segunda-feira, 31 de outubro de 2011

“AS MENTIRAS QUE NOS CONTAM SOBRE A ECONOMIA MUNDIAL”, revelam dois economistas franceses

Olivier Pastré

Jean-Marc Sylvestre

Por Eduardo Febbro, correspondente da ‘Carta Maior’ em Paris

Conforme a hora do dia, o analista, o colunista ou o canal de televisão, os argumentos para explicar a crise mundial variam como a cor do céu. Qual é a verdade? Na realidade, a verdade é um acúmulo de mentiras que se disparam de todas as partes: o ‘Fundo Monetário Internacional’ mente, as agências de qualificação mentem, os analistas financeiros mentem, as instâncias de regulação mentem.

A mentira, ou sua exposição, é a trama do ensaio dos economistas franceses Olivier Pastré e Jean-Marc Sylvestre. Em seu livro “Nos mentem!”, Pastré e Sylvestre elaboraram uma espécie de ‘catálogo da mentira em economia política’ ao mesmo tempo que evidenciam os erros monumentais dos organismos de crédito multilaterais, das agências de qualificação e da mídia, que dão crédito às mentiras, travestindo-as de verdade.

Não escapam às análises os dirigentes políticos e os grupos como o G20, todos amordaçados e paralisados até que o incêndio cerque a casa. Mas, como destaca nessa entrevista o professor Olivier Pastré, uma vez que o incêndio se afasta, o sistema volta a reproduzir os mesmos problemas.

-Seu livro é uma espécie de catálogo das mentiras que os atores econômicos expandem pelo mundo seja para explicar a crise, seja para ocultá-la. Por acaso pode se dizer que o capitalismo parlamentar nos mentiu para manter as coisas no mesmo lugar?

Como dizia Lampeduza, tem que mudar tudo para que nada mude! Mas acredito que não se deva ter visões simplificadoras. Com isso, quero dizer que é muito provável que um segmento importante dos dirigentes não tenha nenhum desejo de que as coisas mudem. Sendo assim, mentem a si mesmos primeiro e, depois, mentem ao seu público. Contudo, para explicar a cegueira do sistema, também há que mencionar uma espécie de mecanismo de autosugestão. Há uma frase muito conhecida na bolsa que diz “as árvores não sobem até o céu”. Até há pouco, os dirigentes da economia de mercado acreditaram que as árvores subiam sim até o céu.

Lembro que existe uma referência recente da bolha internet, a bolha das novas tecnologias. Em 2000, a valorização das empresas que operavam na rede chegou à loucura total. Contudo, os dirigentes políticos, os bancos, os analistas financeiros, os meios de comunicação, todo o mundo dizia que a internet havia criado um novo modelo e que uma empresa podia valer 500 vezes seus lucros anuais. Aqui está uma prova de inconsciência que foi sancionada pelos mercados. O mesmo acontece agora. A inconsciência de 2005, 2006 e 2007 está sendo agora sancionada pelos mercados, mas de uma forma muito mais grave. Hoje, diferentemente do que ocorreu com a bolha das novas tecnologias, todos os setores e todos os países estão envolvidos. Nisso radica a gravidade da crise atual.

-Existem outros emissores de mentiras que detêm poder considerável: as estatísticas, as agências de qualificação e o FMI.

Se observarmos as previsões do FMI, constatamos que, desde muito tempo, são errôneas. O FMI não antecipou a crise e hoje esse organismo nos diz, com certa dificuldade, que a crise se instalou. E, contudo, apesar de que as previsões do FMI são largamente falsas, continuam considerando-as com devoção quase religiosa. E com as agências de qualificação acontece exatamente a mesma coisa. Nenhuma agência antecipou a crise. Quero lembrar que as agências de qualificação haviam dado aos créditos subprime um ‘triple A’, o que é muito preocupante. Aqui [França] também se segue escutando as agências de qualificação como se fossem uma Virgem Santa.

Mas a devoção e a idolatria não têm nenhuma justificativa. Se trata agora de saber a quem há que criticar: as estatísticas, as agências de qualificação, aqueles que lhe dão uma importância maior? Todo o mundo é responsável do que está acontecendo. Os bancos centrais são responsáveis, em particular o banco central norte-americano; as autoridades bancárias são responsáveis; os bancos; as agências de qualificação; os analistas financeiros; os Estados são igualmente responsáveis. De fato, não há que destacar um culpado, nem procurar um bode expiatório. A responsabilidade é global. A responsabilidade da crise não é só das estatísticas ou das agências de qualificação. A responsabilidade é inescapavelmente coletiva.

