terça-feira, 30 de novembro de 2010

100 ANOS DA REVOLTA DOS MARINHEIROS – O FIM DA CHIBATA



 


CRIAÇÃO DE UM MITO

Autor: Historiador Hélio Leôncio Martins (Vice-Almirante Reformado)

“O autor atêm-se aos fatos históricos, e não à versão, possivelmente contaminada por modismos ou ideologias,talvez inspirados no episódio do encouraçado Potenkim, da Revolução Russa.

Não raro a veracidade histórica, as personalidades, os acontecimentos, as circunstâncias são substituídos por mitos de interesse patriótico, religioso, social ou ideológico, os quais, aceitos, tornam-se indestrutíveis, incólumes contra qualquer tentativa de se procurar a realidade.

Na atualidade, está se criando, se já não está criado, o mito de um marinheiro humilde, João Candido, que, em 1910, à frente dos navios mais poderosos na época, enfrentou o governo e a instituição a que pertencia, obrigando-os a abolir os desumanos castigos físicos que infringiam. Para a análise do que aconteceu realmente, é mister que, de início, se examine a situação difícil da Marinha quando se deu o motim vitorioso.


Seria de prever que as Forças Armadas fossem privilegiadas na passagem do século, com a República dirigida por militares. Mas deu-se o contrário. Disputas pelo poder cindiram-nas, resultando em oito meses de cruenta guerra civil. A Marinha desapareceu material e moralmente. Outros fatores cooperaram para isso. A Revolução Industrial, que não pudemos acompanhar, fez-se sentir nas Marinhas de Guerra ao longo da segunda parte do século XIX, com a radical passagem da propulsão vélica para o vapor e, em seguida, pelos aperfeiçoamentos com a aplicação da hidráulica, da eletricidade, da metalurgia e da balística.

No Brasil, para efetuar a reforma que seria necessária, a parte mais difícil foi o recrutamento, com o baixo nível cultural e de conhecimentos da classe onde era ele feito. Ao lado dos poucos técnicos que se podia conseguir, manteve-se no serviço ativo a maioria do pessoal da vela, os chamados “gorgotas”, rudes, muitos deles enviados pela polícia como se fossem para uma penitenciária, ou ex-escravos que procuravam abrigo, pedindo-se deles apenas robustez e coragem para operar as velas. Essa dualidade de elementos humanos dificultava especialmente manter a disciplina, pois seu procedimento e as exigências eram diferentes.

Uma tentativa para se resolver esse problema foi a criação das Escolas de Aprendizes e Escolas Profissionais. Das primeiras, o relatório de um inspetor em 1910 dizia que os alunos saíam semi-analfabetos. Nas Escolas Profissionais, o aproveitamento era mínimo. Poucos terminavam os cursos. A situação não era melhor entre o oficialato. A mutação para o vapor, a precisão e alcance da artilharia modificaram não só os necessários conhecimentos técnicos, como a tática e a estratégia navais, e a Escola Naval não acompanhou essas modificações. Piorando a situação, estavam sendo incorporados 14 navios moderníssimos, cuja construção fora autorizada pelo Congresso em 1906. O número de especialistas em 1910, em comparação com os quadros exigidos (mesmo estes diminutos), mostram a falência do recrutamento para guarnecê-los. Por exemplo, eram previstos 118 torpedistas e 118 artilheiros, e havia apenas 5 dos primeiros e 70 dos segundos. Já os sem especialidade, que deveriam ser 1770, somavam 3202.

Era esta a posição da Marinha, afetada por tais fatores negativos, quando, a 22 de novembro de 1910, amotinaram-se dois encouraçados modernos, o Minas Gerais e o São Paulo, um antigo, o Deodoro, e o cruzador Bahia.

