quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

AS NOVAS CONDIÇÕES ESTRATÉGICAS NO ORIENTE MÉDIO


“É comum que se escreva, sempre com algum exagero, que os últimos acontecimentos – sejam de qualquer natureza – mudaram as relações internacionais e as condições estratégicas regionais e/ou globais. Neste início de 2012, contudo, uma visão de conjunto do Oriente Médio/Ásia Central nos mostra que o equilíbrio conseguido com grande esforço depois do fim da Guerra Fria, em 1991, desmoronou.

O artigo é de Francisco Carlos Teixeira

O ORIENTE MÉDIO EM MUDANÇA: OS GRANDES IMPACTOS

Na ausência de expressão mais precisa, voltamo-nos para o conceito clássico de Pierre Renouvin de “forças profundas” para destacar as grandes tendências em movimento na região.

Nós trataremos, agora, para os dados concretos da demografia social e religiosa, da situação geográfica, da riqueza disponível e, enfim (mas, de forma decisiva), a orientação da população nas relações vis-à-vis entre as nações (os diversos sentimentos populares e suas representações).

No caso do Oriente Médio, a última década, grosso modo, foi de importantíssimas mudanças. Para facilitar a caracterização de tais mudanças, e apenas para efeito didático, vamos fazê-lo em dois movimentos. De um lado, os fatores exógenos que impactaram a região e, de outro, os fatores endógenos que moldam as tendências atuais de mudança e que, por sua vez, impactam as relações globais.

Entre os fatores externos que impactaram duramente as chamadas “forças profundas” na última década estão:

1. A quase total retirada da Rússia do jogo político regional do Oriente Médio (antes forte em países como Iraque, Síria, Yemen, Somália e com grande pressão sobre as bordas da Ásia central, como Irã e Afeganistão). No momento atual, sua presença é circunscrita à Síria, um regime em plena crise, e a manutenção do apoio gera imenso desgaste diplomático, em especial na ONU e frente à opinião pública mundial. O papel de Moscou no “Quarteto Diplomático” é residual, na medida em que o próprio “Quarteto” está paralisado no seu papel de negociador do conflito Israel-Palestina.

Base naval da Rússia na Síria

2. A invasão norte-americana, e de seus aliados da OTAN, no Afeganistão em 2001, com impacto de grandes proporções no Paquistão e no próprio Irã, além de aumentar as desconfianças da Federação Russa e da China Popular acerca dos interesses americanos em obter posição permanente no coração da Ásia Central. Uma retomada das teses geopolíticas de Halford Mackinder (1904) e de Nicolas Spykman (1942), originou, depois de 2001, novo simulacro do “Grand Jeu”, do século XIX [1]. O resultado mais claro foi uma íntima aproximação entre China e Rússia, alterando radicalmente os dados estratégicos do final da Guerra Fria (conflito sino-soviético) e unindo as duas potências asiáticas (Pacto de Shangai [2]);

Tropas dos EUA invadem o Afeganistão

3. O fracasso das mediações do conflito Israel-Palestina considerado, por muito tempo, um produto da Guerra Fria (1945-1991), mostrou tratar-se, em verdade, de conflito nacional, enraizado na emergência de forte sentimento nacional palestino (que se forja largamente em relação direta com a ocupação israelense), diferenciado e autônomo em face dos países árabes (não mais como uma “arma” ou ferramenta manipulada no Cairo ou Damasco contra Israel), e frente ao qual as entidades internacionais, tais como a ONU, bem como as iniciativas multilaterais e de mediação (como a Conferência de Madrid [3], os Acordos de Oslo [4], o “Quarteto” [5] e a permanente presença americana) não conseguiram avançar depois dos Acordos de Camp David de 1979;

“Jovem terrorista” palestino ataca com pedras tropas invasoras israelenses (cerca de 80% do território dos Palestinos já foi invadido, ocupado e usurpado por Israel, com total apoio financeiro, político e militar dos EUA)