-Outra das mentiras que você assinala e que se transformou num mito desde 2008 é o da regulação financeira. Você afirma que o G20 é, em realidade, papel molhado.

Sobre o G20, é preciso dizer três coisas. A primeira é que a criação do G20 foi uma muito boa idéia. Antes da criação do G20, a economia mundial estava governada pelos países mais endividados: Estados Unidos, França etc. Além disso, haviam sido deixados de fora os países que criavam mais valores, ou seja, Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul. A criação do G20 é, então, evolução extremamente positiva em matéria de governo econômico mundial.

Em segundo lugar, na cúpula do G20 que se celebrou em Londres em 2009 se tomaram decisões corretas no que concerne ao papel do FMI, os paraísos fiscais ou as bonificações dos ‘traders’.

Mas, em terceiro lugar, e aqui está o problema, desde essa cúpula de Londres, o G20 deixou de tomar decisões. Por quê? Pois porque o G20, como todas as demais instâncias de regulação, só toma decisões quando se espalha o medo. Tem que acontecer o que vimos com o ‘Lehman Brothers’ para, seis meses depois, tomar as decisões necessárias.

O problema radica em que, uma vez que passou a tormenta, nos esquecemos de que tivemos medo e tudo volta a começar igual: a especulação, as bonificações surrealistas destinadas aos ‘traders’ etc, etc. Prova disso, foi necessário que explodisse a crise grega para que os reguladores tivessem medo e voltassem a regular. Por conseguinte, se pode dizer que o governo mundial só progride com a crise. Só quando os reguladores têm medo se botam a regular.

-Mas como se pode explicar tal recurso à mentira em economia política. Economistas, dirigentes políticos, organismos internacionais, todos mentem.

É lamentável, mas essa é a triste realidade. Há três tipos de mentiras: a mentira voluntária, esta que se apoia atrás do argumento segundo o qual esconder a realidade é um bom princípio; a mentira involuntária que se funda sobre análise errônea da situação e conduz a difundir falsas informações quase de boa fé; e a mentira que se conta a si mesmo, ou seja, quando se dispõe de boa análise da situação, mas como não se quer reconhecer a validade da mesma, se acaba dissimulando a realidade.

Nos três casos se emitem enunciados falsos e quase ninguém questiona o discurso dominante. Há vários elementos para explicar isso. Um deles é o chamado ‘pensamento único’. Às pessoas gostam de pensar o que pensam os demais. Na sociedade atual, contar com pensamento heterodoxo não é algo fácil. Por outra parte, os meios de comunicação têm marcada tendência a acentuar esse fenômeno. Os meios se focalizam no instantâneo, no espetacular. Assim, terminam difundindo a mesma análise sem profundidade.

-Você é um dos poucos analistas econômicos que afirma, sem ambigüidade, que os Estados Unidos estão em processo de quebra.

Se os Estados Unidos fossem uma empresa, já teriam declarado falência. Não há nenhuma dúvida a respeito. Os Estados Unidos viveram acima de seus meios, se endividando além do razoável e desindustrializando-se em excesso. Isso dura 20 anos! A situação norte-americana é muito, muito má.

-Entretanto, pese ao inocultável marasmo, você sugere que nem tudo está perdido. Como se sai desse pântano? Por acaso, há que terminar com a tão comentada globalização?

Eu sou um crítico das teses que propõem o fim da globalização. De fato, a globalização teve muitos defeitos, é obvio que aprofundou as desigualdades, mas, globalmente, a economia mundial nunca conheceu crescimento tão forte como com o processo de globalização. Não há, então, que se jogar tudo no lixo. A desglobalização poderia acarretar perda dos benefícios adquiridos. Não quero dizer com isso que, por exemplo, a situação dos operários chineses que trabalham no setor industrial graças à globalização seja boa, não, nada disso. O que digo, sim, é que a globalização foi fator de crescimento inquestionável, em particular para os países do sul.

Os excessos da globalização devem ser criticados. Nesse sentido, se continuo sendo otimista é precisamente porque se admitirmos que todos somos responsáveis da situação atual, tanto as empresas, os bancos, os dirigentes políticos, as instâncias de regulação como as pessoas em geral, poderemos mudar o curso das coisas. Se cada um desses atores econômicos se reforma, é possível desembocar num governo econômico mundial mais satisfatório. Lamentavelmente, as reformas só se realizam quando não cabe outra saída. Provavelmente, fará falta que a crise se agrave mais para que os dirigentes e os dirigidos aceitem as reformas.”

FONTE: entrevista com o economista francês Olivier Pastré conduzida por Eduardo Febbro, correspondente da ‘Carta Maior’ em Paris. Publicada no site “Carta Maior” com tradução de Libório Junior  (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18860) [imagens obtidas no Google e adicionadas por este blog ‘democracia&política’].

