domingo, 18 de dezembro de 2011
O LEGADO DOS EUA NO IRAQUE, OITO ANOS DEPOIS DA INVASÃO
“Passaram-se oito anos e os Estados Unidos fecharam a porta do Iraque deixando um desastre atrás dela. Durante o conflito, morreram [diretamente] mais de 100 mil civis, 4.800 soldados da coalizão perderam a vida (4.500 dos EUA), junto com 20 mil soldados iraquianos [as mortes causadas indiretamente pela invasão alcançam um milhão]. Para os iraquianos, o legado da invasão é morte, dezenas de milhares de mutilados, insegurança, desemprego, falta de água potável e eletricidade. A “democracia” exportada com bombas ultramodernas não mudou o curso das coisas.
Por Eduardo Febbro, correspondente da “Carta Maior” em Paris
Passaram-se oito anos. Como pedras impiedosas que semearam a morte. Como aquelas horrendas imagens que surgiam à beira das estradas no caminho em direção a Bagdá. Fumaça, destruição, cadáveres e silêncio. Parece ontem. O cruzamento de estradas assinalava duas direções: Basra ou Bagdá. Através da estrada até Bagdá, as sucessivas batalhas da ofensiva emergiam como cogumelos despedaçados: ônibus bombardeados, veículos calcinados, tanques arrebentados e crateras imensas cavadas pelos mísseis. Os tanques iraquianos dispostos em fila à beira da estrada pareciam latas de sardinha queimadas. Frente a eles, os tanques Abrams norte-americanos tinham o aspecto de mastodontes invencíveis. “Quando começamos a avançar por esse trajeto, os soldados iraquianos saíam dos tanques para nos pedir água e comida”, contava com lástima um oficial norte-americano.
Os primeiros grandes subúrbios de casas baixas pareciam emergir de um pesadelo. As casas e as lojas tinham virado trincheiras e havia centenas de pessoas caminhando pelas ruas, levando colchões, cadeiras, roupas, televisões, máquinas de lavar roupa, velhas máquinas de costura. Bagdá, ao longe, estava envolta em espessa nuvem de fumaça escura. Os poços e as trincheiras de petróleo seguiam ardendo. Saddam Hussein havia mandado incendiá-los para impedir que os satélites norte-americanos obtivessem imagens precisas do estado de Bagdá. Depois, a cidade aparecia finalmente. Ferida e assustada.
Em cima do capô de um automóvel que havia avançado sobre a calçada, um livro de capa azul exibia suas páginas milagrosamente intactas. Dentro do veículo, o corpo de um homem com o corpo tombado para a frente tinha a cabeça partida e parte do cérebro esparramado em cima do porta-luvas. Ninguém prestava atenção. A cem metros do automóvel, um grupo de homens tentava, em vão, derrubar uma imensa estátua de Saddam Hussein erguida no centro de uma rótula. Do outro lado, três mortos jaziam à margem da rua. Um grupo de cachorros sarnentos disputava a propriedade do corpo de um dos mortos: um menino de seis anos estava ali também, sem um sapato e sem a metade do rosto.
Saddam Hussein havia desaparecido. O exército ocupante se instalava em tendas nos territórios de sua nova conquista, ocupava os palácios de quem tinha sido seu aliado, se apoderava das ruas da cidade transformada e restaurada pelo ditador com a ajuda dos arquitetos enviados pelo Ocidente nos anos em que Saddam era sócio confiável e ninguém se importava que ele afogasse seu povo em lagoa de sangue. O choque de civilizações acabava de se plasmar em sua versão mais violenta: a de um país milenar e reprimido, a de uma potência ocidental que havia enviado do céu uma chuva de “democracia” comprimida em cachos de bombas.
Há lugares cujo nome e os símbolos que evoca sobrevivem aos estragos do tempo e das guerras. Bagdá tinha esse dom. Horrível e mágica. Histórica e contemporânea. Ameaçadora e hospitaleira. As “Mil e uma Noites”, um grande livro onde, a cada virada de página, havia muitos mortos. O soldado Higins tinha visto inúmeras fotos de Bagdá antes da invasão, mas nunca havia imaginado a cidade real que encontrou quando sua unidade entrou na capital depois do que qualificava como “um combate épico” contra um inimigo “inferior, mas disposto a tudo”. Higins dizia que, até sua chegada a Bagdá, não havia conhecido a morte e tampouco imaginado como seria. Agora, já tinha se acostumado ela, mas o primeiro morto seguia fazendo companhia a ele em sua memória.
“A primeira vez que matei um homem foi à noite. Fiquei com uma sensação estranha, irreal. Não posso esquecer. Minha unidade encontrava-se na periferia de Bagdá. Fazíamos parte de uma patrulha avançada que estava por penetrar na capital desde o sul. Tínhamos recebido a ordem de consolidar a zona e seguir adiante. Seguimos as instruções e, no início da madrugada, começaram a nos atacar. Choviam tiros de metralhadoras e bazucas. Como não se via nada, usamos os fuzis com visão noturna. O primeiro homem que apareceu na mira avançava por uma rua lateral, ocultando-se entre as portas. Era um alvo fácil. Deixei que avançasse. Apontei e disparei. Ele caiu no chão e voltou a se levantar, cambaleante. Disparei mais duas vezes. Não posso dizer que, nesse momento, senti que o tinha matado. Com as miras de visão noturna tudo é visto de modo distinto, como se fosse jogo informático. A realidade é mais lenta e as coisas têm a forma de silhueta”.