4. A desastrosa invasão norte-americana do Iraque, em 2003, destruindo boa parte do equilíbrio regional, expresso nas relações Irã-Iraque, Arábia Saudita-Iraque e, mais complexo ainda, entre sunitas e xiitas em toda a região, em especial nas monarquias do Golfo (de regimes sunitas e maiorias xiitas). Além disso, o péssimo desempenho norte-americano (desonroso e ineficaz) no Iraque mostrou ao mundo que nem mesmo uma superpotência como os Estados Unidos podem enfrentar, sem grandes danos, um conflito que cristaliza seu conceito exatamente nesse evento, a chamada “guerra assimétrica”. Como corolário, a inépcia americana sob George Bush e a subseqüente “retirada norte-americana” do Iraque com Obama criam, em vários estados da região, em especial em Israel e na Arábia Saudita, profunda síndrome de insegurança, levando-os a patrocinar um enfrentamento com Irã, antes que este possa consolidar sua recuperação de nação hegemônica na região – papel tradicional dos persas mantido até muito recentemente com o apoio americano ao decaído Xá;

Tropas invasoras dos EUA prendem iraquiano potencial “insurgente” contra a tomada do petróleo do Iraque

5. A emergência de novos e autônomos pólos alternativos de poder político e econômico, em especial a China Popular e a Índia (e mais recentemente o Brasil), que passaram a desempenhar papel – ainda modesto, mas assertivo – nas resoluções e nos diversos “fóruns” internacionais sobre o Oriente Médio, além de se apresentarem como clientes, de variadas posições, relativizando o papel das antigas potências coloniais e dos Estados Unidos na região;

6. A crise da Europa – uma crise econômica, política e de instituições da UE – acaba por levar a uma situação de militarização e saturação de iniciativas bélicas na região sul do bloco europeu, tudo em nome do chamado “Princípio de Intervenção Humanitária”, aplicado de forma bélica quando o país alvo não cumpra com a “Responsabilidade de Proteger” (“RtoP” ou “R2P”, conforme a sigla em inglês) seus próprios cidadãos [6]. Assim, de forma direta e indireta (ou seja, usando países interpostos, como o caso das tropas do Kuwait na Líbia) realizaram-se expedições militares na Líbia que prefiguram uma nova possibilidade de “soberania restrita” ou sob vigilância internacional (precedente na situação de Kosovo), com possibilidade de extensão a outros países, como é o caso da Síria.

Fica patente, nesse caso, os limites do “RtoP” para os europeus: a “Primavera Árabe” no pequeno e rico Bahrein – sede da 5ª. Frota dos Estados Unidos no Oriente Médio – foi duramente reprimida pela polícia local e, em seguida, por uma “invasão saudita” [7], sem qualquer protesto de Londres ou Paris. Da mesma forma, a repressão aos manifestantes em Riad não merece condenação alguma, visto serem países-pivô do equilíbrio de poder patrocinado pelo Ocidente na região.

7. Como corolário do item anterior, a crise econômica européia, acompanhada de recrudescimento dos setores chauvinistas e racistas nos partidos de centro-direita europeus (França, Áustria, Alemanha, Bélgica, Holanda, Polônia) consolida a recusa – nunca pronunciada – da admissão da Turquia na União Européia. A consciência nacional turca de sua “exterioridade” européia – projeto conservador europeu, desde a Primeira Guerra Mundial (de empurrar os “asiáticos” de volta para a Ásia), ajuda e incentiva, a partir de então, o desenvolvimento de nova “turquicidade”, não mais em choque com a antiga (otomanidade), facilitando a emergência de política externa turca de grande ativismo regional.

Esses são fatores de grande impacto sobre o Oriente Médio/Ásia Central que, nos últimos dez ou doze anos, conformaram largamente as relações internacionais na região. Não foram gerados na própria região, possuem profundas raízes históricas na própria dinâmica global, mas tiveram um impacto profundo sobre a região. De forma muito clara, por sua vez, geraram localmente apropriações originais que, por sua vez, darão movimento a tendências locais/regionais de grande alcance.