No Minas Gerais, a noite corria tranquila. O comandante chegara de jantar em um cruzador francês e descera para a câmara. Neste momento, um grupo de marinheiros embuçados correu para a popa, aos gritos de “abaixo a chibata”, “liberdade”, e atacou o oficial de serviço, cravando-lhe no peito uma baioneta. O comandante, ouvindo os gritos, subiu para o convés, mas foi agredido com objetos lançados e, depois, abatido a tiros. De três oficiais que apareceram, dois foram atingidos pelos tiros e o terceiro lançou-se ao mar. Os matadores fizeram um exibição macabra, urinando no cadáver do comandante e reproduzindo comicamente a ginástica a que eram obrigados a fazer para compensar a vida mais sedentária nos navios a vapor. O avanço dos rebelados não obedeceu a nenhum líder. João Candido não apareceu. E não evitou a mortandade, que não ocorreu nos outros navios rebeldes.

No São Paulo, o chefe amotinado dirigiu-se ao oficial mais graduado a bordo, dizendo-lhe estarem rebelados para acabar com a chibata e pedindo-lhe que desembarcasse com os oficiais. Um tenente, não concordando, escondeu-se, esperando reação. Vendo-se isolado, suicidou-se.

No Bahia, quando os marinheiros da guarda não quiseram formar, como ordenara o oficial de serviço, este atirou, matando um dos rebeldes. Os marinheiros corriam em torno, para evitar seus tiros e cansá-lo. Por fim, Dias Martins, que chefiava o motim do Bahia, autorizou o revide, que o matou.

O quarto navio a se amotinar foi o Deodoro, que só o fez de madrugada, e sua adesão foi provocada... por um oficial. Haviam mandado uma lancha à Praça XV. Um tenente, que se divertia na noite da cidade, bastante embriagado, soube da sublevação. Vendo a lancha, ocupou-a, fazendo valer seu posto, e determinou que rumasse para o Bahia, onde ele servia. Não podendo atracar, foi para o Deodoro e, com gritos e imprecações, disse que a esquadra estava rebelada contra o governo e que ou iria aderir, ou guarnecer os canhões e atirar nos sublevados. Deu ordens, que foram contrariadas pelo cabo José Araújo, ligado ao motim, o qual então assumiu a chefia dos insurgentes.

Os amotinados enviaram um rádio ao governo, dizendo que exigiam o fim dos castigos e, caso não recebessem a resposta em 12 horas, bombardeariam a cidade. Passaram a noite navegando vagarosamente entre os navios, intimando-os a se sublevarem, atirando com canhões de pequeno calibre, sem acertos. Alguns tiros dirigidos contra a terra mataram duas crianças. Nenhum navio aceitou a intimação, alguns içando falsamente bandeiras vermelhas e outros refugiando-se no interior da baía.

Com a anistia, nenhum processo apurou os aspectos da preparação do motim, pelo que pouco se conhece de seus detalhes. Que a revolta não teve caráter político ou ideológico, sem qualquer interferência externa, é certo. Tratou-se exclusivamente de motim militar, objetivando modificações no regime interno da Marinha, com o fim da chibata. Ele já vinha sendo tramado, havendo sinais de descontentamento em vários navios. Existem informações de nomes e endereços em reuniões conspiratórias, mas nenhuma notícia de uma na qual líderes determinassem como seria o movimento.

Também deve ter inspirado o motim o fato de muito marinheiros, principalmente os técnicos, estagiando na Inglaterra alguns meses, durante a construção da esquadra de 1906, poderem acompanhar campanha da imprensa inglesa na época, para melhor tratamento dos marinheiros Os “garantias” que embarcaram no novos navios devem ter ficado escandalizados com o espetáculo do chibateamento, proibido na Royal Navy em 1881.

Aos novos técnicos repugnava principalmente a chibata, e devem ter sido os mais influentes para a sublevação, mas não seriam prestigiados o bastante para comandá-la, tendo que apelar para os antigos “gorgotas”, que, além das punições, não aceitavam o regime dos navios mecanizados, verdadeiras organizações industriais, ao qual não estavam acostumados.