“Sei que está por aí, Saddam é eterno. Um império não pode com ele. Saddam vive até no silêncio”, dizia o empregado de um hotel que havia desaparecido em incêndio. A única coisa que estava ali, pulsando no meio da fumaça, era o futuro. O futuro já estava escrito nas múltiplas sequências da queda de Bagdá na indolência e ignorância dos ocupantes. Essa ignorância brutal era a matéria-prima da ação de Paul Bremer, o ineficiente e teimoso responsável pela CPA, a “Autoridade Provisória” da coalizão encarregada de administrar o Iraque com estatuto de autoridade governamental.
A guerra começou em 19 de março de 2003. Cerca de três semanas mais tarde, Bagdá caiu nas mãos da coalizão. No dia 1° de maio de 2003, o presidente George W. Bush deu por encerrada essa fase com a expressão triunfalista “missão cumprida”. No dia 6 de maio, Bush nomeou Paul Bremer. O “vice-rei” Bremer chegou a Bagdá e abriu a caixa de Pandora com um projeto político, econômico e administrativo delirante: converter o Iraque em uma representação dos Estados Unidos no Oriente Médio: liberal, democrática, permissiva, um centro de negócios ao melhor estilo dos falcões da Casa Branca.
Ele não tinha a menor ideia do chão em que estava pisando. Sua primeira decisão consistiu em decretar a “desbaasificação” da sociedade iraquiana. Bremer pretendia sanear o sistema político com uma ordem inaplicável: fazer desaparecer o partido “Baas” e seus representantes em uma sociedade onde, para conseguir trabalho ou ser membro da administração pública, era obrigatório aderir ao “Baas”. Paul Bremer decretou a demissão de milhares de empregados e executivos da administração pública, dos organismos encarregados do petróleo, dos bancos, das universidades. Onze dias depois de ter assumido suas funções, Bremer assinou outro decreto enlouquecido: dissolveu o exército, a aviação, a marinha, o Ministério da Defesa, os serviços de inteligência. Seu frenesi ignorante chegou ao ponto de, em um país que saía de prolongado embargo internacional, que estava em guerra, onde os hospitais estavam destruídos e faltava até algodão, lançar uma “campanha contra o tabagismo” e elaborar um projeto para distribuir rações alimentares com cartões de crédito.
Passaram-se oito anos e os Estados Unidos fecharam a porta do Iraque deixando um desastre atrás dela. Durante o conflito, morreram mais de 100 mil civis, 4.800 soldados da coalizão perderam a vida (4.500 dos EUA), junto com 20 mil soldados iraquianos. “Depois de todo o sangue derramado, o objetivo de que o Iraque governe a si mesmo e seja capaz de garantir a segurança se cumpriu”, disse o secretário de Defesa estadunidense, Leon Panetta. O legado da invasão é outro: morte, dezenas de milhares de mutilados, insegurança, desemprego, falta de água potável e eletricidade. A “democracia” exportada com bombas ultramodernas não mudou o curso das coisas. A queda do déspota permitiu que os xiitas, majoritários no país e reprimidos até a barbárie por Saddam Hussein, tomassem as rédeas do poder sem que isso implicasse unidade ou estabilidade. O Iraque segue sendo um país em carne viva onde as feridas da ocupação não se fecharam.
Passaram-se oito anos e o espelho de ontem está intacto, a voz de Fátima ainda ressoa naquela cidade em chamas. As lágrimas brotavam de seus olhos e, ainda assim, era capaz de sorrir e chorar ao mesmo tempo. Um sorriso de anjo, de criança, o sorriso da desnudez de um despossuído. Fátima observava os militares norte-americanos com um incessante sinal de pergunta. Eles a tomavam por louca. Quando passava diante dos soldados, a mulher os saudava e perguntava: “por quê?” Às vezes, davam-lhe comida, água e um pouco de dinheiro. Fátima aceitava, mais para se aproximar daqueles que tinham destroçado sua realidade do que por fome.
Ninguém entendia sua pergunta. Por trás de seu sorriso tenro e luminoso, a tristeza marcava seus traços. Fátima estava vencida. Enquanto contemplava as ruínas do que uma vez foi sua casa, a mulher voltava a perguntar “por quê?”. Quando falava, uma careta infantil e piedosa se desenhava como um relâmpago.
Fátima tinha perdido tudo. Dias após dia, com empenho obstinado, a mulher escavava os escombros do edifício familiar destruído por bombas, buscando os restos de seus pertences passados. Seu filho menor a acompanhava sempre. Ia de um lado a outro de Bagdá apegado a ela como um animal indefeso. Fátima revolvia as entranhas de pedras destroçadas e retirava uma frigideira, um retrato intacto, um cachecol, um par de sapatos, alguma cadeira desconjuntada pela explosão, pedaços de recordações e bens devastados. O living, a sala de estar, a cozinha, o quarto, os espaços de sua intimidade estavam soterrados por toneladas de pedra e poeira.
Fátima mostrava o que havia sobrado de sua casa: um monte de ferro e cimento sobre o qual se superpunha seu eterno sorriso. Ela também tinha no olhar essa marca feita de solidão, de luz, de incompreensão, de pura intempérie: a marca da injustiça. A mulher dizia que, talvez, o futuro de seu filho não seria parecido com o seu, que talvez ele conhecesse a liberdade, um trabalho decente e a democracia. Fátima se projetava no filho que restou porque seu presente era um lugar inabitável. Era escombros e a gaveta de uma cômoda miraculosamente intacta de onde tirava, assombrada e agradecida, duas fotos de seu marido e de sua filha morta, esmagada com seu pai nas ruínas, um par de meias e uma caixa de costura.”
FONTE: escrito por Eduardo Febbro, correspondente da “Carta Maior” em Paris, e transcrito no site “Carta Maior” com tradução de Katarina Peixoto (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19233).
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