A crise mundial, desde 2008, com seu impacto direto sobre as economias européias – os clientes e parceiros tradicionais das ditaduras “estabilizadoras” (quer dizer, sunitas, pró-ocidentais e indiferentes em relação ao destino da Palestina) – enfraqueceu imensamente o equilíbrio anterior. Da mesma forma, as reformas “regressistas” e liberais realizadas nas economias locais (bem antes de atingirem a Europa), destruíram o sistema clientelístico e provedor das elites que conseguiram, com a ajuda da brutal repressão de suas polícias políticas, manter a ordem oligárquica.

Assim, a partir de 2008, com maior expressão ao final de 2010, irrompem inúmeros e incontroláveis movimentos populares, greves e manifestações de rua no imenso arco que se estende do Atlântico, com o Marrocos, até o Golfo Pérsico, no Bahrein, passando pela Argélia, Tunísia, Líbia, Egito, Arábia, Jordânia, Irã e Síria. De forma muito discreta na mídia ocidental, mas causando temor e perplexidade, milhares de israelenses vão às ruas em Jerusalém, Haifa e Tel-Aviv exigindo mais moradia e empregos e menos guerra.

É nesse contexto que as direções políticas regionais – tanto no Cairo ou Teerã, quanto em Tel-Aviv ou Riad – correm em direção a uma agudização dos conflitos locais. A rua assusta os governos que então alardeiam a ameça externa.

Primavera Árabe

NOTAS:

[1] Referimo-nos aqui, como “Grand Jeu”, a disputa diplomática e militar entre o Império czarista russo e o Império britânico, entre o final do século XIX e a primeira década do século XX, pelo controle dos planaltos do Pamir, o Tibete e as passagens para a Índia (então o “Raj”, domínio imperial britânico). O “Grande Jogo”, depois de infrutíferas tentativas de invasão britânica do Afeganistão, de seguidas intrigas russas para trazer para sua área de influência o reino de Kabul, concluiu-se – em face da ascensão de um inimigo maior e mais poderoso na Europa (a Alemanha), por um acordo que neutralizava o Afeganistão e entregava o Xinjiang (Turquemenistão chinês) à influência russa e blindava a Índia de uma possível “descida” russa. Hoje, o simulacro de “Grand Jeu” seria a tentativa americana de criar uma brecha na retaguarda estratégica da Rússia e China, ocupando o Afeganistão.

[2] O Pacto de Shangai, ou Organização de Cooperação de Shangai (herdeiro do Shangai Five Group, de 1996) foi criado em 2001 por iniciativa da China Popular e da Federação Russa como um organismo de segurança da Ásia Central e participam as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central.

[3] Reunião promovida pelos Estados Unidos e a então União Soviética, com o copatrocínio da Espanha, reunindo os governos de Israel, Líbano, Jordânia, Síria e a Organização de Libertação da Palestina para a criação de um marco diplomático e legal de negociações gerais de paz na região.

[4] Os chamados “Acordos de Oslo”, de 1993, foram as primeiras negociações diretas entre as partes em conflito (o governo do Estado de Israel, representado pelo então premier Yitzhak Rabin, e a Organização pela Libertação da Palestina, representada por Yasser Arafat) e deveriam constituir-se no “framework” das relações entre as partes e procedeu a criação da Autoridade Nacional Palestina, embrião do futuro governo nacional palestino. Após a eleição, em 1996, de Benjamin Natanyahu como primeiro ministro israelense, o governo conservador decidiu “interpretar” os acordos do ponto de vista da chamada “segurança de Israel”, paralisando uma série de medidas que deveriam viabilizar o Estado palestino. Da mesma forma, o Hamas recusou aceitar os termos dos Acordos. Na prática, os Acordos estão em ponto morto.

[5] O chamado “Quarteto” (ou “Diplomatic Quartet”) foi criado em 2002, em consequência da Conferência de Madrid para o Oriente Médio, com a missão de mediar o conflito, sendo composto pelos Estados Unidos, União Européia, ONU e Rússia.

[6] O Principio de Responsabilidade de Proteger – altamente questionado por várias nações, entre elas Rússia, índia e China, embora discutido desde a crise de Kosovo, foi aprovado pela ONU em 2005, e consiste em três princípios básicos, a saber:

1.The state has a responsability to proctect his population from mass atrocities;
2. The international community has a responsibility to assist the state if it is unable to protect its population on its own;
3. If the state fails to protect its citizens from mass atrocities and peaceful measures have failed, the international community has the responsibility to intervene through coercive measures such as economic sanctions. Military intervention is considered the last resort.