Para todos os efeitos externos, o líder do motim de 1910 foi João Candido Felisberto, do Minas Gerais. Reconhecido como tal pelo governo, enaltecido pela imprensa, aceito pelo Congresso, até consagrado pelos castigos a que foi submetido. Quanto ao porquê de ter sido indicado para ocupar essa posição, só se pode fazer conjecturas, pois, com a anistia, nada ficou registrado.

Em carta apócrifa, endereçada em 1949 a um oficial, seu possível autor, Francisco Dias Martins, reduz o valor de João Candido. Mas foi ela escrita visivelmente em tom de amargor de quem viu seu papel no motim, que considerava o principal (talvez fosse), subtraído ante a promoção recebida por outrem. Estava ele a bordo do Bahia. Mas nem todas as suas afirmativas coincidem com os acontecimentos conhecidos – e, pelo fato de ser a carta apócrifa, só pode ser utilizada como mais um elemento de análise.

João Candido nasceu em 1880 no município de Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, onde seus pais seriam escravos já libertos. Era um negro alto, encorpado, introvertido, de poucas palavras e poucos gestos. Com 15 anos, entrou para a Escola de Aprendizes. Serviu em diversos navios mistos e a vapor, sem exercer função que o salientasse. Em 1906, embarcou no navio-escola Benjamim Constant, cruzando pelo norte da Europa. Depois, esteve no cruzador Trajano, outro veleiro, navegando pela costa do Brasil. Voltou ao Benjamin Constant, viajando pela França, Portugal e Inglaterra, sendo transferido em Newcastle para o Minas Gerais em construção. Tentou ser sinaleiro, mas não o conseguiu por haver deficiências em sua leitura. Chegou a cabo, mas perdeu as divisas por excesso da faltas: quatro, por luta e agressão. Tinha uma cicatriz de navalhada nas costas, cuja origem se desconhece. Realmente foi bom em duas funções: como timoneiro (homem do leme) e manobrando as velas de um mastro, ambas não exigindo conhecimentos especiais. Seus contemporâneos consideravam-no, apesar de suas faltas, todas ligadas à violência, um tipo calmo quando não era agredido, acomodado, capaz de chegar a um acordo.

Francisco Dias Martins apresenta-se como mentor intelectual do motim. Natural de Fortaleza, foi matriculado na Escola de Aprendizes, como um dos “impossíveis”, pois era de família com alguns recursos. Tinha curso primário, sabia ler e escrever, falava bem. Era um rebelde por natureza, o único que como tal aparecera antes do motim, na viagem do Bahia ao Chile, quando fez chegar ao imediato do navio uma carta, assinada “mão negra”, dizendo que os marinheiros não deveriam ser tão castigados, e ameaçando reação.

Manoel Gregório era trabalhador e inteligente. Natural de Alagoas, para ser promovido seria necessário cursar uma Escola Profissional, pelo que nunca se interessou. Sobre o cabo Antonio Araújo, nada se sabe. Depois de anistiados, ambos desapareceram.

Na manhã do dia 23, a notícia do motim chegou ao Congresso, provocando grande indignação. Quintino Bocaiúva, líder do governo, apressou-se a dizer que não houvera no motim nenhuma interferência política e que o Senado estava ao lado do governo. A seguir, o senador Alfredo Elis, da oposição, afirmou “serem suas as palavras do senador Quintino... que nada era mais deprimente para a nação do que tal insubordinação!”. Rui Barbosa, a grande figura política da época, em longa oração, expressou “a amargura, a agonia, diante de fato que mais uma vez visa colocar em dúvida o valor de nossas instituições e a segurança de nossa tranquilidade”. Na Câmara, tudo se repetiu. O líder da situação disse: “[...] desgraçadamente, a maruja brasileira, amotinada, obedecendo a interesses inconfessáveis, põe em grave risco a ordem, o sossego e os próprios créditos da Nação”. A oposição manifestou-se do mesmo modo: “Se o Governo precisar de algo, além daquilo que a legislação lhe faculta, venha pedi-lo, porque a oposição está com ele; [...] o que se passa é uma extrema manifestação da anarquia da maruja que não pode ter solidariedade alguma da Nação”.

