quinta-feira, 18 de outubro de 2012

SERRA SABOTA ATÉ O PRÓPRIO PASSADO

Por Saul Leblon


“A 12 dias das urnas do 2º turno, e somente depois de escancarada a omissão, o tucano José Serra lançou seu programa de governo. O evento entre amigos, em uma livraria em SP, foi quase um programa de lazer tucano, uma encenação política filmada e tapar o buraco mais corrosivo de uma propaganda eleitoral: a credibilidade.

Em meio ao contravapor das pesquisas, o tucano enfrenta um desgaste de fundo. Quanto mais se expõe, mais se configura o teor de uma trajetória em que as dissimulações se sucedem, como as cascas de uma cebola.

Essa é a grande dificuldade dos seus marqueteiros: hoje, o tucano compõe aos olhos da população um personagem cada vez mais desconectado de sua fala; as atitudes ecoam mais alto do que a voz e desautorizam as promessas.

O acúmulo tende a consolidar uma imagem que se move de forma autônoma. À revelia do arsenal publicitário, calcifica-se o perfil de um político que sabota até o próprio passado na busca sôfrega pelo poder.

Mudar isso é como enxugar o chão com a torneira aberta.

Carrega-se na maquiagem aqui, arruma-se um beijo inverossímil ali. Em seguida, a realidade irrompe como um vento inoportuno a sabotar o controle do incêndio.

O 'progressista', descobre-se mais adiante, teve atuação regressiva nas votações relativas ao direito do trabalhador, segundo levantamento do DIAP.

O 'desenvolvimentista' [sic!], soube-se de fonte insuspeita, foi um dos mais empenhados defensores das grandes privatizações do ciclo tucano, caso da Vale do Rio Doce, por exemplo. Testemunho de FHC nas eleições de 2010.

O propalado 'arrojo administrativo' [sic!] reduz-se ao cacarejar de galinha velha: faz barulho mas não bota. Juntos, Serra/Kassab completaram oito anos de um condomínio administrativo que objetivamente destratou SP; agora, recolhe o saldo de uma rejeição estrondosa: 45% da cidade reprova a gestão consorciada.

No episódio mais recente, do 'kit anti-homofóbico', cairam as cascas da cebola que ostentavam as credenciais do liberal. Emergiu o oportunista da intolerância, abraçado a um savonarola dos 'bons costumes'. Um intercurso explícito entre o obscurantismo e o vale tudo que constrange até círculos intelectuais mais esclarecidos do tucanato.

Depois de alvejar a iniciativa do MEC, Serra foi desmascarado mais uma vez: em 2009, quando governador, distribuiu material semelhante em muitos aspectos ao professorado estadual de SP.

A semelhança é compreensível: o material, nos dois casos, foi produzido pela mesma instituição, a ONG “Ecos”.

Palavras de um dos integrantes da equipe que participou do projeto: "A ‘Ecos’ sempre trabalhou na gestão do Serra; ele está cuspindo no pote que comeu. O material que fizemos para o MEC tem 80% do material do Estado de São Paulo. É um absurdo se utilizar do preconceito para ganhar voto" (Toni Reis, presidente da ABGLT).

Avulta nesse episódio a caricatural disposição de alguém disposto a dilapidar o próprio currículo. No desespero eleitoral, Serra atacar o programa do próprio Serra.

Compare o tucano de agora, agarrado ao pastor Malafaia, com esse outro, que tomou as seguintes medidas, lembradas por Antonio Lassance, colunista de “Carta Maior”:

a) em 2005, ele criou a “Coordenadoria de Assuntos da Diversidade Sexual” em São Paulo; depois, instituiu a “Comissão a Comissão Processante Especial” para apuração de atos Discriminatórios a que se refere a Lei n° 10.948/2001, destinada a receber, analisar e mandar punir atos anti-homofóbicos;

b) também em 2005, Serra criou o “Conselho Municipal em Atenção à Diversidade Sexual” e o “Centro de Referência e Combate à Homofobia”;

c) em 2006, criou o GRADI – “Grupo de Repressão a Delitos de Intolerância”, a DECRADI – “Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância”, para o controle e repressão dos grupos homofóbicos.