9 comentários:

  1. Agora que o bando ao serviço da CIA assassinou Kadafi, que país se seguirá à Líbia?

    Seg, 31 de Outubro de 2011 07:51

    Por Paul Craig Robert

    Com a Líbia conquistada, o AFRICOM arrancará para os outros países africanos em que a China tem investimentos em energia e mineração. Washington ressuscitou o Jogo da Superpotência e está a competir com a China. Mas enquanto a China faz investimentos e ofertas de infra-estrutura à África, Washington envia tropas, bombas e bases militares. Mais cedo ou mais tarde a agressividade de Washington em relação à China e à Rússia irá explodir nas nossas caras.

    Se os planos de Washington tiverem êxito, a Líbia tornar-se-á mais um estado fantoche americano. A maior parte das cidades e infra-estruturas foi destruída por ataques das forças aéreas dos EUA e dos seus fantoches da NATO. Firmas dos EUA e europeias agora obterão contratos sumarentos, financiados pelos contribuintes estado-unidenses, para reconstruir a Líbia. O novo parque imobiliário será cuidadosamente concedido a uma nova classe dirigente escolhida por Washington. Isto colocará a Líbia firmemente sob a pata de Washington.

    Com a Líbia conquistada, o AFRICOM arrancará para os outros países africanos em que a China tem investimentos em energia e mineração. Obama já enviou tropas americanas para a África Central sob o pretexto de derrotar o Exército da Resistência de Deus, uma pequena insurgência contra o ditador vitalício. O porta-voz republicano da Câmara, John Boehner, saudou a perspectiva de mais uma guerra ao declarar que o envio de tropas dos EUA para a África Central “promove os interesses estado-unidenses de segurança nacional e a sua política externa”. O senador republicano James Inhofe acrescentou uns litros de palração acerca de salvar “crianças ugandesas”, uma preocupação que o senador não tem para com crianças da Líbia ou da Palestina, do Iraque, do Afeganistão e do Paquistão.

    Washington ressuscitou o Jogo da Superpotência e está a competir com a China. Mas enquanto a China faz investimentos e ofertas de infra-estrutura à África, Washington envia tropas, bombas e bases militares. Mais cedo ou mais tarde a agressividade de Washington em relação à China e à Rússia irá explodir nas nossas caras.

    De onde está a vir o dinheiro para financiar o Império Africano de Washington? Não do petróleo líbio. Grandes porções do mesmo foram prometidas aos franceses e britânicos por lhe proporcionarem cobertura a esta última guerra aberta de agressão. Não de receitas fiscais de uma economia estado-unidense em colapso onde o desemprego, se medido correctamente, é de 23 por cento.

    Como o défice do orçamento anual de Washington tão enorme como é, o dinheiro só pode vir das máquinas de impressão.

    Washington já fez as máquinas de impressão trabalharem o suficiente para elevar o índice de preços no consumidor para todos os consumidores urbanos (CPI-U) a 3,9% ao ano (até o fim de Setembro), o índice de preços no consumidor para assalariados e empregados administrativos (CPI-W) a 4,4% ao ano e o índice de preço no produtor (PPI) a 6,9% ao ano.

    Como mostra o estatístico John Williams ( shadowstats.com ), as medidas oficiais de inflação são manipuladas a fim de manter baixos os ajustamentos de custo de vista para os que recebem da Segurança Social, portanto poupando dinheiro para as guerras de Washington. Quando medida correctamente, a presente taxa de inflação nos EUA é de 11,5%.

    Que taxa de juro podem obter os poupadores sem assumir riscos maciços com títulos gregos? Os bancos dos EUA pagam menos do que meio por cento nos depósitos de poupança assegurados pelo FDIC (Federal Deposit Insurance Corporation). Títulos a curto prazo do governo dos EUA pagam essencialmente zero.

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  2. Portanto, de acordo com estatísticas oficiais do governo estado-unidense, os poupadores americanos estão a perder anualmente entre 3,9% e 4,4% do seu capital. Segundo a estimativa de John Williams da taxa real de inflação, os poupadores dos EUA estão a perder 11,5% das suas poupanças acumuladas.

    Quando americanos reformados não recebem juros sobre as suas poupanças, eles têm de gastar o seu capital. A capacidade de mesmo os mais prudentes reformados sobreviverem com as taxas de juro negativas que estão a receber e a erosão pela inflação de quaisquer pensões que recebam chegará a um fim uma vez que os seus activos acumulados sejam exauridos.