A imprensa manifestou-se nesse dia em seus editoriais: O Correio da Manhã, da oposição, escreveu: “[...] não se imaginava que a disciplina de nossas tropas de mar estivesse em tal decadência, a ponto de se apoderarem de seus navios, matando comandante e oficiais, impondo condições humilhantes ao Governo... que não tem que recuar nesta luta a que foi levado pelos desvairamento e loucura de alguns marinheiros.” O País afirmou: “[...] o simples fato da revolta bastaria para levar cada brasileiro a ter uma impressão de mágoa e de vergonha... não houve exatamente rebelião e sim um ataque inesperado e a traição”. O Diário de Notícias, da oposição, acrescentava: “[...] diversas queixas dos marinheiros contra seus superiores circulavam ...de qualquer modo, sejam quais forem as causas que levaram à revolta, os fatos são na verdade lastimáveis”.

Até este momento soprava pelo Congresso e pela imprensa um vento forte de indignação, de repulsa, de respeito pelas leis e disciplina militar, expressos tais sentimentos por palavras candentes e vibrantes. Tais atitudes iriam mudar de maneira rápida e radical em pouco tempo.

O senador Pinheiro Machado fora o responsável pela vitória de Hermes da Fonseca para a presidência da República. Homem de ação, não se limitou a discursar. Queria ver como o movimento poderia prejudicar a política do presidente, e como isto seria evitado. Na manhã seguinte à eclosão do motim, mandou um deputado de seu partido, José Carlos de Carvalho, verificar o que havia. Carlos de Carvalho havia sido oficial da ativa, e, tendo deixado o serviço, fora graduado Capitão-de-Mar-e-Guerra Honorário, por ações na proclamação da República e na Revolta da Armada. Tinha bom conhecimento do que se passava. A 27 e 28 de outubro escrevera dois artigos no Jornal do Comércio sobre a situação no Minas Gerais e o mau aproveitamento nas Escolas de Aprendizes.

Carlos de Carvalho conseguiu um lancha no Arsenal de Marinha, retirou de um dos mortos o lençol que o cobria, para servir de bandeira de trégua, e rumou para o São Paulo. Cruzou com uma lancha que trazia mais vítimas e o Memorial mandado pelos marinheiros ao presidente da República, do qual ele se apossou.

A única exigência concreta desse Memorial, podendo ser atendida de imediato, era o fim da chibata. As outras se referiam a medidas de médio e longo prazo, destinadas à correção de todos os erros que afetavam a Marinha de então.

Há uma coincidência interessante. Nas edições de 7 a 30 de julho de 1910, o Jornal do Comércio publicara uma série de artigos, visivelmente de autoria de oficiais de pouca graduação, relativos à situação e à fraqueza das Forças Armadas. Listava, entre outras medidas necessárias à reorganização da Marinha, a atenção para ela dos órgãos e orçamentos governamentais, e a boa preparação profissional dos oficiais e marinheiros. Uma Assembléia no Clube Naval discutiu se os artigos eram um retrato da realidade, e os aprovou. Tais aspirações aparecem no Memorial, o qual terminava de forma enfática: se não formos atendidos, “aniquilaremos a Pátria”. Foi ingenuidade dos subscritores este fim tão ameaçador, como a menção do bombardeio da capital. No afã de serem enérgicos em suas exigências, não perceberam que a dose do remédio era forte demais. Cumpririam o que prometiam, se o governo decidisse demorar no atendimento?