Ver: EVANS, Gareth. The Responsibility to Protect: Ending Mass Atrocity Crimes Once and For All. (Washington DC, Brookings Institution Press, September 2008)

[7] Entre 13 e 14 de março de 2011, cerca de mil tropas especiais da Arábia Saudita, com quinhentos policiais antidistúrbios, invadiram o pequeno reino do Bahrein para reprimir os protestos populares da população (de maioria xiíta) contra a dinastia (sunita) dos Al-Khalifa, que dominam o país como se fosse um feudo privado. A extirpação desse segmento da Primavera Árabe não mereceu condenações do Ocidente.”

FONTE: escrito por Francisco Carlos Teixeira, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicado no site “Carta Maior”  (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19645) [imagens do Google adicionadas por este blog ‘democracia&política’].

9 comentários:

  1. "...Em termos simples, a mensagem do Irã à Turquia e seus aliados árabes (que estão armando e apoiando a oposição síria) será:

    "Irmãos, se continuarem a armar os seus, armaremos os nossos."

    ...Para a Turquia, os navios de guerra iranianos chegaram à Síria em má hora. O jornal israelense Ha'aretz noticiou que o exército sírio capturou 40 agentes da inteligência turca envolvidos em atividades subversivas; e que, ao longo da semana passada, Ankara trabalhou “em intensas negociações” com Damasco, tentando libertá-los. Mas Damasco insiste que, em troca, a Turquia ponha fim à transferência de armas e infiltrações, e, além disso, quer que o Irã seja o mediador. Ha'aretz registrou:

    "Oficiais ocidentais temem que a presença militar iraniana, além da ajuda russa, converta a Síria em centro internacional de atrito ainda mais grave que a luta interna na Síria. Temem que uma “parceria” russo-iraniana venha a assumir o controle sobre ações na Síria, o que excluiria a União Europeia e a Turquia..."

    http://redecastorphoto.blogspot.com/2012/02/navios-de-guerra-iranianos-rumo-siria.html

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  2. Probus,
    Não aceito interferência não-solicitada em assuntos internos dos outros países. Minha torcida sempre foi querer a derrota, a punição, dos que se metem. Por isso, torci pela vitória de Saddam, de Kadafi e, agora, do Bashar al-Assad.
    Maria Tereza

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  3. Por falar em interferência e ingerência EXTERNA em nações soberanas...

    "...A porta-voz do Departamento de Estado dos EUA,

    Victória Nulandi

    declarou a

    insatisfação de seu país diante do

    veto da Rússia e da China a uma intervenção militar internacional aos moldes da Fórmula Líbia.

    Ela afirmou,

    entretanto,

    que seu país

    não descarta o

    fornecimento de armas ao

    autodenominado

    Exército Livre da Síria

    que, conforme demonstra abundante informação, conta com

    armamentos, apoio logístico, de comunicações, recursos financeiros e a presença de mercenários que atuaram e atuam na Líbia, com apoio dos

    principais aliados norte-americanos na região, especialmente da Arábia Saudita e do Qatar."

    23/02/2012: Brasil afasta-se dos Brics e vota contra a Síria

    Por Beto Almeida*

    Às vésperas do carnaval, a representante do Brasil na ONU votou resolução de condenação ao governo sírio, afastando-se dos BRICS, dos países da ALBA, emitindo contraditória e perigosa mensagem de aproximação com as potências que sustentam intervencionismo militar crescente em escala internacional, especialmente contra países com políticas independentes e emergentes. Um voto que pode ser um tiro no próprio pé futuramente.