    Excepto para os mega-ricos protegidos de Washington, o um por cento que capturou todos os ganhos de rendimento dos últimos anos, o resto da América foi remetido para o caixote do lixo. Nada, o que quer que seja, foi feito para eles desde o golpe da crise financeira de Dezembro de 2007. Bush e Obama, republicanos e democratas, centraram-se em salvar o 1 por cento enquanto faziam um manguito para os 99 por cento.

    Finalmente, alguns americanos, embora não os suficientes, entenderam o “patriotismo” do desfraldar a bandeira que os remeteu para o caixote do lixo da história. Eles não vão afundar sem um combate e estão nas ruas. O Occupy Wall Street propaga-se. Qual será o destino deste movimento?

    Será que a neve e o gelo do tempo frio acabará os protestos, ou os remeterá para dentro de edifícios públicos? Quanto tempo as autoridades locais, subservientes a Washington como são, toleram o sinal óbvio de que falta à população qualquer confiança que seja no governo?

    Se os protestos perdurarem, especialmente se crescerem e não declinarem, as autoridades infiltrarão os manifestantes com provocadores da polícia que dispararão sobre a polícia. Isto será a desculpa para abaterem os manifestantes e prenderem os sobreviventes como “terroristas” ou “extremistas internos” e enviá-los para os campos de 385 milhões de dólares construídos por contrato do governo dos EUA pela Halliburton de Cheney.

    A SEGUIR AO ESTADO POLICIAL AMERIKANO

    O Estado Policial Amerikano terá dado seu passo seguinte para o Estado de Campo de Concentração Amerikano.

    Enquanto isso, perdidos na sua inconsciência, conservadores continuarão a resmungar acerca da ruína do país devido ao casamento homossexual, ao aborto e aos media “liberais”. Organizações liberais comprometidas com a liberdade civil, tais como a ACLU, continuarão a equiparar o direito da mulher a um aborto com a defesa da Constituição dos EUA. A Amnistia Internacional apoiará Washington demonizando o seu próximo alvo de ataque militar enquanto fecha os olhos aos crimes de guerra do presidente Obama.

    Quando consideramos que Israel, sob a protecção de Washington, tem escapado impune – apesar de crimes de guerra, assassinatos de crianças, a expulsão em total desrespeito do direito internacional de palestinos da sua terra ancestral, do arrasamento das suas casas com bulldozers e do arrancamento dos seus olivais a fim de entregar terras a “colonos” fanáticos – podemos apenas concluir que Washington, o viabilizador de Israel, pode ir muito mais longe.

    Nestes poucos anos de abertura do século XXI, Washington destruiu a Constituição dos Estados Unidos, a separação de poderes, o direito internacional, a responsabilidade do governo e sacrificou todo princípio moral a fim de alcançar hegemonia no mundo todo. Esta agenda ambiciosa está a ser empreendida enquanto simultaneamente Washington removeu toda regulamentação sobre a Wall Street, o lar da cobiça maciça, permitindo ao horizonte de curto prazo da Wall Street arruinar a economia dos EUA, destruindo portanto a base económica para o assalto de Washington ao mundo.

    Será que os EUA entrarão em colapso, num caos económico, antes de dominarem o mundo?

    21/Outubro/2011

    O original encontra-se em
    http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=27205

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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  3. Tempo de vingança

    Seg, 31 de Outubro de 2011 07:50

    Por Correia da Fonseca, no ODiario.info

    O linchamento bárbaro de um chefe de estado perante as câmaras da TV e a distribuição dessas imagens pelo mundo inteiro para sua insistente divulgação é uma acção repugnante que mesmo alguns adversários de Kadhafi têm reprovado. Que tresanda a uma vingança pelo «crime» do assassinado ter cometido o sacrilégio de desobedecer ao poder «ocidental». Que decerto fará com que alguns de nós, europeus, supostamente civilizados e civilizadores, nos envergonhemos pela parte que a televisão portuguesa quis ter nesta específica obscenidade.