Do São Paulo mandaram Carlos de Carvalho para o Minas Gerais, capitânea do motim. Foi recebido, conversou com João Candido. Mostraram-lhe um marinheiro que fora chibateado na véspera. Dirigindo-se à tarde ao Congresso, Carlos de Carvalho descreveu o que vira e ouvira. Depois de falar do homem chibateado, cujas costas “pareciam uma tainha lanhada”, ajuntou declaração dos marinheiros: “Fizemos tudo porque basta de sofrer e não sabemos ainda o que faremos. Pedimos perdão, mas nos sentimos amparados em nosso degredo quando soubemos que V. Exa. viria para ser o intermediário de nosso perdão. Seja nosso benfeitor e nos livre da desgraça em que caímos, que não foi nossa culpa. E que o Marechal Hermes nos perdoe!” Tais palavras não estavam de acordo com a arrogância do Memorial e as ameaças pelo rádio. Mostravam os rebeldes em posição humilde. Agora era preciso impressionar o Congresso com o que poderia acontecer quando mostrassem suas garras. Carlos de Carvalho afirmou que os marinheiros seriam invencíveis com os 100 canhões atirando sobre a cidade inerme e lembrou as responsabilidades do Congresso se isto não fosse coibido. Disse mais: “A gente que está a bordo é capaz de tudo, quando os chefes e marinheiros são indivíduos alucinados pela desgraça em que caíram[...] a situação é gravíssima”. Os Congressistas, atordoados, fizeram-lhe grande número de perguntas a fim de se porem a par da situação. Estava descrito o quadro, com as cores às quais Carlos de Carvalho acrescentara tonalidades convenientes.

Sentindo ser garantida a aprovação do que pretendia, às 16 horas, depois de conferenciar com o presidente e seus ministros, Carlos de Carvalho voltou ao Minas Gerais e deu a João Candido certeza de ser obtida a anistia, e que nada fizessem até ela ser sancionada. Daí em diante a evolução dos acontecimentos foi de espera – o motim mais curto de que se tem notícia.

Os marinheiros reconheceram a decisão do governo com vários radiogramas garantindo que nada fariam, indo os navios passar a noite fora da barra. E assinaram como “reclamantes”, nome logo adotado pelo Congresso e pela imprensa, nos quais se desencadeara, com inusitado vigor, campanha pela anistia, plena de emoção, imaginação... e receio dos canhões.

Rui Barbosa tão veemente, pela manhã, a favor da ordem e da disciplina, à tarde voltou a falar: concedia “ser a covardia uma triste coisa, mas coisa ainda mais triste é a jactância, é a soberba em situação que só pela transação pode-se resolver”. Elogiava a pureza das intenções dos marinheiros. Dizia: “A força das máquinas de guerra são os homens que as manejam e as arremessam contra inimigos. E as almas desses homens têm revelado virtudes que honram a nossa gente e a nossa raça!” Concluía: “Esta é uma revolução honesta!” E apresentava projeto de anistia.

Este discurso deu o tom a tudo o que foi dito e escrito, mostrando pânico, ignorando mortes e ameaças ao reconhecer a própria culpabilidade e a justificar a ação dos insurretos. Todas as declarações que se seguiram obedeceram ao mesmo teor: respeito aos “reclamantes’, anistia incondicional e tudo o mais que fosse preciso para afastar a mirada dos canhões. Tantas concessões, e a pressa com que estavam sendo feitas, ultrapassaram o pundonor gaúcho do senador Pinheiro Machado. Disse: “Creio ser tudo muito justo, mas as reclamações são feitas com os canhões apontados contra a cidade A situação das autoridades é delicada. Trata-se de fatos que precisam ser reparados e não serem frutos do temor, do medo, dos grandes perigos que pairam sobre a Capital. A concessão da anistia foi dada antes de ser votada. Se concedida no momento oportuno, terá resultado, e não quando concessões tão facilmente obtidas enveredam pelo caminho de exigências sucessivas!” Mas chegou ao Congresso um radiograma de Carlos de Carvalho anunciando que os amotinados se submetiam às autoridades. A anistia foi aprovada. O motim, encerrado, limitou-se, daí em diante, a aguardar a votação nas duas Casas do Congresso e a sanção presidencial,

