“A economia brasileira ainda apresenta algum grau de fragilidade em relação às suas contas externas. Em termos estratégicos, há que se alterar de forma profunda o perfil exportador, no sentido de incorporar produtos de maior valor agregado à pauta das vendas para o resto do mundo.
Paulo Kliass
De forma geral, a abordagem do senso comum a respeito do desempenho nas contas externas de um país tende a valorizar o superávit comercial. Quanto maior a superioridade das exportações sobre as importações, mais forte seria a economia nacional considerada.
Desse ponto de vista mais simplista, a situação brasileira atual não mereceria maiores preocupações. Nossa performance exportadora tem registrado valores bastante expressivos ao longo da última década. Desde 2001, a balança comercial tem apresentado resultados superavitários anuais. Saindo de US$ 2,6 bilhões em 2002, passa para uma média anual de US$ 34 bi para o período 2003/09. Parece não haver dúvida de que o principal responsável por tal resultado tem sido o aumento das exportações, que saíram de uma média anual de US$ 52 bi no período 1995/2002 para uma média anual de US$ 134 bi para o período 2003/09. Em meados de 2004 atingimos a meta carregada de forte simbologia: US$ 100 bi anuais!
Já o comportamento das importações também foi de crescimento. Para os mesmos períodos acima, a evolução foi de média anual de US$ 54 bi no período 1995/2002 para uma média anual de US$ 100 bi para o período 2003/09. Um dos fatores de tal aumento foi, sem dúvida, a retomada do ritmo de crescimento da nossa economia, uma vez que aumenta também a demanda por todo tipo de produto fabricado no exterior, desde matérias-primas até equipamentos, passando por bens de consumo.
No entanto, não basta apenas comemorar o saldo positivo e crescente da balança comercial. Faz-se necessário verificar quais são os principais componentes das exportações e das importações, para se ter uma avaliação mais apurada dos impactos econômicos da tal desempenho. Isso porque qualquer resultado de superávit provoca conseqüências positivas no curto prazo, mas nem sempre um valor total de exportações superior ao das importações é benéfico no longo prazo. Senão, vejamos.
Todos sabemos que um dos fatores mais importantes para a consolidação da Inglaterra como potência hegemônica a partir dos séculos XVIII e XIX foi exatamente a sua capacidade de influenciar a maioria dos países do mundo, à época, das idéias do livre-comércio nas relações entre as nações. O elemento que fazia a diferença era o fato de as exportações inglesas para o resto do mundo serem constituídas de produtos industrializados, ao passo que esses mesmos países exportavam para Inglaterra matérias-primas, sejam elas de natureza mineral ou agrícola.
É o fenômeno que os economistas chamamos de “capacidade de agregação de valor” aos produtos. Apresentar continuados resultados superavitários apenas por uma contabilidade em que as exportações são constituídas de matérias-primas e as importações são constituídas de produtos industrializados é, na verdade, uma estratégia que corresponde a não oferecer futuro de desenvolvimento ao país considerado. Isso porque se exportam bens com baixo valor agregado e importam-se mercadorias de alto valor agregado. Com isso, os efeitos econômicos de tal mecanismo implicam a venda para o mercado externo de produtos cuja produção envolveu baixo nível tecnológico, salários relativos também reduzidos e baixo nível de investimento necessário para a sua produção.
No sentido contrário, na importação pagamos ao país fabricante por produtos que envolveram processos de maior sofisticação tecnológica e que estão, em geral, mais à frente na cadeia produtiva. Trata-se da repetição de uma versão contemporânea da velha divisão internacional do trabalho, em que os países atrasados/dependentes/em desenvolvimento/subdesenvolvidos ou o carimbo que preferirmos adotar entram em desvantagem na relação comercial com os países mais evoluídos em termos tecnológicos e de agregação de valor.
No caso brasileiro, ainda não conseguimos dar o famoso salto à frente, no sentido de aprimorar nosso perfil exportador. Ao longo da última década, o avanço no volume de exportações não alterou de forma significativa a participação de produtos primários e de baixa intensidade tecnológica – o que muitas vezes a classificação chama de produtos primários e semi-manufaturados. Em geral, a participação média desses itens no valor total da pauta exportadora foi de 50%, tendo chegado a atingir 60% em 2009. Aqui pesam, fundamentalmente, produtos como soja, suco de laranja, minério de ferro, café, açúcar, álcool, combustíveis, entre outros.
Com relação aos bens importados, a nossa pauta é bastante carregada por itens de densidade tecnológica mais elevada, tais como bens de capital, bens duráveis e componentes de alto valor agregado, que chegaram a representar mais de 50% ao longo da última década. Em 2009, em particular, esse mesmo subconjunto participou em 58% do valor total das importações realizadas pelo Brasil.