    1. Foi, na passada semana, uma espécie de orgia voyeurista e tendencialmente sádica: dezenas de vezes foram passadas na televisão portuguesa, como muito provavelmente na TV de outros países muito desenvolvidos e civilizados, as imagens finais de Moamar Kadhafi, ensanguentado e agonizante, a ser linchado pelos democratas patrocinados formalmente pela União Europeia com o consentimento da ONU. Em sei que Kadhafi era feio, extravagante no trajar e, ao que consta, pouco dado às práticas democráticas recomendadas no seio da Aliança Atlântica e seus arredores. Mas não é nítido que fealdades e extravagâncias devam incorrer na pena de morte sob tortura com imagens a distribuir por todo o mundo em diferido (o directo não terá sido possível por motivos exclusivamente técnicos) e, quanto à falta de democraticidade, é sabido que os países de conduta exemplar não terão de se fatigar muito em buscas para encontrar entre os seus aliados e amigos um bom punhado de dirigentes nacionais que não diferem do falecido coronel em matéria de brutalidades e práticas a condizer. Em verdade, a fundamental diferença entre um e outros é que Kadhafi não contava com a simpatia dos Estados Unidos e seus satélites, carência que a História recente já demonstrou que tende a ser fatal. Notemos que uma espécie de epidemia sui generis tem vindo a ceifar indivíduos de quem Washington e/ou amigos não gostavam: sem recuarmos ao assassínio ignóbil de Patrice Lumumba e à liquidação de Eduardo Mondlane, lembremo-nos de Salvador Allende e, em tempos recentes de Saddam Hussein e de Bin Laden. Embora longe de se garantir que esta curta enumeração esteja completa, parece certo que afrontar os grandes e consagrados valores do Ocidente, isto é, os seus interesses, não faz nenhum bem à saúde.

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  4. 2. Voltemos, porém, a Kadhafi e à sinistra exibição dos seus últimos momentos. Diz-se reiteradamente que o homem era um bruto e é mais que provável que o fosse. Mas diz-se também, embora sejam outras as fontes e se trate de dados generalizadamente omitidos pelos media que alimentam a nossa quotidiana visão do mundo, que a Kadhafi deveu a Líbia algumas benfeitorias interessantes. Que a ONU reconheceu em 2007 que a Líbia apresentava «o maior índice de desenvolvimento humano de toda a África», seja lá isso o que for. Que o ensino universitário era totalmente gratuito na Líbia. Que era sistemático e amplo o apoio aos estudantes universitários líbios nos Estados Unidos e na Europa. Que jovens casais recebiam um subsídio estatal da ordem dos 50 mil dólares por altura do casamento. Que assistência médica era na Líbia totalmente gratuita (ou apenas tendencialmente, mas a sério, não sei). Que a banca pública concedia empréstimos sem juros a cidadãos líbios quando o financiamento solicitado se destinava a aplicação coincidente com os objectivos do interesse nacional ou da efectiva elevação do nível de vida dos cidadãos. Que estava em curso, ou mesmo já realizado, o maior sistema de irrigação do mundo a fim de se conseguir a transformação de desertos em áreas cultiváveis. Mesmo que só metade desta enumeração corresponda inteiramente à verdade, é difícil recusar o mérito das iniciativas.

    3. Pois sim, dir-se-á, mas Kadhafi usava o dinheiro do petróleo. É verdade. Mas dinheiro do petróleo há também, e em enormes quantidades, em estados do Médio Oriente acerca dos quais não há notícia de substanciais aplicações no bem-estar e promoção dos cidadãos e onde o poder é também exercido de forma tirânica. Aliás, como bem se sabe, isto de tiranias, ditaduras e correlativos é uma questão bem mais complicada do que pode parecer, sendo certo que nessas matérias muitos são os amigos & protegidos dos Estados Unidos que chumbariam num exame mesmo sumário e superficial. Para lá de tudo isto, porém, bem podemos e devemos regressar ao ponto inicial desta crónica: o linchamento bárbaro de um chefe de estado, generalizadamente reconhecido como tal, perante as câmaras da TV, e a distribuição dessas imagens pelo mundo inteiro para sua insistente divulgação. É uma acção repugnante que mesmo alguns adversários de Kadhafi têm reprovado. Que tresanda a uma vingança pelo «crime» do executado ter cometido o sacrilégio de desobedecer ao poder «ocidental». Que decerto fará com que alguns de nós, europeus, supostamente civilizados e civilizadores, nos envergonhemos pela parte que a televisão portuguesa quis ter nesta específica obscenidade.

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  5. Viver entre os 1%

    Por Michael Moore

    Seg, 31 de Outubro de 2011 07:48

    Quando se é de família de trabalhadores, todos cuidam de todos, e quando um se dá bem, ou outros vibram de orgulho – porque, de algum modo, um de nós derrotou o sistema brutal que comanda um jogo cujas regras são distorcidas contra nós.

    "Capitalista é o sujeito que te vende a corda para se enforcar a ele mesmo, se achar que, na venda, pode ganhar algum dinheiro.”

    Do Esquerda.net

    Amigos,

    Há 22 anos, que se completam nesta terça-feira, estava com um grupo de operários, estudantes e desempregados no centro da cidade onde nasci, Flint, Michigan, para anunciar que o estúdio Warner Bros, de Hollywood, comprara os direitos de distribuição do meu primeiro filme, “Roger & Me”. Um jornalista perguntou: “Por quanto vendeu?”