O Congresso foi discreto em suas manifestações. Mas na imprensa elas foram delirantes, aprovando a anistia como a salvação, acrescentando loas exaltadas aos marinheiros e, em especial, à figura de João Candido. Houve agradecimentos públicos pela generosidade dos rebeldes que poupavam a cidade, embora até aquela hora o fizessem porque estavam sendo atendidos. E estendiam-se exageradamente na admiração à eficiência operativa com que os navios manobravam, quando apenas giravam vagarosamente na parte mais profunda e segura da baía, do que qualquer timoneiro treinado seria capaz. Sem dúvida, ceder era a única coisa a fazer, mas poderia ter havido um pouco mais de dignidade na derrota.

No dia 26, o Diário de Notícias escreveu: “João Batista da Neves, comandante do Minas Gerais, e João Candido são duas figuras nacionais. O primeiro é o herói do dever, o mártir da disciplina; o segundo, o mártir da autoridade, o herói da audácia e da coragem, tipo de bravura admirável, símbolo militar de uma raça... Bendita a providencial revolta. Bendita seja ela. Bendita e glorificada.” O Correio da Manhã era mais cordato: “A anistia foi a capitulação dos próceres públicos, e, como toda capitulação, deplorável. Melhor teria sido se não viesse a figurar em nossa História. Mas, incontestavelmente, foi remédio extremo para extremo mal.” Os outros jornais afinaram-se pelo mesmo diapasão.


A anistia, como foi concedida, sem quaisquer outras concessões de parte do governo, mostra que os marinheiros só se preocuparam com os efeitos imediatos de sua atitude, sem prever a sequela que pudesse haver. Mantiveram durante o movimento coesão de pontos de vista, facilitado, aliás, pela falta de resistência encontrada. Além da anistia, nada mais era prometido. A chibata deixou de ser usada, mas sem que nenhuma determinação legal clareasse o emaranhado de leis que regia a aplicação de castigos corporais. A sua proibição vinha da Constituição de 1824, referendada na República por Decreto de 1889. Mas, a 12 de abril de 1890, novo Decreto, assinado pelo presidente Deodoro e pelo ministro da Marinha, Wandenkolk, criou na Marinha a “Companhia Correcional”, onde eram “segregados os praças de má conduta habitual” e, se cometessem faltas graves, eram castigados com até 25 chibatadas. Códigos e Regulamentos internos da Marinha obedeciam a esse Decreto.

Sendo tão simplificada a Lei da Anistia, no dia seguinte à sua sanção, sem desobedecê-la diretamente, foi autorizada por Decreto a baixa imediata dos praças cuja permanência se tornasse prejudicial à Marinha, para o que a legislação anterior exigia condenação formal por um Conselho de Disciplina. Mais de 2 mil marinheiros foram dispensados. Só uma voz levantou-se no Congresso – a de Rui Barbosa –, afirmando não ser essa medida juridicamente correta, além de ter anulado a anistia, e verberando por isso o governo. A imprensa apenas alegrou-se com o fim da ameaça, aliviada. E, a 27, já se iniciara, executada pelos ex-rebeldes, a retirada e o desembarque dos aparelhos de disparo dos canhões e da munição dos navios amotinados, o que significava que, em dois dias, a espinha dorsal da sublevação fora quebrada.

A situação dos oficiais recebidos a bordo depois da anistia foi difícíl. Todas as ordens vinham da proa, através de um intermediário. A ação de João Candido não se fazia sentir, substituído pelos elementos mais radicais, que se chamavam os “faixas-preta”. Os marinheiros, sentindo-se desamparados, passaram a recear o ataque dos “caçadores”, como chamavam o Exército. E criam que a permanência dos oficiais a bordo poderia defendê-los.

