sábado, 26 de fevereiro de 2011

BELLUZZO SOBRE RELATÓRIO DOS EUA: “É A AUTÓPSIA DO SISTEMA”

            (foto: Leticia Kaplan Fernandes/Terra Magazine)

O economista Luiz Gonzaga Belluzzo já alertava sobre uma crise desde 2007

Por Bob Fernandes e Marcela Rocha

“Terra Magazine publicou, na quarta-feira (23) e quinta (24), a essência de contundente relatório do Congresso norte-americano. Seis deputados do Partido Democrata e quatro do Partido Republicano integraram a Comissão que vasculhou as vísceras da crise econômica e financeira nascida nos Estados Unidos e espalhada pelo mundo.

Na conversa que se segue, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, um dos primeiros a alertar, desde 2007, sobre a bolha hipotecária nos EUA, fala sobre as conclusões do Congresso dos EUA e sobre os efeitos da crise que se prolonga neste 2011.

Antes de mais nada, Belluzzo diz o que pensa sobre as conclusões do Relatório do Congresso norte-americano, um catatau de mais de 600 páginas:

- O relatório, que é muito bem feito, montado numa trilogia de depoimentos, descrição de fatos e análises, é uma autópsia do cadáver do sistema financeiro nos últimos trinta anos. É a autópsia de um morto-vivo, um zumbi que ainda pode voltar a nos assombrar.

Sobre os riscos do boom no mercado imobiliário no Brasil, o economista aponta as diferenças entre os movimentos no setor lá e cá:

- Tivemos uma subida forte no preço dos imóveis, mas que dá sinais de arrefecimento. Por conta até das medidas que o Banco Central tomou, não em relação ao crédito imobiliário, mas em relação às outras formas de crédito. A diferença é que no Brasil você não pode usar o seu imóvel e a valorização dele como garantia para extrair mais valor. (...) Na economia dos Estados Unidos, basta que alguns tenham muito para que a economia seja sustentada. Eles estão indo pelo caminho da brasilianização, mas em direção ao Brasil do passado.

Belluzzo vislumbra para os EUA um futuro econômico muito semelhante ao período que antecedeu a crise. "Até agora, está tudo como antes, os bancos estão líquidos, com lucros monumentais, até agora só quatro pequenos funcionários foram presos. Não há uma nova regulamentação, e a feita foi muito tímida. Obama não teve coragem".

Sobre as razões que levaram os EUA a verem seu sistema imobiliário e financeiro em colapso, o professor é taxativo: "As casas foram transformadas em commodity". Ele explica:

- Você pegou um bem de consumo que te produz um serviço não monetário, uma renda não monetária (caso o dono não alugue), e transformou em commodity. Houve uma mudança na forma como o capitalismo americano funciona. Desde os anos 1920 o consumo e o capitalismo foram sendo colocados para dentro. Hoje o consumo tem quase a mesma dinâmica que o investimento.

Confira a entrevista:

Terra Magazine - Belluzzo, que análise você faz sobre o relatório que o Congresso norte-americano fez sobre a crise econômica que começou nos Estados Unidos e se espalhou por quase todo o mundo?

Luiz Gonzaga Belluzzo -
O relatório, que é muito bem feito, montado numa trilogia de depoimentos, descrição de fatos e análises, é uma autópsia do cadáver do sistema financeiro nos últimos trinta anos. É a autópsia de um morto-vivo, um zumbi que ainda pode voltar a nos assombrar.

Há alguma semelhança entre esse boom do consumo imobiliário brasileiro com o que ocorreu nos Estados Unidos?

Há uma diferença muito grande. Tivemos uma subida forte no preço dos imóveis, mas que dá sinais de arrefecimento. Por conta até das medidas que o BC tomou, não em relação ao crédito imobiliário, mas em relação às outras formas de crédito. A diferença é que no Brasil você não pode usar o seu imóvel e a valorização dele como garantia para extrair mais valor. O cara pagava a escola do filho, o cartão de crédito e até imposto com empréstimos. Na economia dos Estados Unidos, basta que alguns tenham muito para que a economia seja sustentada. Estão indo pelo caminho da brasilianização, para o Brasil antigo.

Há, no relatório, um depoimento dizendo que "o sonho americano de ter uma casa para a família se tornou um commodity". Como o senhor avalia essa afirmação?

