 1%, a dos 5% de cima subia 62%. Essa relação se deteriorou ainda mais no governo da presidenta Michelle Bachelet. A desigualdade, porém, parece não ser percebida por parte da população.

O controle dos setores dominantes sobre os meios de comunicação que produzem toneladas de imagens e conteúdos por hora faz crer que os destinatários espectadores vivem num país modelo, e que se se esforçarem poderão alcançar grandes benefícios. Uma ilusão que se desfaz quando terremotos, enchentes e outras catástrofes arrasam parte de nossa geografia e se dissipa a aparência de alvenaria psicológica de varejo, a publicidade e o teatro que ocultam os graves problemas da população.

Cada vez se torna mais real a possibilidade de cataclismos sociais, impulsionados por eventos naturais ou por catástrofes ambientais originadas pelo próprio ser humano. Como ideologia dominante, o neoliberalismo estimula o individualismo para truncar os vínculos de solidariedade social e de unidade das organizações populares.

Instala-se a competição no afã de lucro como os instrumentos que irão fazer a sociedade progredir, o que provoca uma enorme fragmentação social. O “empreendedor” se converteu no modelo de cidadão que se propõe aos chilenos. “Triunfam aqueles que merecem” é a mensagem subliminar, com o conhecimento de que do conjunto dos “empreendedores” serão muito poucos os que chegarão à meta e que, em sua imensa maioria serão estrangulados pela competição e pelo controle do mercado pelas grandes empresas.

Deslumbrados, preferem ignorar que ninguém pode se tornar milionário honradamente. Podem aqueles que utilizam informações privilegiadas, enganam a seus sócios, evadem impostos, aproveitam as artimanhas tributárias e, sobretudo, exploram sem piedade os trabalhadores. Ninguém poderia se converter em multimilionário em trinta anos, como se ufana de tê-lo conseguido o presidente da República Sebastián Piñera.

A desigualdade exala por todos os poros do Chile. Não se expressa só nas relações entre as rendas. Há uma saúde para ricos e outra muito distinta para os pobres. O mesmo ocorre com a educação e com a previdência social. A cada intervalo de tempo estouram escândalos por causa da má qualidade das habitações. Construídas com péssimos materiais, em terrenos de baixa qualidade, põem em risco a vida e a saúde de seus habitantes, como se tornou manifesto no terremoto de 27 de fevereiro que foi enfrentado até com a solução de ‘mediaguas’ [cabanas de madeira] de qualidade inferior às que antes se proporcionavam às famílias de sem teto. Até os alimentos que os pobres consomem são piores que os dos ricos, dada a frouxidão do controle de qualidade sanitária das autoridades que fazem vista grossa diante da proliferação da comida de má qualidade.

Outra calamidade que afeta aos setores pobres é o endividamento estimulado pela multiplicação dos cartões de crédito: para eles restam os juros mais altos; sobre eles pesa a ameaça do ‘DICOM’ [espécie de SPC, no Chile]; para eles não existe a possibilidade de conseguirem crédito bancário.

As cifras são conhecidas e inegáveis. Como também o é a escandalosa concentração da economia chilena. Seis companhias dirigem as AFP [INSS do Chile] que controlam mais de cem bilhões de dólares em fundos de seus afiliados. Três cadeias controlam praticamente todo o negócio farmacêutico e impõem preços desumanos às medicações. Duas cadeias de jornais controlam a imprensa escrita. Dezesseis grupos econômicos produzem 80% do PIB. As redes de supermercados Cencosud e Wal Mart (D&S) controlam 70% das vendas dos supermercados. Uma só empresa telefônica – CTC – controla 75% da telefonia. Duas empresas, Endesa e Colbún, controlam 79% da geração de energia elétrica e estão impulsionando a construção de megarrepresas em Aysén, que põem em perigo o meio ambiente e aumentaram o poder das elétricas sobre o conjunto da economia. A magnitude dos lucros das transnacionais mineiras é quase inimaginável. Entre 2006 e 2007 se aproximaram de 40 bilhões de dólares!