    O Brasil ficou ao lado dos EUA, Inglaterra, França, Canadá, Espanha, Austrália, Alemanha, que deram sustentação à agressão ao Iraque, ao Afeganistão e, mais recentemente, à Líbia. Contra esta resolução que tendenciosamente condena e responsabiliza apenas o governo da Síria pela escalada de violência generalizada que atinge o país - na qual há farta evidência de ingerência estrangeira - estão a Rússia, China, Índia, África do Sul, países do grupo Brics - do qual o Brasil faz parte - e nove países da Alba, além do Irã, da Argélia, do Líbano, da Coréia do Norte. Este grupo reivindica que a solução da crise síria deve ser exclusiva dos sírios, que escolherão, nos próximos dias, pelo voto popular direto, um novo modelo de Constituição.

    A votação na ONU ocorre em meio a pressões das grandes potências de realizarem uma ação de armar a oposição síria. A porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Victória Nulandi declarou a insatisfação de seu país diante do veto da Rússia e da China a uma intervenção militar internacional aos moldes da Fórmula Líbia. Ela afirmou, entretanto, que seu país não descarta o fornecimento de armas ao autodenominado Exército Livre da Síria, que, conforme demonstra abundante informação, conta com armamentos, apoio logístico, de comunicações, recursos financeiros e a presença de mercenários que atuaram e atuam na Líbia, com apoio dos principais aliados norte-americanos na região, especialmente da Arábia Saudita e do Qatar.

    O papel intervencionista da TV Al-Jazeera

    A participação da oligarquia do Qatar no conflito sírio inclui a sistemática falsificação midiática da situação síria por parte da TV Al-Jazeera, emissora que foi fundamental também na sustentação midiática da invasão neocolonial à Líbia, com sofisticada over dose de desinformação, reproduzida ad nauseun por toda a mídia comercial internacional como única fonte informativa, questionada apenas pela Telesur que informava sobre o monumental massacre promovido pela Otan. Aliás, completamente confirmado. A TV Al-Jazeera é uma emissora capturada e plenamente a serviço da oligarquia petroleira internacional e nem mesmo o elogio de certas vozes da esquerda guiada pela Otan ou de ongs internacionais metidas no movimento de democratização da mídia, podem mais evitar esta constatação. O Qatar é um enclave oligárquico onde tem sede uma das mais importantes bases militares dos EUA na região.

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  4. Estaria o Itamaraty entrando em algum desconhecido estado de hipnose para não prestar a devida atenção ao público e assumido propósito intervencionista das grandes potências ocidentais na Síria, como revelam as declarações da porta-voz do Departamento de Estado?

    Em entrevista recente à BBC, o Ministro de Relações Exteriores da Inglaterra, Willian Hauge, disse estar preocupado com uma guerra civil na Síria, mas, confessando o sentido e a sinceridade de sua preocupação, afirmou, na mesma entrevista:

    "Como todos viram, não conseguimos aprovar uma resolução no Conselho de Segurança por causa da oposição da China e da Rússia.
    Não podemos intervir como fizemos na Líbia, mas podemos fazer muitas coisas."

    Declarações semelhantes, anunciando a disposição para apoio militar à oposição no conflito foi dada pelo Chanceler da Holanda, Uri Rosenthal. Com o emblemático silêncio do Itamaraty. Pior ainda, com a adesão do Brasil à resolução patrocinada por este grupo de países historicamente marcados pelo intervencionismo colonial.

    Autorização para a matança

    Sinais de que algo está se movendo negativamente no Itamaraty de Dilma Roussef surgiram quando, logo no início de seu governo, o Brasil absteve-se na votação da ONU que decidiu - tomando por base informações não confirmadas prestadas por emissoras como a Al Jazeera - pela gigantesca intervenção armada contra a Líbia. Aproveitando-se da frágil e acovardada posição da chancelaria brasileira naquele episódio, o presidente Barack Obama, o inacreditável Prêmio Nobel da Paz, desrespeitou a Presidenta Dilma e a todos os brasileiros ao declarar guerra à Líbia estando em Brasília! O que mereceu reparos posteriores da própria Dilma. E, pouco depois, uma espécie de confissão governamental sobre o trágico erro da posição brasileira então, quando o Assessor Internacional do Palácio do Planalto, Marco Aurélio Garcia, afirmou que aquela resolução foi na verdade uma “autorização para a matança”.

