Carvalho em seu gabinete
“DILMA TEM OUTRO ESTILO, MAS A MESMA LINHA”
Entrevista: Carvalho diz que mínimo de R$ 545 será compensado com descontos a remédios de aposentados
“Integrante do núcleo decisório do novo governo, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, informou que, depois de segurar a correção do salário mínimo, limitando-a à inflação do ano passado, o governo vai adotar uma política de valorização dos aposentados. A ideia é reduzir os custos de medicamentos para essa parcela da população, a exemplo do que já é feito nos remédios usados para doenças como hipertensão e diabetes. O governo pode, também, rever os valores das aposentadorias.
Carvalho reconheceu, nesta entrevista ao Valor, que o governo teve que conter a evolução do salário mínimo neste momento porque gastou muito nos últimos dois anos do governo Luiz Inácio Lula da Silva. “Todo mundo sabe que em 2009 e 2010 nós enfiamos o pé no acelerador para sair da crise. Desoneramos, estimulamos, fizemos concessões de toda sorte. 2011 se afigura como um ano em que você precisa controlar. A inflação está batendo na porta”, disse.
“Temos que mandar um sinal claro para a sociedade de que o governo não vai brincar com a economia, não vai aceitar a indexação, porque, no fundo, se tem um prejuízo grande para o trabalhador é a inflação”, acrescentou o ministro. Ele informou que, também por causa da preocupação com a inflação, o governo vai limitar a correção da tabela do Imposto de Renda (IR) a 4,5%. “Nossa resistência de ir além dos 4,5% é por isso. Se dermos 5%, 5,5%, estaremos projetando inflação superior à que estamos perseguindo.”
Responsável pela interlocução com os movimentos sociais, Carvalho disse que a ordem da presidente Dilma Rousseff é aprofundar o diálogo com as entidades que os representam, mas deixou claro que isso não ocorrerá se o MST invadir terras e prédios públicos. “Não vamos nunca ceder desse ponto de vista. As ações vão ocorrer, podem ocorrer, mas depois vai ter que ter recuo. Não somos aqui militantes. Isso aqui não é um partido, é um governo”, avisou. “A Dilma tem outro estilo, mas não tem outra linha. Vai ser diferente do Lula por causa disso: não vai ficar colocando chapeuzinho [das centrais ou do MST].”
Instalado no 4º andar do Palácio do Planalto, Carvalho confessa que sente falta do 3º andar, onde fica o gabinete da presidente e onde ele trabalhou, numa sala contígua à do presidente Lula, durante oito anos. “Eu estava acostumado a trabalhar mais na retaguarda, trabalhando muito, embora mais protegido e menos exposto”, compara.
Em sua espaçosa sala, avista a Praça dos Poderes. Numa mesa de canto, expõe o porta-retrato de padre Alfredinho, suíço que morou numa favela em Crateús (CE) e exerceu grande influência sobre ele. “Na minha juventude, estava num seminário e li um livro dele que contava essa história e mudou minha cabeça. Depois, fui também morar numa favela.”
Valor: Qual foi o papel que a presidente Dilma designou ao senhor?
Gilberto Carvalho: Ela teve uma conversa muito simples comigo. Disse: ‘Gilbertinho, preciso de você porque eu quero que alguém me traga a realidade dos movimentos sociais, as demandas, as carências, as crises, alguém que me sensibilize para esse sofrimento do povo, alguém que diga a verdade. Não quero ser enganada nunca’.
Valor: Na prática, o que significa isso?
Carvalho: Significa que cabe a mim fazer a ponte. Todo ministério tem diálogo com os movimentos sociais. Minha área não tem o monopólio desses contatos, mas é o lugar, digamos, onde se organiza esse diálogo. Começou com o salário mínimo, em que fiz reuniões com as centrais sindicais.
Valor: Central sindical se enquadra no conceito de movimento social?
Carvalho: Sim, as centrais são a ponta de lança, até pela nossa tradição de relação. Estão incluídos também os chamados movimentos populares, como o MST, os movimentos indígena, dos negros, de gays e lésbicas, enfim, todas as formas de organização da sociedade, além das ONGs e das igrejas.
Valor: Como vai se estabelecer essa ponte?
Carvalho: Vamos acompanhar todas as conferências. Ao longo de oito anos, o governo Lula fez 73 conferências temáticas. Queremos democratizar ainda mais essas conferências. O governo tem se apropriado bem das propostas. Algumas, como aquela dos direitos humanos, são polêmicas. O Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), por exemplo, foi fruto de uma conferência.