A luta contra a desigualdade tem objetivos econômicos e políticos. Os primeiros têm a ver com mudanças substanciais na distribuição da riqueza, por meio da melhora na qualidade de vida e de uma proteção social mais ampla, equitativa e eficiente. Os objetivos políticos têm como norte ampliar a democracia e assegurar que os cidadãos possam se expressar como titulares da soberania e atuarem como titulares efetivos de seus direitos econômicos, sociais e culturais. Essa luta deve dar-se agora num novo terreno, em que o neoliberalismo fracassou, como demonstra a crise econômica que sacode a economia do mundo e que se expressa com rigor na Grécia, na Hungria, na Itália e cada vez mais na Espanha e em Portugal.

O neoliberalismo aparece como uma ideologia caduca e perigosa ao extremo para a estabilidade social.

Revitaliza-se hoje o papel do estado. Um documento da CEPAL, em a ‘Hora da Igualdade’, o “Brechas para fechar, caminhos para abrir”, que acaba de ser lançado, é categórico: “O documento é claro em suas propostas. Nele se ressalta a necessidade de um forte papel do Estado e a importância da política é um marco de revitalização e recriação da democracia em tempos de globalização”. E acrescenta: “O Estado é assim o principal ator na conciliação de políticas de estabilidade e crescimento econômico, de desenvolvimento produtivo com convergência e harmonização territorial, promoção do emprego de qualidade e maior igualdade social”. Postula ainda que “a igualdade social e um dinamismo econômico que transforme as estruturas produtivas não competem entre si”.

Não é fácil nem rápido o caminho a recorrer para alcançar a igualdade no Chile. Tem como primeiro obstáculo o atual governo de direita, que segue apegado às teses mais brutais do neoliberalismo. Suas propostas principais estão dirigidas para o favorecimento dos mais ricos, como se tornou evidente no debate sobre o projeto de reconstrução em que as cobranças de impostos ao empresariado e às transnacionais estão habilmente apresentadas para levantar gravames e devolver com correção monetária os recursos que forem arrecadados agora e nos próximos anos, garantindo a prolongação da invariabilidade tributária.

Impõe-se uma política de firme oposição à direita. Que denuncie seus planos repressivos e apóie e estimule a mobilização dos trabalhadores e dos setores populares. Deve ser também urgente: uma profunda reforma tributária é uma necessidade, assim como o estabelecimento de um sistema de royalty mineiro efetivo que resguarde os interesses nacionais. Devem ser exigidas medidas democratizantes e descentralizadoras e uma reforma nos sistemas de educação e saúde que terminem com o lucro e assegurem a prestação de serviços de qualidade para todos, especialmente para os setores vulneráveis. Isso implica firmeza frente à demagogia da direita e a busca de amplos entendimentos sociais e políticos que permitam avançar na direção de uma maior equidade e de uma solução das mais urgentes demandas populares.

O motor necessário que pode dinamizar essas lutas e alcançar importantes conquistas é o reagrupamento da esquerda. Cada dia se torna mais notória a falta de um núcleo orientador e formador de opinião pública que defenda um caminho de desenvolvimento econômico e social de projeção socialista, capaz de enfrentar o império da desigualdade.

O Chile pode chegar a ser um campeão de direitos e de felicidade para seus filhos. Mas é preciso decisão e vontade para empreender o caminho. Os precursores devem ser homens e mulheres inspirados nas idéias de esquerda. É um dever honroso reconstruir a identidade de uma alternativa de alcance socialista que convoque milhões de chilenos. Uma tarefa necessária para derrotar a desigualdade e impor a justiça.”

FONTE: editorial da revista chilena “Punto Final”. Publicado no site “Carta Maior” com tradução de Katarina Peixoto.

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