    Foram 203 dias de bombardeios para “salvar civis”, destruindo toda a infraestrutura construída pelo povo líbio em 40 anos, o que levou aquela nação a registrar o mais elevado IDH da África. Hoje, o petróleo líbio, antes nacionalizado, e utilizado com alavanca para sustentar um sistema de eliminou o analfabetismo, socializou a educação e a saúde, já está nas mãos das transnacionais petroleiras, evidenciando a guerra de rapina. Nem mesmo a esquerda otanista, que apoiou a invasão, pode negar os 200 mil mortos líbios, as prisões abarrotadas, a dizimação sumária das populações negras em cidades totalmente calcinadas, as torturas. Qual é o balanço que o Itamaraty faz de seu próprio voto que, em última instância, encorajou semelhante massacre?

    Também é sinal de involução na posição do Itamaraty em relação à gestão de Lula-Celso Amorim, o voto brasileiro na ONU contra o Irã na temática direitos humanos, sobretudo quando é conhecidíssima a descarada manipulação desta esfarrapada bandeira humanista pelo militarismo imperial.

    Aliás, aquele voto contra o Irã, só não foi acrescido de vexame diplomático internacional porque o governo persa advertiu com informações objetivas ao governo brasileiro de que a tão difundida cidadã iraniana Sakhiné foi condenada por ter assassinado seu marido e não porque teria praticado adultério como tantas vezes se repetiu no sempre duvidoso jornalismo global. E também de que era apenas uma grosseira mentira a “notícia” de que os livros de Paulo Coelho eram censurados no Irã, quando são vendidos livremente, e muito, em todas as livrarias das grandes cidades persas. A ministra da cultura de um país com taxas de leituras raquíticas e analfabetismo vergonhoso quase comete o papelão de um protesto oficial. Desistiu a tempo.

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  5. Telhados de vidro

    Que diferença da postura firme do Itamaraty no governo que condenou veemente a criminosa guerra imperialista contra o Iraque! Agora, observa-se uma gradual aproximação das posições do Itamaraty aos conceitos e valores daqueles países que promoveram aquelas intervenções indefensáveis contra o Iraque, o Afeganistão e a Líbia. O que indicaria uma contradição evidente também diante das próprias declarações da presidenta Dilma Roussef sobre direitos humanos em Cuba, rejeitando, com justeza, a pressão das grandes potências para a condenação unilateral e descontextualizada de países com posturas independentes.

    “Todos temos telhados de vidro”, lembrou a mandatária verde-amarela. Corretíssimo! Mas por que então só o Irã foi alvo de voto da delegação brasileira na ONU? Por que não há voto brasileiro na ONU contra Guatânamo, as torturas praticadas pelos dispositivos militares dos EUA, os seqüestros de cidadãos islâmicos em várias partes do mundo, com a conivência dos países europeus que se gabam de serem professores em matéria de democracia e direitos humanos mas que oferecem seu território, seu espaço aéreo e suas instalações militares para, submissos, colaborarem com as repressivas leis exclusivas dos EUA? Será que o Itamaraty vai fazer algum protesto na ONU diante de declarações de autoridades do Pentágono de que comandos militares dos EUA que executaram Bin Laden no Paquistão poderão atuar também na América Latina?

    Não estará havendo um descolamento de algumas posturas do Itamaraty em relação à posição estratégica que a política externa vem construindo ao longo de décadas, reforçada de modo mais elevado e coerente no governo Lula? Neste período, formatou-se uma estratégica prioridade para uma relação cooperativa com os países do sul, uma integração concreta com a América Latina e Caribe, agora consolidada na criação da Celac, a igual prioridade para o fortalecimento da Unasul (inclusive de seu Conselho de Defesa), a defesa da legítima soberania argentina sobre as Malvinas contra a ameaçadora pretensão colônia inglesa e, finalmente, a coordenação e inclusão do Brasil no Grupo do Brics, sem esquecer os objetivos que levaram Lula a promover a Cúpula de Países Árabes e América do Sul.

    O Brasil diversificou prudentemente suas relações internacionais tendo agora como maior parceiro comercial a China e não os EUA, com quem possui perigoso e crescente déficit comercial, além de ser um país que já promoveu sanções contra o Brasil por causa do Acordo Nuclear, por causa da Projeto Nacional da Informática, sem esquecer, claro, o nefasto golpe militar de 64, confessamente apoiado pelo Departamento de Estado dos EUA.