Valor: Como evitar que o governo vete, no fim, um documento aprovado numa conferência, como ocorreu no caso da criação da Comissão da Verdade?
Carvalho: O problema do PNDH é que a conclusão da conferência foi transformada em decreto do presidente Lula. O governo absorveu na totalidade as propostas. Você não tem condição de colocar [no início da discussão] um filtro e dizer ‘olha, isso aqui não pode ser discutido’. A sociedade discute tudo e depois o governo é que vai dizer o que vai cumprir ou não.
Valor: Quais serão os canais de diálogo, além das conferências?
Carvalho: As mesas de negociação. Agora em março, por exemplo, vamos receber a pauta da Contag (Confederação dos Trabalhadores na Agricultura) por causa do ‘Grito da Terra’. Daqui a pouco, chega o MST com o ‘Abril Vermelho’. Depois, tem a ‘Marcha das Margaridas’, movimento das mulheres agricultoras. Há a questão dos servidores públicos, cujo debate é no Ministério do Planejamento, mas aqui eles têm uma interlocução. Além disso, estamos buscando não ficar apenas na espera.
Valor: De que forma?
Carvalho: A ideia é estabelecer mesas permanentes de conversas.
Valor: Por exemplo?
Carvalho: O Guido [Mantega, ministro da Fazenda] conversa todo mês com os empresários. Por que ele não pode conversar com o movimento sindical? Vou tentar construir essa ponte. Vou chamar também os movimentos para discutir políticas nossas. Por exemplo: vamos fazer a desoneração da folha de pessoal. É importante chamar as centrais para conversar. Portanto, o plano é deixar o governo mais permeável a essa participação, a sugestões. É claro que, como ficou demonstrado agora na questão do salário mínimo, não tem conversa desse tipo sem tensão.
Valor: Durante a votação do salário mínimo no Congresso as centrais se juntaram à oposição para tentar derrotar o governo. Como o senhor explica esse fato?
Carvalho: É muito natural a tensão e a disputa entre governo e movimentos sociais. Não cabe aos movimentos serem cooptados por nós. Cabe a eles lutar, combater, porque eles trazem bandeiras que são históricas. Cabe ao governo receber essas demandas e tentar atendê-las no limite máximo, naquilo que julgamos prudente, responsável, ampliando os direitos sociais.
Valor: Por que não houve negociação no caso do salário mínimo?
Carvalho: Aí foi diferente. Não estávamos iniciando uma discussão. Tínhamos uma discussão já realizada. Então, para nós este ano não haveria discussão. Porque era um acordo [firmado em 2007] que julgamos como uma enorme vitória. Como houve essa circunstância em que o PIB de 2009 foi negativo e, na campanha eleitoral, o [José] Serra trouxe o debate dos R$ 600, isso provocou a retomada de um debate que já havia sido feito. Mas nós nos apressamos em dizer, desde a primeira conversa aqui, com o Nelson Barbosa [secretário-executivo do Ministério da Fazenda] e o Carlos Lupi [ministro do Trabalho], que o governo [sempre] negocia, mas que nesse caso não haveria negociação. ‘Querem discutir a correção do IR? Vamos discutir, mas o salário mínimo não está em discussão’.
Valor: O governo trocou uma coisa pela outra?
Carvalho: De forma alguma. O IR é outra frente de negociação. Dissemos às centrais que não havia razão para mudar a regra do mínimo. Por duas razões. Primeiro, eu disse a eles, ‘porque é uma conquista de vocês. Se a gente mudar agora, vocês estão nos autorizando no ano que vem, quando o aumento for de 12%, 13%, a rediscutir’. Este é o risco, inclusive desse questionamento que está se fazendo agora do decreto [que permite ao governo fixar anualmente o valor do mínimo sem passar novamente pelo Congresso].
Valor: Por que conter a evolução do mínimo?
Carvalho: Porque este é um ano muito especial. Todo mundo sabe que em 2009 e 2010 nós enfiamos o pé no acelerador para sair da crise. Desoneramos, estimulamos, fizemos concessões de toda sorte. 2011 se afigura como um ano em que você precisa controlar. A inflação está batendo na porta, tivemos que fazer um corte no orçamento que não é catastrófico, é um corte sobretudo de planos, projetos, mas é um corte importante. Temos que mandar um sinal claro para a sociedade de que o governo não vai brincar com a economia, não vai aceitar a indexação, porque, no fundo, se tem um prejuízo grande para o trabalhador é a inflação.
