A CARTA MAGNA ESTÁ SOB ATAQUE NOS EUA E NO MUNDO
O artigo é de Noam Chomsky
PESSOAS SAGRADAS E PROCESSOS INACABADOS
“A emenda 14 posterior à Guerra Civil garantia os direitos de pessoa aos
antigos escravos, embora ainda em teoria. Ao mesmo tempo, criava nova categoria
de pessoas com direitos: as grandes
empresas. De fato, quase todos os casos relativos à décima quarta emenda
que terminaram nos tribunais tinham a ver com direitos empresariais, e há quase
um século já haviam determinado que essas ficções legais coletivistas,
estabelecidas e sustentadas pelo poder de Estado, possuíam plenos direitos,
como as pessoas de carne e osso. Na realidade, trata-se de direitos bastante
mais amplos, dadas as suas escalas, imortalidade e proteções de
responsabilidade limitada em relação a suas dimensões.
De acordo com os “acordos de livre
comércio”, a “Pacific Rim” pode, por exemplo, acionar El Salvador pelo fato
de o país tentar proteger o meio ambiente. Os indivíduos não podem fazer tal
coisa. A “General Motors” pode reclamar direitos nacionais no México. Não há
necessidade de se preocupar sobre o que aconteceria se um mexicano exigisse
direitos nacionais nos Estados Unidos.
No plano interno, as recentes decisões da Corte Suprema incrementam o enorme
poder político das grandes corporações e dos superricos, golpeando com maior
força ainda os vestígios vacilantes de uma democracia política operativa.
Enquanto isso, a Carta Magna sofre ataques mais diretos. Recordemos a “Lei do
Habeas Corpus” de 1679, que proibia a “prisão
em alto mar” e, com isso, o procedimento impiedoso de prisão no estrangeiro
com o fim de torturar: o que hoje se
chama mais educadamente de “entrega”, como quando Tony Blair entregou o
dissidente líbio Abdel Hakim Belhaj, hoje dirigente da rebelião, à misericórdia
do Coronel Kadafi; ou quando as autoridades estadunidenses deportaram o cidadão
canadense Maher Arar para a sua Síria natal, para ser encarcerado e torturado,
reconhecendo só posteriormente que não havia acusação alguma formada contra ele.
E muitos outros, amiúde através do aeroporto de Shannon, o que provocou
diversos protestos na Irlanda.
O conceito de devido processo legal ampliou-se com a campanha internacional de
assassinatos da administração de Barack Obama, de modo que esse elemento
central da Carta de Direitos (e da Constituição) se tornou nulo e vazio. O
Departamento de Justiça explicou que a garantia constitucional do devido
processo legal, que remonta à Carta Magna, requer agora unicamente as
deliberações internas do poder Executivo. O advogado constitucional da Casa
Branca mostrou-se de acordo com isso. O rei João Sem Terra teria assentido com
satisfação.
A questão foi suscitada depois do assassinato, a mando do presidente, por meio
de aviões não tripulados, de Anuar al-Awalaki, acusado de incitar a jihad, por
escrito, e de ações não determinadas. Um jornalista do “New York Times” captou
bem a reação geral da elite, quando ele foi assassinado num ataque com aviões
não tripulados, junto aos habituais danos colaterais. Rezava a sua manchete: “Ocidente celebra a morta de um clérigo”.
Alguns levantaram as sobrancelhas, pois se tratava de cidadão estadunidense, o
que suscitava questionamentos sobre o devido processo legal...considerados
irrelevantes quando se assassina concidadãos às vistas do chefe do Executivo. E
irrelevante, também, de acordo com as inovações legais sobre o devido processo
legal, levadas a cabo na administração Obama.
Também se deu nova e útil interpretação à presunção de inocência. Como informa
o “New York Times”, “Obama adotou um
método discutido para contar as baixas civis sem esconder os dedos. Conta, com
efeito, como ‘combatentes mortos’ todos os homens em idade militar na zona de
ataque, de acordo com diversos funcionários da administração, a menos que
existam dados de inteligência que, de forma póstuma, demonstrem que se trata de
inocentes”. De modo que a determinação de inocência posterior ao
assassinato mantém sagrado o princípio da presunção de inocência.