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  6. A sinistra mensagem da Líbia

    Enquanto o Itamaraty parece hipnotizado por uma relação de aproximação com os países que mais promovem intervencionismo militar unilateral e ilegal no mundo, nos círculos militares brasileiros se ouviu e se entendeu com clareza e concretude a ameaçadora mensagem enviada pelas grandes potências com a agressão à Líbia, inclusive, aplicando arbitrariamente, ao seu bel prazer, os termos da Resolução aprovada na ONU.

    Especialistas militares brasileiros já discutem em organismos superiores a abstração de uma visão política que não considera que a intervenção rapinadora sobre as riquezas da Líbia são também ensaios e testes para ações mais amplas e generalizadas que podem ser aplicadas contra todo e qualquer país que também possua riqueza energética e alguma posição independente no cenário internacional. O figurino não serve para o Brasil? Tal como Kadafi, que se desarmou, que abandonou seu programa nuclear, que se aproximou perigosamente dos carrascos de seu próprio projeto de nação, e que não pode organizar uma linha estratégica de defesa em coordenação com países como Rússia e a China, o Brasil também desarmou-se unilateralmente durante o vendaval neoliberal.

    A indústria bélica brasileira foi levada ao chão praticamente, configurando-se, agora, um perigoso cenário: é possuidor de imensas reservas de petróleo descobertas, como também de urânio, de nióbio, de água, de biodiversidade, e , simultaneamente, não possuidor da mais mínima capacidade de defesa para controlar eficientemente suas fronteiras ou até mesmo a Baía da Guanabara como porta de entrada do narcotráfico internacional, cujas noticiadas vinculações com organismos como a Cia deveria merecer a preocupação extrema do Itamaraty. Será que a robusta e impactante revisão pela Rússia e China de suas posições adotadas quando admitiram a agressão imperial contra a Líbia para uma nova postura de veto a qualquer repetição da fórmula líbia que a Otan confessa pretender aplicar contra a Síria não deveria alertar os formuladores da política do Itamaraty?

    Da mesma forma que se ouviu estrondoso a acovardado silêncio itamaratiano quando um avião Drone dos EUA foi capturado, em dezembro pelos sistemas de defesa iranianos quando invadia ilegalmente o espaço aéreo do Irã, agora, repercute novo silêncio brasileiro diante das jorrantes informações de infiltração de armas e de mercenários da Al-Qaeda em território, como admitem autoridades de países membros da Otan. O que pretende o Itamaraty? Defender os direitos humanos dos mercenários da Al-Qaeda subvencionados por países como a Arábia Saudita e o Qatar, que já haviam violado a soberania da Líbia, com o conivente voto brasileiro na ONU?

    Manifestações populares defendem posição da Rússia e da China

    Que significado terá para o Itamaraty a gigantesca manifestação popular em Damasco para receber o chanceler russo, Sergei Lavrov, e agradecer a posição da Rússia e da China contra qualquer intervenção militar na Síria? Não estará a própria Rússia saindo de uma fase de hipnose de anos que, baseada na insustentável credulidade em torno dos acordos de redução de arsenais firmados com os EUA, levou-a, de fato, apenas a um desarmamento unilateral enquanto os orçamentos militares norte-americanos multiplicam-se e já suplantam os orçamentos militares de todos os países do mundo somados? Que significa para o Itamaraty a contundente declaração do Primeiro Ministro da China, Hu Jin Tao, propondo uma aliança militar sino-russa, após advertir que os EUA “só entendem a linguagem da força”?

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  7. Enquanto o Brasil vota com os países intervencionistas contra a Síria, a Inglaterra eleva sua presença militar nuclear no Atlântico Sul e os organismo militares brasileiros, como já tinham detectado durante da guerra das Malvinas nos anos 80, percebem que não há suficiente e adequada capacidade de defesa nacional para as riquezas do pré-sal.