Valor: Por que as centrais sindicais, na sua avaliação, não aceitam essa tese?
Carvalho: Tem uma cultura nossa, que é a cultura sindicalista. Nunca esqueço de uma greve nossa, de 1979, em Curitiba, em que conseguimos 70% de aumento e, mesmo assim, não conseguimos repor a inflação naquele ano. Temos uma cultura de reivindicação que prioriza mais o índice do que propriamente a perda inflacionária. Depois, tem um problema: existem seis centrais sindicais e há uma disputa enorme entre elas para ver quem é mais combativa e quem não trai a sua base. A Força Sindical está dizendo agora que a CUT não foi combativa na questão do salário mínimo. É uma cultura que eu acho ruim, que deixa de cumprir um papel mais amplo, mais responsável. Não quero dizer que elas são irresponsáveis e admito que não podemos esperar das centrais uma conduta que não seja a de lutar pelos direitos dos trabalhadores porque, seja como for, é verdade também que o mínimo, criado pela Constituição de 1946, segundo o Dieese, deveria ser hoje de mais de R$ 2,3 mil. Há uma defasagem histórica. O problema é que você não vai repor isso da noite para o dia. Vamos fazendo uma política de valorização que corrige distorções, mas o país não aguentaria estabelecer um mínimo de R$ 2 mil. Seria uma completa loucura.
Valor: O presidente Lula unificou o movimento sindical em torno dele. O Ministério do Trabalho é comandado pelo PDT e pela Força Sindical, adversária histórica da CUT. O senhor teme dificuldades nessa relação nos próximos anos?
Carvalho: A unificação em torno do governo se fez no final do governo. Em 2006, o Paulinho [Paulo Pereira da Silva, deputado e presidente da Força] não fez campanha para o Lula. O apoio se deu depois de muita construção, muito convencimento, de uma política evidentemente muito favorável aos trabalhadores. Foi quase uma rendição. Eles não podiam ficar contra a base. Não vai ser diferente em relação à Dilma. O Lula epidermicamente tinha uma linguagem que ajudava muito, uma sedução. A Dilma tem outro estilo, mas não tem outra linha. A ordem no governo é para que haja diálogo. Vai ser diferente do Lula por causa disso: ela não vai ficar colocando chapeuzinho.
Valor: O senhor não teme um rompimento com a Força Sindical, por exemplo?
Carvalho: Conversei nesta mesa com o Paulinho no dia da votação do mínimo: ‘Quero combinar uma coisa com vocês: não vamos queimar pontes.’ O governo não tem prazer em vencer um aliado, que são as forças sindicais. É uma disputa que estamos achando correta dentro da nossa responsabilidade. Muitos temas ainda vão se colocar. Vencido o mínimo, vamos discutir o IR, depois outras questões, como os aposentados e a desoneração da folha. Não acho provável que haja uma ruptura, a menos que haja uma enorme crise e, se as bases estiverem descontentes com o governo, pode ocorrer. Mas ninguém ali queima nota de R$ 100. Se as bases acharem que o governo está certo, o dirigente sindical não vai fazer uma aventura de romper porque tem um monte de eleição sindical este ano.
Valor: No caso dos aposentados, o que vai ser discutido?
Carvalho: Uma política geral de valorização dos aposentados.
Valor: De que forma?
Carvalho: Vamos pensar a questão da Saúde. Uma das coisas que pesam no bolso dos aposentados é o preço dos medicamentos. Já temos uma linha de medicamentos para hipertensão e diabetes. Vamos avaliar para outras doenças.
Valor: Pode ter algo em relação ao valor do benefício?
Carvalho: Pode vir a ter, não vou dizer que não.
Valor: O ex-presidente Lula chamou as centrais de “oportunistas”, criticando-as por causa da posição delas em relação ao salário mínimo. Ele fez isso a pedido da presidente Dilma?
Carvalho: Não. Eu é que manifestei a ele, lá em Dacar, umas preocupações que a gente estava tendo.
Valor: Em relação a quê?
Carvalho: Eu disse a ele: ‘Estão tentando abrir uma cunha entre você e a Dilma, dizendo que no seu tempo tinha tudo e que com a Dilma não vai ter nada. E na imprensa já se tenta colocar que a Dilma é séria, responsável, e você era gastador’.