Numa tentativa de síntese – um pouco simplificadora, é verdade, mas carregada de significado simbólico – esse modelo tende a perpetuar um Brasil ancorado na grande plantação de soja e na exploração de minas de ferro concedidas à Vale, enquanto continuamos a importar equipamentos de maior densidade tecnológica e da fronteira da inovação tecnológica produzidos no além mar.
Outra abordagem interessante de se fazer é aquela relativa à participação do Brasil no fluxo internacional de comércio, que vem a ser a soma total de exportações e importações mundiais. Apesar do crescimento da importância de nossa economia nos últimos anos, a presença de nossas exportações e importações ainda é bastante reduzida. Em 2000, o comércio internacional brasileiro representava 0,9% do total mundial. Esse índice subiu para 1,1% em 2009. A título de comparação, podemos buscar as informações dos demais parceiros do famoso grupo de países, o BRIC. Para o mesmo período, a Índia saiu de 0,7% e alcançou 1,6%. A Rússia detinha 1,1% e chegou a 2,0%. Já a China saltou de 3,6% para 8,8% no total do fluxo internacional. Ou seja, além de ter a menor participação entre os países desse grupo, o Brasil foi o que menos cresceu nesse quesito ao longo da última década. Enquanto o crescimento da participação do Brasil no fluxo internacional de comércio ao longo da década foi de 30%, os demais cresceram de 90% a 144%.
O comportamento do componente chamado “reservas internacionais” é também bastante relevante para avaliação das contas externas de um país. As reservas funcionam como uma conta de acumulação que os países realizam por meio dos superávits comerciais que realizam com o resto do mundo. Dessa forma, quanto mais recursos ingressam no país face ao volume de recursos que deixam as suas fronteiras, maior é o volume de reservas internacionais acumulados. No passado, como a referência das trocas internacionais era o ouro, o valor das reservas era mensurado em unidades de peso daquele mineral precioso. Com o processo crescente de monetarização e financeirização econômicas, e em função da ruptura unilateral do governo norte-americano do dólar com o padrão-ouro na década de 1970, os países passaram a acumular reservas em moedas e títulos considerados estáveis em termos de manutenção de seu poder de compra no mundo.
Nesse aspecto, pode-se afirmar que a situação brasileira é bastante confortável. Nosso nível de reservas internacionais saltou de uma média de US$ 35 bilhões entre 1990 e 2000 para uma média de US$ 117 bi para a década atual. Hoje em dia, o valor acumulado das reservas atingiu o recorde histórico de US$ 250 bi. Esse volume corresponde a quase 18 meses de importações, quando no passado variava entre 6 meses e 1 ano de capacidade importadora. Esse índice é visto como fator de redução de riscos em termos do setor externo de uma economia.
Porém, as contas externas de um país envolvem, para além do resultado de exportações e importações da Balança Comercial, o sensível equilíbrio do chamado Balanço de Pagamentos. E aqui são anotados todos os tipos de entradas e saídas de recursos do país – e não apenas os relativos à compra e venda de bens e serviços. Nessa contabilidade entram itens como a existência de estoque de dívida externa, o pagamento de juros a credores externos, o envio de lucros e dividendos, os investimentos estrangeiros diretos, entre outros.
A avaliação das contas por esse ângulo revela a necessidade de maior cautela face ao otimismo normalmente empregado. O saldo do Balanço de Pagamentos iniciou nos anos mais recentes um movimento de déficit significativo. Para o período 2002 a 2005, o saldo de entrada e saída de recursos ficou praticamente equilibrado. Porém, a partir de então, o comportamento começou a preocupar, com uma média anual de déficit superior a US$ 60 bilhões nos últimos 3 anos. Com o pagamento de juros ao estrangeiro, os valores da última década se mantiveram na média de US$16 bilhões anuais. Já as remessas relativas ao pagamento de lucros e dividendos para o exterior passaram de uma média de US$ 5 bilhões na primeira metade da década para uma média de US 24 bilhões por ano para o período 2006/09.
Assim, o que se percebe é que a economia brasileira ainda apresenta algum grau de fragilidade em relação às suas contas externas. Em termos estratégicos, há que se alterar de forma profunda o perfil exportador, no sentido de incorporar produtos de maior valor agregado à pauta das vendas para o resto do mundo. Num horizonte de mais curto prazo, há que se promover uma mudança na política cambial, com o objetivo de inverter a tendência à sobrevalorização do real em relação às demais moedas do mercado internacional. Além disso, é urgente o estabelecimento de um maior controle sobre as contas de capitais, de maneira a exigir que o capital financeiro especulativo estrangeiro - que vem para cá em busca de rentabilidade extraordinária oferecida pela elevada taxa de juros patrocinada pelo Banco Central – se comprometa com prazo mais longo de permanência e se dirija mais para o setor real da nossa economia.
FONTE: escrito por Paulo Kliass, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10. Publicado no site “Carta Maior”.
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