Seria descortês recordar das Convenções de Genebra, cimentos da lei humanitária
moderna. Elas proíbem que “se leve a cabo
execuções sem juízo prévio, pronunciado por um tribunal regularmente
constituído, que permita todas as garantias judiciais que se conheçam como
indispensáveis pelos povos civilizados”.
O caso célebre mais recente de assassinato cometido pelo Executivo foi o de
Osama Bin Laden, assassinado depois de ter sido detido por 79 comandos da
marinha, indefeso, acompanhado apenas de sua esposa e com o corpo jogado ao mar
sem autópsia. Pense-se o que quiser, ele era um suspeito e nada mais que um
suspeito. Até o FBI concorda com isso.
A celebração nesse caso foi assombrosa, mas ele suscitou muitas perguntas a
respeito do rechaço desavergonhado do princípio da presunção de inocência,
sobretudo quando um julgamento era apenas impossível. Foram objeto de dura
condenação. A mais interessante foi a de Matthew Yglesias, comentarista
respeitado da esquerda liberal, que explicava que “uma das principais funções da ordem institucional internacional
consiste precisamente em legitimar o uso de uma força militar mortífera por
parte das potências ocidentais”, de maneira que se torna “assombrosamente ingênuo” sugerir que os
EUA tenham de obedecer ao Direito Internacional ou outras condições que
exigimos com retidão aos mais débeis.
Só se pode oferecer objeções táticas à agressão, ao assassinato, à ciberguerra
ou a outras ações que o Santo Estado leva a cabo “a serviço da humanidade”. Se
as vítimas tradicionais veem as coisas de modo um tanto diferente, isso
simplesmente revela seu atraso moral e intelectual. E ao crítico ocidental
ocasional, que não chega a compreender essas verdades fundamentais, pode-se
desconsiderá-los como “tontos”, explica Yglesias, referindo-se decerto a mim, e
eu confesso alegremente minha culpa.
NA LISTA DE TERRORISTAS DO PODER EXECUTIVO DOS EUA
Por acaso, o ataque mais chamativo aos pilares das liberdades tradicionais foi
o pouco conhecido “caso Holder”, que a administração Obama levou à Suprema
Corte. Nesse caso, contra o “Projeto de Direito Humanitário” [Humanitarian Law Project], condenou-se o
projeto por ele recomendar a “assistência
material” à organização guerrilheira PKK, que tem lutado, durante muitos
anos, pelos direitos dos curdos na Turquia e figura na lista dos grupos
terroristas do poder executivo dos EUA. A “assistência
material” consistia em assessoria legal. A redação da sentença parecia
aplicar-se de forma muito ampla, por exemplo, a debates e petições de
investigações, inclusive a aconselhar à PKK a abrir mão dos meios violentos.
Mais uma vez existia espaço que dava margem à crítica, mas até isso aceitava a
legitimidade do lista de terroristas do estado: decisões arbitrárias do Executivo, sem recurso.
O histórico da lista de terroristas guarda certo interesse. Assim, por exemplo,
em 1988, a administração Reagan declarou que o “Congresso Nacional Africano”
era um dos “grupos terroristas mais
destacados” do mundo, a fim de que Reagan pudesse manter seu apoio ao
regime do apartheid e sua depredação assassina da África do Sul e aos países
vizinhos, como parte de sua “guerra
contra o terror’. Vinte anos depois, o Congresso saiu da lista de
terroristas e hoje podem viajar, os seus membros, aos EUA, sem visto especial.
Outro caso interessante é o de Saddam Hussein, eliminado da lista de
terroristas em 1982, para que a administração Reagan pudesse apoiá-lo na sua invasão
do Irã. Esse apoio continuou intenso depois de encerrada a guerra Irã-Iraque.
Em 1989, o presidente Bush chegou até a convidar engenheiros nucleares
iraquianos aos EUA para lá fazerem a sua formação avançada em produção de
armas, outra informação que há de ser afastada dos olhos “dos intrometidos e ignorantes”.
Um dos exemplos mais feios do uso da lista de terroristas tem relação com o
povo torturado da Somália. Imediatamente após o 11 de setembro, os EUA
capturaram a rede somali de assistencialismo Al-Barakaat, com base na tese de
que ela financiava o terrorismo. Essa conquista foi saudada como um dos grandes
êxitos da “guerra contra o terror”.