A situação ia-se acalmando quando, em dezembro, insurgem-se parte do Batalhão Naval e o cruzador Rio Grande do Sul, sem que fizessem nenhuma declaração ou reivindicação. Não tinham ligação com os navios revoltados em novembro. Como havia alguns sinais de que algo se preparava, a insurgência foi logo dominada. Só se pode especular que este segundo levante tenha sido comandado pelo desejo de imitação, inveja da exaltação e da projeção dos que tomaram parte na primeira rebelião.

Nos quatro navios rebelados em novembro, as guarnições ficaram muito excitadas, o que fez as autoridades navais esvaziá-los, sem grande dificuldade. Medida governamental, entretanto, sombreou a já escura página da História. Desencadeou-se, por parte das autoridades, uma ação de revide contra as figuras que haviam tido maior projeção em novembro. Foram acusadas de terem participado nos dois levantes, perdendo assim o status de anistiados – isto, entretanto, antes de ser concluído um Conselho de Investigação para apurar quem o tivesse feito.

Era prática comum na época a chefia da Polícia reunir pequenos ladrões, prostitutas, vagabundos, e enviá-los para a Amazônia, uma espécie de Sibéria tropical. Em uma leva deles, embarcada no mercante Satélite, que largou a 25 de dezembro, juntaram, com uma escolta de 54 soldados do Exército, 96 marinheiros, considerados perigosos se ficassem soltos na Capital. Na viagem, houve denúncia de conspiração a bordo. O cabecilha, reconhecido, foi fuzilado. O navio rumou para o Acre, onde os prisioneiros seriam contratados pela Estrada Madeira Mamoré e pela Comissão Rondon. No caminho, mais quatro marinheiros foram fuzilados; dois outros, algemados, lançaram-se ao mar. Ao chegarem na Amazônia, nem a Estrada de Ferro nem a Comissão quiseram recebê-los, pelo que foram entregues aos seringueiros. Nada mais se soube deles.

O primeiro a sentir o peso das represálias foi João Candido. Os panegíricos delirantes haviam lhe dado tal ênfase, que, erradamente, o colocaram como símbolo do motim, resumindo em sua pessoa tudo o que houve de odioso, de violento. Aprisionado a 13 de dezembro, enviaram-no para a Casa de Detenção, daí para prisões do Exército, iniciando-se um longo calvário. Suas provações começaram por castigo que foi apontado como uma condenação à morte, do que teve toda a aparência, embora não houvesse essa ideia. No dia 24 de dezembro, o Exército remeteu-o para o Presídio Naval, no Corpo de Fuzileiros com 17 outros prisioneiros, que foram colocados em uma cela pouco ventilada. O comandante dos Fuzileiros, não tendo confiança no carcereiro, levou consigo a chave da cela. Durante a noite, foram ouvidos gritos, tendo o oficial de serviço querido abri-la, mas não encontrou a chave. Na manhã seguinte, dos 18 encerrados, só dois estavam vivos, um deles João Candido. Como era de se esperar, depois do transe por que passara, apresentou perturbações psicosensoriais, conforme exame feito por médicos da Marinha a 7 de abril, que, em laudo, consideraram-no vítima de “astenia cerebral, com melancolia e episódios delirantes”. A 18 de abril, foi transferido para o Hospital Nacional de Alienados, onde, recuperando-se aos poucos, permaneceu pouco mais de um mês. Voltou para o Presídio, aí ficando até ser absolvido pelo Conselho de Guerra.

Essa vingança, sem razão de ser, serviu mais do que qualquer outra coisa para colocá-lo, e o motim, sob o foco da notoriedade. Libertado em 1912, empregou-se, com seus conhecimentos de manobra de velas e de governo de navios, nos veleiros que faziam o comércio costeiro . E desapareceu do noticiário. Não há explicação como vimos, de João Candido ter sido indicado como líder do motim. Não teria capacidade para tomar decisões se a revolta evoluísse para uma reação, mesmo passiva. Não teve prestígio para evitar o segundo motim, que abriu flanco para o revide do governo.