    Naquela época, embora posicionando-se pela neutralidade, o Brasil assumiu uma posição de neutralidade imperfeita que não o impediu de dar ajuda logística e de material de reposição militar à Argentina em sua guerra contra o imperialismo inglês, ocasião em que Cuba também ofereceu tropas ao governo portenho para lutar contra a Inglaterra. Compare-se com a posição atual no caso sírio.

    Será que é motivo de preocupação concreta para o Itamaraty, tendo como base o princípio sustentado pelo Brasil, de que quantidades indeterminadas de aviões drones dos EUA vasculham o território sírio, como anunciam autoridades norte-americanas, violando, portanto, sua soberania? Esta ingerência externa não merece posicionamento formal do Brasil na ONU? Mas, na rasteira filosofia dos dois pesos e duas medidas, o Brasil vota em aliança os países intervencionistas para intimidar o Irã em matéria de direitos humanos, mesmo quando a presidenta Dilma anuncia que todos têm telhado de vidro e que a discussão sobre os direitos humanos deve iniciar-se pela sistemática câmara de torturas que os EUA mantém na base de Guantánamo. Será que as palavras de Dilma não são ouvidas no Itamaraty?

    O governo do Líbano já está adotando posições políticas, que incluem manobras militares, para evitar que suas fronteiras com a Síria sejam utilizadas pelas nações que estão patrocinando o armamento e a infiltração de mercenários, com o apoio ostensivo de países intervencionistas, com o objetivo de derrubar o governo de Damasco. O mesmo está ocorrendo na Turquia, inclusive, com a ocorrência de uma grande manifestação popular em cidade turca fronteiriça à Síria, em apoio ao governo de Damasco. Em Curitiba, a Igreja Ortodoxa realizou Missa de Ação de Graças, organizada pelas comunidade sírio-libanesa e palestina, em agradecimento à Rússia e a China, gesto parecido ao ocorrido em Brasília, quando a mesma comunidade levou flores e agradecimento à embaixada da Rússia no Brasil.

    Partidos e sindicatos

    É importante que os partidos e sindicatos, sobretudo a aliança dos partidos progressistas e antiimperialistas que sustentam o governo Dilma, discutam atentamente as sombrias involuções da política do Itamaraty. Os militares brasileiros, certamente, já estão discutindo em seus organismos de estudo e planejamento, como indica a quantidade de textos e participações de autoridades militares brasileiras em audiências públicas e em publicações especializadas, sobretudo a partir da sinistra mensagem da Líbia.

    Enquanto o Brasil é alvo de uma guerra cambial desindustrializadora, como advertem membros do governo, enquanto especialistas militares advertem para o período de nosso desarmamento unilateral frente a nossas gigantescas e cobiçadas riquezas naturais, observa-se, enigmaticamente, um reposicionamento do Itaramaty distanciando-se não apenas dos princípios e posturas aplicadas mais acentuadamente durante o governo Lula, mas, distanciando-se também do conjunto de países com os quais vem construindo uma linha de cooperação para escapar dos efeitos da crise que as nações imperialistas tentam descarregar sobre a periferia do mundo.

    E aproximando-se dos sinais e valores impregnados nos discursos e atos da sinistra Secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, aquela que comemorou com uma gargalhada hienística quando viu as imagens de Muamar Kadafi sendo sodomizado e executado graças a informações prestadas pelos comandos militares dos EUA, conforme denunciou Vladimir Putin.

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  8. Ponto alto da campanha eleitoral de Dilma Roussef foi a declaração de Chico Buarque em defesa de sua candidatura porque com Lula e Dilma, disse ele,

    “o Brasil não fala fino com os EUA e não fala grosso com a Bolívia”.

    O que explicaria então esta enigmática e contraditória aproximação do Itamaraty com as posturas ingerencistas de Hillary Clinton com relação à Síria e ao Irã? Seria afastamento em relação à genial síntese feita pelo poeta e revolucionário Chico Buarque?

    *Beto Almeida é jornalista e membro da Junta Diretiva da Telesur

    Fonte: Carta Maior

    http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=176318&id_secao=9

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  9. Probus,
    Muito bom esse artigo de Beto Almeida.
    Vou transcrevê-lo.
    Obrigada
    Maria Tereza

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