Em contraste, a retirada um anos depois das acusações, por falta de fundamento
oferecido por Washington, gerou pouco interesse.
Al-Barakaat era responsável por cerca da metade dos 500 milhões de dólares de
remessas a Somália, “mais de o que
qualquer setor econômico do país e dez vezes a quantidade de ajuda exterior que
a Somália recebe”, segundo determinou investigação das Nações Unidas. A
organização assistencialista também administrava negócios de importância, na
Somália. E todos foram destruídos. O mais destacado especialista acadêmico da “guerra financeira contra o terror”,
Ibrahim Warde, conclui que, além de destroçar a economia, este frívolo ataque
contra uma sociedade muito frágil “pode
ter desempenhado seu papel na ascensão dos...fundamentalistas islâmicos”,
outra consequência familiar na guerra contra o terror.
A ideia de que seja o Estado que deva gozar da autoridade de emitir tais juízos
é uma grave ofensa à Carta de Direitos, como o é o fato de que se considere tal
autoridade indiscutível. Se a queda em desgraça da Carta segue tendo lugar
nesses últimos anos, o futuro dos direitos e das liberdades se mostra obscuro.
QUEM RIRÁ POR ÚLTIMO?
Algumas palavras finais sobre a “Carta do Bosque”. Seu programa consistia em
proteger a fonte de sustento da população, os bens comuns, dos poderes
externos: no começo, da realeza britânica; com o passar dos anos, as cercas e
outras formas de privatização por parte das corporações predadoras e das
autoridades do Estado, que cooperam com elas, não se fez mais do que
acelerar-se e recompensarem-se de acordo. Os danos são amplos.
Se escutamos hoje as vozes do sul podemos chegar a saber que a “conversão dos bens públicos em propriedade
privada mediante a privatização do entorno é nossa, cuja gestão, se não é
comum, é um modo mediante o qual as instituições neoliberais eliminam os elos
frágeis que mantém as nações africanas unidas. A política foi hoje reduzida a uma empresa lucrativa na qual se
contemplam principalmente os retornos de investimentos antes da atividade que
possa contribuir para a reconstrução de entornos, comunidades e nações
enormemente degradadas. Esta é uma das vantagens dos programas de ajuste
estrutural infligidos ao continente: o enraizamento da corrupção”. Cito o
poeta e ativista nigeriano Nnimmo Bassey, presidente da “Amigos da Terra
Internacional”, em sua revelação dilacerante sobre o saque das riquezas
africanas, “To Cook a Continent” [Cozinhando um Continente], última fase
da tortura ocidental na África.
Tortura que se planejou, sempre no mais alto nível, deve-se admiti-lo. No final
da Segunda Guerra Mundial, os EUA ostentavam posição de poder global sem
precedentes. Não é de surpreender que tenham feito planos cuidadosos e
sofisticados a respeito de como organizar o mundo. A cada região do planeta se
atribuiu uma “função” por parte dos estrategistas do Departamento de Estado,
encabeçados pelo distinto diplomata George Kennan. Ele determinou que os EUA
não tinha interesse especial na África, de modo que se devia entregar o
continente à Europa para ser “explorada” – o termo é sujo – “para a sua
reconstrução”. À luz da história, poderíamos ter imaginado uma relação
diferente entre Europa e África, mas não há indicações de que tal coisa tenha
sido em momento algum considerada.
Mais recentemente, os EUA reconheceram que também deveriam somar-se ao jogo de
exploração da África, junto aos novos participantes, como a China, que se
mostra muito diligente em seu trabalho de acumular uma das piores histórias de
destruição do meio ambiente e de opressão das vítimas desventuradas.
Deveria ser desnecessário estender-se sobre as extremas ameaças das obsessões
predadoras que estão ocasionando calamidades representa para todo o mundo: a
dependência dos combustíveis fósseis, que nos expõe a um desastre global,
talvez num futuro não muito distante. Pode-se discutir os detalhes, mas há poucas
dúvidas sérias de que os problemas sejam graves, se não impotentes, e que,
quanto mais tardemos em os determos, tanto mais terrível será a herança que
deixaremos às próximas gerações. Há alguns esforços para encarar a realidade,
mas são os menores. A recente Conferencia Rio+20 abriu-se com aspirações magras
e concluiu com resultados irrisórios.