Valor: Como ele reagiu?
Carvalho: Ele respondeu: ‘Você tem toda a razão. Na primeira oportunidade eu vou dar uma dura porque esses caras [os sindicalistas] estão querendo jogar fora um acordo que eu fiz com eles. Não admito uma coisa dessas, foi difícil, nós costuramos, não estou entendendo’. Foi uma avaliação dele. E logo depois de conversa, ele deu aquela declaração.
Valor: Em quanto o governo admite corrigir a tabela do IR?
Carvalho: Já asseguramos 4,5%, que é o centro da meta de inflação. Votado o salário mínimo no Senado, vamos dar uma olhada no orçamento para ver se é possível ir além. É pouco provável. Se for 4,5%, eu não vou chamar as centrais para conversar à toa.
Valor: O senhor não teme que as regras de correção do salário mínimo e da tabela do IR dificultem o controle da inflação no Brasil, à medida que reintroduzem mecanismos de indexação da economia?
Carvalho: É evidente que tem que tomar cuidado. Nossa resistência no IR de ir além dos 4,5% é por isso. Se dermos 5%, 5,5%, estaremos projetando inflação superior à que estamos perseguindo. Mas sabemos que o salário mínimo tem uma prevalência da questão social. As centrais argumentam com razão que o sujeito, quando recebe um aumento salarial, vai para uma faixa superior e o Leão come quase tudo que ele ganhou. [A correção da tabela] é mais uma questão de justiça. E a gente aposta que a economia continuará crescendo 4,5%, 5%, então, a arrecadação de impostos não vai ser prejudicada. Agora, estamos muito de olho na coisa da inflação. Vamos ter uma política muito severa para impedir a volta da inflação.
Valor: A presidente deixou claro, durante a campanha, que o MST é um movimento aliado, mas que ela não permitirá ilegalidades, como invasões de prédios públicos nem fazendas produtivas. O que muda na relação com o MST?
Carvalho: Nada. O Lula tinha aquela bonomia toda, mas ele nunca aliviou. Vocês não imaginam quantas vezes o MST esteve aqui, invadindo prédios públicos e pedindo audiência com o presidente, e ele dizia: ‘Não, eu só converso depois que eles saírem’. Não vou enganar vocês dizendo que vamos passar quatro anos sem que o MST ocupe terras, isso é uma bobagem. Eles têm autonomia. Vamos tentar azeitar ao máximo o Incra, que tem uma estrutura muito difícil, enferrujada, muito desgastada. Vamos fazer um acordo para estimular muito a qualificação dos assentamentos, como as cooperativas. Agora, você tem um passivo de gente debaixo de lona.
Valor: O governo tem ideia de quantos estão nessa situação?
Carvalho: É difícil saber, mas esse número diminuiu muito a partir do emprego quase pleno que temos na economia no momento. Houve um tempo em que uma das grandes fontes do MST era o pessoal da periferia das grandes cidades, o que também trouxe muitos problemas para eles porque eram pessoas que iam para o campo sem ter vocação rural. Eles sabem. Não temos dúvida de que há ainda um passivo a ser coberto, de gente que precisa de terra, então, não é que não vai ter mais reforma agrária. Vai continuar tendo, mas vamos trabalhar fortemente na qualificação do assentamento porque a pior coisa que pode acontecer com o MST é um assentamento que vire uma favela rural.
Valor: Mas como o governo vai lidar com as invasões?
Carvalho: O que você não pode nunca imaginar é que vá haver criminalização do movimento neste governo. Não tem margem nenhuma para isso. Vamos tentar persuadir os companheiros de que é muito importante o diálogo. E, para dialogar com o governo, não podemos dialogar nos acumpliciando com a ilegalidade. Não vamos nunca ceder desse ponto de vista. As ações vão ocorrer, podem ocorrer, mas depois vai ter que ter recuo. Não somos aqui militantes, isso aqui não é um partido, isso aqui é um governo. Nem sempre você pode fazer o que gostaria. Tem que agir dentro dos parâmetros. A fala da presidente vai nessa linha.”
FONTE: reportagem de Cristiano Romero e Paulo de Tarso Lyra publicada no jornal “Valor Econômico” e transcrita no blog de Luis Favre (http://blogdofavre.ig.com.br/2011/02/dilma-tem-outro-estilo-mas-a-mesma-linha/).
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