Em resumo, quando o interesse era disputar o espaço LGBT com a petista Marta Suplicy, Serra não criou apenas um kit anti-homofobia, mas armou um elogiável rede da tolerância em SP. Agora, dá guinada na direção oposta e salta para os braços “dos malafaias”, supostamente puxadores do voto evangélico.

O evento tardio de 2ª feira em torno do 'programa' para a cidade ressente-se desse vício congênito à natureza política de Serra: a simulação, irmã gêmea da falta de escrúpulo.

O que se divulgou foi um adereço de mão de fantasia eleitoral, no qual nem o candidato acredita, como deixou claro no discurso que proferiu no evento.

Passa-se ao largo da oportunidade preciosa de discutir São Paulo para valer, estendendo a seu moradores o direito elementar de escrutinar os problemas da cidade e tomar consciência dos requisitos políticos para equacioná-los.

Não há rigor técnico algum na rudimentar listagem tardia das propostas mal-ajambradas pelo tucano. O que é feito para não valer pode elidir metas, omitir cronogramas e abstrair custos.

Em resumo, prescindir dos requisitos que lhe dariam veracidade e transparência compatível com a eventual fiscalização pela cidadania.

O simulacro do conjunto foi resumido na descrição de um item por insuspeita fonte: "Em um dos poucos momentos em que dedicou sua fala às próprias propostas, Serra lembrou a promessa de construir 30 AMAs (Assistência Médica Ambulatorial)". (...) "Mas não a ponto de detalhar onde vamos fazer..." (ressalvou o tucano). "Isso seria impossível" (UOL, 16-10).

O modelar descompromisso se repete em outros tiros a esmo, como a promessa de implantar '30 parques' na cidade (onde? como? com que verba?); ou instalar mais “cinco mil novos pontos de luz” ou ainda a etérea menção uma deficiência escandalosa da gestão de seu apadrinhado, que não dedicou a ela um centímetro adicional de asfalto: 'expandir a rede de corredores de ônibus'. Assim, em quatro palavras, desincumbe-se o tucano da grave distopia do transporte em São Paulo, como se fosse algo tangencial, passível de tratamento genérico e ligeiro. Vai por aí o seu crepuscular 'programa de governo'.

O conjunto exala o peso e a contundência de uma bolinha de papel eleitoral. Mais que isso, reforça uma percepção que se calcifica: Serra é o principal testemunho contra ele mesmo.

A postura professoral ancorada em boutades é quase ofensiva; a soberba incontrolável das sobrancelhas em pinça denuncia a impaciência de quem ouve por obrigação.

Quando tenta transparecer humildade, o tucano exala condescendência; o tom do discurso é sempre o mais revelador: ao tentar ser simpático é notório que está sendo falso.

O antissindicalismo udenista de Serra explode ao primeiro conflito social, assim como o recorte antidemocrático irrompe à primeira pergunta embaraçosa de jornalista não embarcado na vassalagem midiática.

O higienismo social que arremata o conjunto sequer é dissimulado --e olha que estamos falando de um dissimulador experimentado.

É difícil demover as consequências eleitorais dessa sedimentação ancorada na percepção intuitiva da população, saturada de dissimulações rotas, convicções esfarrapadas e do recorrente vale tudo das conveniências.

São Paulo é o grande bunker logístico do conservadorismo brasileiro.

A rejeição a um dos principais quadros desse aparato precisa acumular muito vapor na fornalha para romper uma blindagem arrematada com a solda dupla do jornalismo cúmplice.

O maior trunfo de Haddad hoje é esse discernimento em curso na opinião pública.

Trata-se de iluminar cuidadosamente o cerne da questão: Serra é impermeável a qualquer valor ou compromisso que não atenda ao seu exclusivo interesse pessoal. No seu arquivo biográfico, o interesse pela cidade ocupa o lugar da prateleira subalterna. E essa hierarquia se adensa nos episódios caricaturais desta campanha de 2012.”

FONTE: escrito por Saul Leblon no site “Carta Maior”  (http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=1115).

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