No entanto, a concentração de poder tem implicações nocivas para o país mais
rico e poderoso da história mundial. Os republicanos do Congresso estão
desmantelando as limitadas regulações ambientais iniciadas na gestão de Richard
Nixon, pois essas seriam algo como um perigo radical na cena política hoje. Os
principais grupos de lobby corporativo anunciam abertamente as suas campanhas
de propaganda para convencer a opinião pública de que não é o caso preocupar-se
indevidamente...com certo efeito, vide as pesquisas de opinião.
A mídia coopera quando não informa sequer as previsões cada vez mais graves das
agências internacionais e até do Departamento de Energia dos EUA. O informe
tradicional consiste num debate entre alarmistas e céticos: de um lado estão
praticamente todos os cientistas qualificados e, de outra, alguns denegadores
que resistem. Não formam parte do debate grande número de experts, entre os que
se encontram no programa de mudança climática do MIT, além de outros, que
criticam o consenso científico por ser demasiado conservador e precavido, com o
argumento de que a verdade sobre a mudança climática é muito mais
aterrorizadora. Não é de se surpreender que opinião pública se mostre confusa.
Em seu discurso sobre o Estado da União em janeiro, Obama saudou as
perspectivas brilhantes de um século de autossuficiência energética, graças às
novas tecnologias que permitem a extração de hidrocarburetos de areias
alcatroadas, xisto e outras fontes antes inacessíveis. Outros estão de acordo:
o “Financial Times” prognostica um século de independência energética para os
EUA. A informação menciona as repercussões locais destrutivas dos novos
métodos. O que não se faz nesses prognósticos otimistas é a pergunta: que tipo
de mundo sobreviverá a esse ataque predatório?
Na linha de frente quando se lida com esta crise em todo o mundo estão as
comunidades indígenas, que sempre defenderam a Carta do Bosque. A posição mais
sólida tem sido a adotada pelo único país em que os indígenas governam, a
Bolívia, o país mais pobre da América do Sul, vítima, durante séculos, da
destruição ocidental dos ricos recursos de uma das sociedades mais avançadas do
hemisfério, antes de Colombo.
Após o ignominioso fracasso da cúpula sobre mudança climática de Copenhage, em
2009, a Bolívia organizou uma Cúpula dos Povos, com 35 mil participantes, de
140 países, não apenas representantes de governos, mas também da sociedade
civil e ativistas. Elaborou um Acordo dos Povos, que clamava por fortíssima
redução da emissões de gases, e por uma “Declaração Universal da Mãe Terra”.
Trata-se de exigência chave das comunidades indígenas do mundo inteiro. Os
ocidentais sofisticados a ridicularizam, mas ao menos algo de sua sensibilidade
poderíamos adquirir, pois é provável que eles sejam os últimos a rir, um riso
lúgubre de desespero.”
FONTE: artigo de Noam Chomsky
transcrito no site “Carta Maior” com tradução
de Katarina Peixoto (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20714).
Maria Tereza, novamente me desculpando pelo off topic, sobre o tema dos preços dos carros, vc que lê muito poderia talvez me explicar.
ResponderExcluirPrefiro Lula e Dilma a FHC, mas infelizmente os dois nada fizeram para mudar essa realidade.
Argumento forte 1 : o Lula nomeou como Ministro da Industria um homem das montadoras, o Miguel Jorge.
Argumento 2 : a Dilma não quer que os chineses baixem nossos preços internos. Aumentou o IPI dos importados.
Parece que o governo e as montadoras estão associados para depenar o povo brasileiro.
O governo com altos impostos, as montadoras com altos lucros fazendo um carro custar 3 ou 4 vezes mais em um país cuja renda é 4 vezes menos do que lá fora.
Quem que poderia nos salvar destes 2 abutres ?
MT, vc que é uma pessoa de bom senso e com muita leitura poderia escrever algo sobre o tema.
Abrs
Iurikorolev,
ResponderExcluirRealmente, este assunto é complexo e mal-resolvido para o Brasil. Merece outras postagens. Quanto aos impostos maiores para os importados, vejo lógica, pois as outras montadoras aqui instaladas ao menos geram alguns milhares de empregos; e as importadoras muito poucos.
Maria Tereza