São lamentáveis os sofrimentos, os castigos e a injustiça sofridos por João Candido. Mas nem isso, nem os adjetivos surpreendentes com que a imprensa o definiu, de herói, bravo, audacioso, excepcional, manobrista excelente, dão-lhe estatura para se tornar um mito nacional. Ou lhe atribuir conhecimentos e capacidade de comando. Nada disto suplanta a realidade. Sua carreira na Marinha, anterior ao motim, foi amorfa. Com 15 anos de serviço, nunca passou de marinheiro. Sua presença no planejamento do motim não é conhecida. Como chefe nominal da rebelião, foi figura passiva. Nem memoriais nem ordens aparecem como tendo sido escritos por ele. Sua atitude rebelde foi inexpressiva, apenas aguardando os apressados trâmites burocráticos do projeto da anistia que a transformariam em lei. Absolvido, como civil, não exibiu qualidades de líder. Sua presença, bastante modesta, se esvaneceu por 40 anos, só sendo restabelecida pelo esforço de um jornalista.

João Candido teve seu momento de glória. O abandono a que fora relegada sua memória foi substituído pela entronização, como o defensor dos humildes, o Almirante Negro invencível no passadiço do capitânea da esquadra rebelde. Mas, ante o que se passou na verdade, torna-se um mito sem embasamento histórico.

A Revolta dos Marinheiros de 1910 tem sido analisada, debatida, por historiadores, sociólogos, políticos, considerando-a ação social importante – a vitória do elemento humilde contra a ditadura e a violência dos superiores, acontecimento guardado na memória histórica como exemplo a ser admirado e seguido. Houve de fato um confronto entre subordinados e dirigentes, com vantagens iniciais para os primeiros. Resta saber em que segmento social esses acontecimentos se passaram: uma força armada, a Marinha.

Neste caso, o que aconteceu pode ser visto com aspectos mais simplistas. As Forças Armadas em um país pacífico como o Brasil, raramente utilizadas em conflitos internacionais, para manter em tempo de paz eficiência que corresponda a seu custo e ao que se espera delas, têm que ser defendidas por uma armadura moral e material que contrabalance o relativo artificialismo em que vivem, sem evidente necessidade imediata. Se, por efeitos externos ou internos, essa armadura cede, atingindo os ditames rígidos aos quais obedecem as forças armadas, eficiência, cumprimento do dever e disciplina, entram elas em decadência, vivem de exterioridades, o que se reflete obrigatoriamente nas suas atividades e no procedimento de seu elemento humano.

No início de século XX, como vimos, foram muitos os fatores negativos que afetaram a Marinha, tais como: o abandono em que se encontrava; a crescente estagnação de suas atividades; a estrutura orgânica não atualizada; o recrutamento do pessoal subalterno feito em níveis baixos da população e o preparo deficiente dos homens que deveriam guarnecer os navios modernos; o regime disciplinar baseado nos castigos corporais; a aquisição de 14 navios de tipos ainda pouco existentes, com exigências técnicas e orgânicas muito acima de nossas possibilidades; a mistura a bordo de elementos de má índole com os de melhor nível, todos submetidos ao mesmo regime disciplinar; o enorme afastamento cultural e social existente entre oficiais e praças. Esses foram os ingredientes que, apurados no tempo, acumularam-se até chegarem ao ponto crítico – e deflagrar o motim de 1910.

A comédia de erros que afetou uma triste fase da vida da Marinha pode ser lembrada, analisada, comentada, lamentada – mas nunca comemorada.”

FONTE: escrito pelo Vice-Almirante Hélio Leôncio Martins, membro do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB). Referência: “A Revolta Dos Marinheiros, 1910”, por Helio Leôncio Martins (Serviço de Documentação Geral da Marinha, ISBN 8504002187 (85-04-00218-7).[imagens adicionadas por este blog].

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