    “Três milhões de dólares” – respondi com orgulho. Houve um grito de admiração, do pessoal dos sindicatos que me cercava. Nunca acontecera, nunca, que alguém da classe trabalhadora de Flint (ou de lugar algum) tivesse recebido tanto dinheiro, a menos que um dos nossos roubasse um banco ou, por sorte, ganhasse o grande prémio da lotaria de Michigan. Naquele dia ensolarado de Novembro de 1989, foi como se eu tivesse ganho o grande prémio da lotaria – e o pessoal com quem eu vivia e lutava em Michigan ficou eufórico com o meu sucesso. Foi como se um de nós, finalmente, tivesse conseguido, tivesse chegado lá, como se a sorte finalmente nos tivesse sorrido. O dia acabou em festa. Quando se é trabalhador, de família de trabalhadores, todos cuidam de todos, e quando um se dá bem, ou outros vibram de orgulho – não só pelo que conseguiu ter sucesso, mas porque, de algum modo, um de nós venceu, derrotou o sistema brutal contra todos, sem mercê, que comanda um jogo cujas regras são distorcidas contra nós.

    Nós conhecíamos as regras, e as regras diziam que nós, ratos das fábricas da cidade, nunca conseguíamos fazer cinema, ou aparecer em entrevistas na televisão ou conseguíamos fazer-nos ouvir em palanque nacional. A nossa parte deveria ser ficar de bico calado, cabeça baixa, e voltar ao trabalho. E, como que por milagre, um de nós escapara dali, estava a ser ouvido e visto por milhões de pessoas e estava ‘cheio de massa’ – santa mãe de deus, preparem-se! Um palanque e muito dinheiro... agora, sim, é que os de cima vão ver!

    Naquele momento, eu sobrevivia com o subsídio de desemprego, 98 dólares por semana. Saúde pública. O meu carro morrera em abril: sete meses sem carro. Os amigos convidavam-me para jantar e sempre pagavam a conta antes que chegasse à mesa, para me poupar ao vexame de não poder dividi-la.

    E então, de repente, lá estava eu montado em três milhões de dólares. O que eu faria do dinheiro? Muitos rapazes de fato e gravata apareceram com montes de sugestões, e logo vi que, quem não tivesse forte sentido de responsabilidade social, seria facilmente arrastado pela via do “eu-eu” e muito rapidamente esqueceria a via do “nós-nós”.

    Em 1989, então, tomei decisões fáceis:

    1. Primeiro de tudo, pagar todos os meus impostos. Disse ao sujeito que fez a declaração de rendimentos, que não declarasse nenhuma dedução além da hipoteca; e que pagasse todos os impostos federais, estaduais e municipais. Com muita honra, paguei quase um milhão de dólares pelo privilégio de ser norte-americano, cidadão deste grande país.

    2. Os 2 milhões que sobraram, decidi dividir pelo padrão que, uma vez, o cantor e activista Harry Chapin me ensinou, sobre como ele próprio vivia: “Um para mim, um para o companheiro”. Então, peguei metade do dinheiro – e criei uma fundação para distribuir o dinheiro.

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  6. 3. O milhão que sobrou, foi usado assim: paguei todas as minhas dívidas, algumas que eu devia aos meus melhores amigos e vários parentes; comprei um frigorífico para os meus pais; criei fundos para pagar a universidade das sobrinhas e sobrinhos; ajudei a reconstruir uma igreja de negros destruída num incêndio, lá em Flint; distribuí mil perus no Dia de Ação de Graças; comprei equipamento de filmagem e mandei para o Vietname (a minha acção pessoal, para reparar parte do mal que fizemos àquele país, que nós destruímos); compro, todos os anos, 10 mil brinquedos, que dou a Toys for Tots no Natal; e comprei para mim uma moto Honda, fabricada nos EUA, e um apartamento hipotecado, em Nova York.

    4. O que sobrou, depositei numa conta de poupança simples, que paga juros baixos. Tomei a decisão de jamais comprar acções. Nunca entendi o casino chamado Bolsa de Valores de Nova York, nem acredito em investir num sistema com o qual não concordo.