Isso é que é importante. Você pegou um bem de consumo que te produz um serviço não monetário, uma renda não monetária (caso o dono não alugue), e transformou em commodity. Houve uma mudança na forma como o capitalismo americano funciona. Desde os anos 1920 o consumo e o capitalismo foram sendo colocado para dentro. Hoje o consumo tem quase a mesma dinâmica que o investimento. Como era o consumo quando Keynes escreve a teoria geral? O consumo era uma função da renda, ou seja, quando a economia cresce, a renda cresce, mas o consumo cresce menos porque as pessoas ficam mais ricas e guardam dinheiro... Hoje, não existe mais essa de poupar. O capitalismo foi feito para gastar. Então, fica essa história, que vem das origens da economia política, de que o sujeito cresce porque ele é frugal. No capitalismo, as pessoas gastam para que o sistema funcione. Então, não tem mais essa história. Houve também uma mudança cultural.

Existiam vários tipos de contrato nas hipotecas que levaram à quebradeira nos Estados Unidos, alguns com nomes estranhos e que permitiam até mesmo não pagar nada por dois ou três anos...

É o que Karl Marx escreve no volume três do Capital que é a fraude, a sacanagem. Ele já sacou isso lá atrás. Ele e o Simmel. É que os caras não leram Simmel, muito menos Marx. Keynes fala que virou uma bolha, uma corrente de bolhas no meio da atividade produtiva.

Quais são as consequências, as medidas práticas tomadas depois disso tudo, nos EUA e mundo a fora?

Nenhuma. A consequência prática é que eles vão eleger uma pessoa fraca para a presidência da República na próxima eleição. Até agora, está tudo como antes, os bancos estão líquidos, com lucros monumentais, até agora só quatro foram presos. Não há uma nova regulamentação, e a feita foi muito tímida. Obama não teve coragem. Pessoas perderam suas casas, não teve conversa. O banco tomava as casas e as pessoas iam morar em trailers.

E consequências mundiais?

Os americanos entupiram o mundo de dinheiro. O Timothy Geithner veio dizer que isso tudo não tem nada a ver com a valorização do Real, nem com o que eles fizeram, e colocou a culpa nos chineses. Na verdade, eles não podem brigar com a China porque os chineses financiam o déficit deles (EUA) e ainda produzem mercadoria barata. Então, eles bombaram dinheiro para todo lugar do mundo. Têm liquidez, mas não tem crédito. E agora a economia americana está recuperando lentamente.

Quais são os riscos sistêmicos hoje? Onde é que estaria o futuro problema?

No conjunto, o que os republicanos estão fazendo com os estímulos, que é abortá-los. Outro risco está na Europa, onde o estoque de dívida foi absorvido pelo governo depois da crise. A liderança Europeia está muito vacilante, hesitante. Parece que agora estão caminhando para uma solução melhor. Tem que fazer uma reestruturação da dívida.

E o Brasil nisso?

O Brasil só vai sofrer se houver outra recessão mundial. Muitos países são importadores líquidos de commodities e há agora um choque no preço delas. Na Inglaterra, por exemplo, tem um baixo nível de atividade e uma inflação projetada para 5%, parecido com o Brasil. As revoltas no Egito não foram determinadas estruturalmente por isso, mas tem a ver. Cortou salário de todo mundo, o poder de compra é menor e o Brasil sofrerá. Mas isso é uma coisa um pouco discutível, porque os grandes demandantes das commodities brasileiras reduziram um pouco o crescimento "a China caiu de 10% para 8% ou 6% -, mas não para. A não ser que tenha um down geral na Europa e nos EUA, porque o que determina o crescimento chinês são as exportações. Há um conjunto de relações inter-relacionadas que exigirão muito tempo para serem resolvidas.

Voltando ao relatório, o que se deveria fazer é rediscutir esse modelo?

A estrutura social e de poder dos Estados Unidos bloqueia uma nova forma de desenvolvimento. Nada foi feito e prepararam um ambiente onde crescer só vai depender das mesmas práticas. Os bancos, de qualquer maneira farão outras concessões, como podemos ver com as commodities. O que está acontecendo com elas agora? Fez chuva, sol, problemas de oferta, mas com uma taxa de juros muito baixa permite a especulação das commodities. Tem uma bolha aí, uma bolha no setor de alimentos.

Como assim?

O preço nesse setor, dos alimentos como commodities, flutua muito e, em geral, em desfavor dos produtores. A estrutura de oferta é dominada por três ou quatro cartéis e a demanda tem crescido cada vez mais. Obviamente as empresas estão especulando nesse setor, fazendo contratos futuros e ninguém faz nada. Se essa inflação generaliza, as taxas de juros, que hoje estão muito baixas, não têm como subir. E do jeito que a coisa está, um negócio como esse pode acabar com a recuperação do pós-crise.”

FONTE: reportagem de Bob Fernandes e Marcela Rocha publicada no portal “Terra Magazine” (http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4961934-EI6579,00.html).

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