    5. Sempre entendi que o conceito do dinheiro que gera dinheiro criara uma classe de gente gananciosa, preguiçosa, que nada produz além de miséria e medo para os pobres. Eles inventaram meios de comprar empresas menores, para imediatamente as fechar. Inventaram esquemas para jogar com as poupanças e reformas dos pobres, como se o dinheiro dos outros fosse dinheiro deles. Exigiram que as empresas sempre registassem lucros (o que as empresas só conseguiram porque despediram milhares de trabalhadores e acabaram com os serviços de saúde pública para os que ainda tinham empregos). Decidi que, se ia afinal ‘ganhar a vida’, teria de ganhá-la com o meu trabalho, o meu suor, as minhas ideias, a minha criatividade. Eu produziria produtos tangíveis, algo que pudesse ser partilhado com todos ou de que todos gostassem, como entretenimento, ou do qual pudessem aprender alguma coisa. O meu trabalho, sim, criaria empregos, bons empregos, com salários decentes e todos os benefícios de assistência médica.

    Continuei a fazer filmes, a produzir séries de televisão e a escrever livros. Nunca iniciei um projecto pensando “quanto dinheiro posso ganhar com isso?”. Nunca deixei que o dinheiro fosse a força que me fizesse fazer qualquer coisa. Fiz, simplesmente, exactamente o que queria fazer. Essa atitude ajuda a manter honesto o meu trabalho – e, acho, ao mesmo tempo, que resultou em milhões de pessoas que compram bilhetes para assistir aos meus filmes, assistem aos programas que produzo e compram os meus livros.

    E isso, precisamente, enlouqueceu a direita. Como é possível que alguém da esquerda tenha tanta audiência no ‘grande público’?! Não pode ser! Não era para acontecer (Noam Chomsky, infelizmente, não vai aparecer no Today View de hoje; e Howard Zinn, espantosamente, só chegou à lista dos mais vendidos do New York Times depois de morto). Assim opera a máquina dos média. Está regulada para que ninguém jamais ouça falar dos que, se pudessem, mudariam todo o sistema, para coisa muito melhor. Só liberais sem personalidade, que vivem de exigir cautela e concessões e reformas lentas, aparecem com os nomes impressos nas páginas de editoriais dos jornais ou nos programas da televisão aos domingos.

    Eu, de algum modo, encontrei uma brecha na muralha e meti-me por ali. Sinto-me abençoado, podendo viver como vivo – e não ajo como se tudo fosse garantido para sempre. Acredito nas lições que aprendi numa escola católica: que se tens sucesso, maior é a tua responsabilidade por quem não tenha a mesma sorte. “Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos.” Meio comunista, eu sei, mas a ideia é que a família humana existe para partilhar com justiça as riquezas da terra, para que os filhos de Deus passem por esta vida com menos sofrimento.

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  7. Dei-me bem – para autor de documentários, dei-me super bem. Isso, também, faz enlouquecer os conservadores. “Você está rico por causa do capitalismo!” – gritam. Hummm... Não. Não assistiram às aulas de Economia I? O capitalismo é um sistema, um esquema ‘pirâmide’ que explora a vasta maioria, para que uns poucos, no topo, enriqueçam cada vez mais. Ganhei o meu dinheiro à moda antiga, honestamente, fabricando produtos, coisas. Nuns anos, ganho uma montanha de dinheiro, noutros anos, como o ano passado, não tenho trabalho (nada de filme, nada de livro); então, ganho muito menos. “Como é que você diz que defende os pobres, se você é rico, exactamente o contrário de ser pobre?!” É o mesmo argumento de quem diz que, “Você nunca fez sexo com outro homem! Como pode ser a favor do casamento entre dois homens?!"

    Penso como pensava aquele Congresso só de homens que votou a favor do voto para as mulheres, ou como os muitos brancos que foram às ruas, marchar com Martin Luther Ling, Jr. (E lá vem a direita, aos gritos, ao longo da história: “Hei! Você não é negro! Você nem foi linchado! Por que está a favor dos negros?!”). Essa desconexão impede que os Republicanos entendam por que alguém dá o próprio tempo ou o próprio dinheiro para ajudar quem tenha menos sorte. É coisa que o cérebro da direita não consegue processar. “Kanye West ganha milhões! O que está a fazer lá, em Occupy Wall Street?!”. Exactamente – lá está, exigindo que aumentem os impostos a ele mesmo. Isso, para a direita, é definição de loucura. Todo o resto do mundo somos muito gratos que gente como ele se tenha levantado, ainda que – e sobretudo porque – é gente que se levantou contra os seus interesses pessoais financeiros. É precisamente a atitude que a Bíblia, que aqueles conservadores tanto exaltam por aí, exige de todos os ricos.

    Naquele dia distante, em Novembro de 1989, quando vendi o meu primeiro filme, um grande amigo meu disse o seguinte: “Eles cometeram um erro muito grave, ao entregar tanto dinheiro a um sujeito como tu. Essa massa fará de ti um homem perigosíssimo. É prova do acerto do velho dito popular: ‘Capitalista é o sujeito que te vende a corda para se enforcar a ele mesmo, se achar que, na venda, pode ganhar algum dinheiro.”

    Atenciosamente,

    Michael Moore

    MMFlint@MichaelMoore.com

    27/10/2011

    Tradução do colectivo da Vila Vudu

    Publicado em http://www.michaelmoore.com/words/mike-friends-blog/life-among-1

    OBS: Eu não sei como a CIA ainda não "calou" esse cabra...

    Que os céus te guardem Michael Moore!!

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  8. “Não pode ser. Não será. Não vai ficar assim, ya know, essa violência não pode ficar sem castigo, man.”

    Muammar Abu Minyar al-Gaddafi

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    Tribo líbia dos warfala espera a hora da vingança

    BANI WALID, Líbia, 31 Out 2011 (AFP) - "Nós nos vingaremos, cedo ou tarde", jura um homem da poderosa tribo dos warfala, leal ao antigo regime, enquanto mostra as casas incendiadas e destruídas por morteiros disparados pelas forças do CNT próximo ao centro da cidade de Bani Walid.

    Não quer que o filmem, nem dá seu nome. Suleimán, como disse se chamar, tem "medo" dos combatentes do novo regime que tomaram o controle da cidade há dez dias depois de mais de um mês de combates contra as forças leais ao ex-líder Muamar Kadhafi, morto em Sirte no dia 20 de outubro.

    "Deixamos de lutar porque não tínhamos mais munições. A maioria dos moradores escondeu suas armas e ficou em casa. Outros se misturaram aos grupos rebeldes", admitiu.

    As forças do Conselho Nacional de Transição (CNT), que entraram na cidade em 17 de outubro, ficaram surpresas ao ver que os combatentes tinham sumido após semanas de duros combates.

    "Quando os thowars (revolucionários) não encontraram as brigadas de Kadhafi de quem falavam, ficaram furiosos. Atiraram nos cães, nas casas, saquearam e atearam fogo em casas e em prédios públicos", acrescentou Suleimán.

    "Toda a cidade está tomada pela fúria. Os thowars castigaram todos, destruindo nossas casas, roubando nossos carros e matando nossos parentes. Não deixaremos isso assim", assegura este homem, que diz estar entre a tristeza e o ódio.

    "Bani Walid é uma sociedade tribal. Não há estrangeiros. Aqui só estão os warfala e ninguém pode nos governar. Por isso não haverá Líbia sem os warfala. Nós vamos agir cedo ou tarde, aqui, em Trípoli ou em outras partes", advertiu.

    Bani Walid, um vasto oásis de relevo escarpado 170 km a sudeste de Trípoli, é o feudo dos warfala que formam a principal tribo da Líbia, com um milhão de pessoas (de cerca de 6,3 milhões de habitantes). Seus membros estão divididos em dezenas de clãs que habitam também a parte setentrional do país, com um assentamento na Cirenaica (leste), região das cidades de Benghazi e de Derna.

    Embora os Warfalla de Bani Walid se mantenham leais ao regime derrocado, a oposição entre outros clãs, essencialmente os da Cirenaica, e o regime líbio se remonta aos anos 1990, quando dezenas de oficiais acusados de complô foram presos e alguns deles, executados.

    Apesar do panorama desolador de Bani Walid, alguns tentam reparar os danos e voltar à normalidade, "mas é muito difícil", afirma Mohamed Ahmed, com as mãos manchadas de tinta diante de seu apartamento que tenta deixar "habitável".

    Segundo ele, ainda são ouvidas trocas de tiros entre moradores e homens do CNT.

    Ao contrário de outras cidades do país, a bandeira vermelha, negra e verde da "Nova Líbia" está quase ausente de Bani Walid e a atividade é retomada muito lentamente.

    Um grupo de voluntários retira entulhos da praça central.

    Um jovem, que diz se chamar Al-Sahbi al-Werfelli, vende hortaliças em um pequeno mercado improvisado. Reconhece ter lutado ao lado das forças kadhafistas.

    "Sim, lutei contra estes ladrões. É uma revolução de ladrões. Eles destruíram tudo, roubaram tudo", afirma.

    "Bani Walid paga o preço de seu apoio a Kadhafi. Mas nós a amamos", disse. "Estamos à espera de um sinal para retomar as armas e nos vingarmos", adverte.

    Seu primo concorda: "Defendemos nossas casas e nossa honra, e vingaremos cada morto, cada casa roubada".

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  9. Probus,
    Obrigada pelos ótimos artigos que você transcreveu em seus comentários, colocando-os disponíveis para a leitura dos demais leitores deste blog.
    Maria Tereza

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