sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A INTERVENÇÃO OCIDENTAL NA LÍBIA E A CRISE NO MALI

A FRANÇA NO MALI: O BUMERANGUE DE LONGO PRAZO DO IMPERIALISMO

“A crise atual no Mali é um produto do colonialismo francês e a intervenção, infelizmente, vai causar mais efeito-bumerangue


O envio de soldados franceses para enfrentar o rápido avanço de militantes Salafistas no norte do Mali representa a convergência de círculos múltiplos do efeito-bumerangue, uma reação a dois séculos de políticas francesas na África.

Algumas datam do início do século 19, outras foram implementadas nos últimos anos. Juntas, significam desastre potencial para a França e os Estados Unidos (os dois principais atores externos no Mali, hoje) e mais ainda para o Mali e países vizinhos.

Apenas duas ações, em conjunto, podem evitar o cenário de pesadelo de um grande estado falido no coração da África que espalhe a violência no continente.

Primeiro, que um ataque liderado pelos franceses consiga forçar a maior parte dos combatentes Salafistas para fora de áreas populosas atualmente sob seu controle; segundo, a instalação de uma força de segurança viável, liderada por africanos, que assuma o controle desses centros populacionais pelos próximos anos.

Se isso em si é difícil, diplomatas franceses e de outros países ainda precisam criar espaço para o estabelecimento de um governo mais representativo e menos corrupto no Mali, que esteja disposto e consiga negociar uma resolução para o conflito de décadas com o povo Tuaregue, cuja tentativa mais recente e violenta de criar uma zona semi-independente no norte do Mali, no início do ano passado, ajudou a criar um vácuo político e de segurança explorado com perícia e crueldade pela Al-Qaida no Magreb Islâmico e grupos aliados radicais.

O primeiro e maior efeito-bumerangue nos leva à política colonial francesa na África Ocidental e do Norte, que foi a responsável pela criação da maior parte dos estados envolvidos no atual conflito. A França começou deliberadamente a colonizar grandes porções da África Ocidental no início do século 19, assumindo o controle do que hoje é a Mauritânia e do Senegal em 1815, seguidos pela invasão da Argélia em 1830, da Tunísia em 1881, da Guiné francesa, Costa do Marfim e do Sudão francês (que se tornaria o Mali) nos anos 1890, do Níger em 1903-04 e do Marrocos em 1912.

DESENHADOS NO COLONIALISMO

É impossível saber como o mapa da África teria evoluído sem a colonização europeia. O que é certo, no entanto, é que a chamada “corrida pela África” que dominou o século 19 — com a qual os governantes locais colaboraram quando servia a seus interesses — garantiu que os poderes europeus criassem a base territorial dos modernos Estados-Nação, cujas fronteiras têm pouca relação com a geografia étnica e religiosa do continente.

O Mali, em particular, era composto por vários grupos étnicos, linguísticos e os que hoje são considerados “raciais”.

A rápida e fracassada tentativa de união do Mali com o Senegal, na época da independência, em 1960, demonstra a fundação artificial das fronteiras e estados da região.

A falta de consideração às dinâmicas locais — étnica, religiosa e cultural — e o imperativo colonial de colocar o maior território possível sob um mesmo governo criaram a situação na qual Estados com áreas duas vezes maior que a da França e com grupos populacionais sem razões culturais e históricas para viver juntos, com poucos recursos naturais ou vantagens comparativas para se sustentar, foram forçados a viver juntos assim mesmo.

Primeiro, sob governo estrangeiro, cujo principal objetivo — qualquer que fosse a ‘missão civilizatória’ anunciada por Paris — era extrair tanta riqueza e recursos quanto possível, exercendo controle por todos os meios disponíveis; depois, sob governos locais pós-independência, que adotaram políticas que, na prática, representaram poucas mudanças em relação aos governos coloniais.

Na verdade, mesmo aqueles países que asseguraram independência pacificamente foram deformados estruturalmente sob controle de estrangeiros, pelo estabelecimento de Estados com fronteiras que não correspondiam naturalmente às ecologias políticas e culturais das regiões nas quais foram criados.

Como sintetizado pelo sofrimento das comunidades Tuaregues do Mali (que estão espalhadas pelo Sahel da mesma forma que os Curdos estão espalhados em vários países do Crescente Fértil), a maioria dos países da África Central, Ocidental e do Norte acabou incluindo um número significativo de habitantes que não pertenciam ao grupo étnico que assumiu o poder.

Ao mesmo tempo, os governos pós-independência estavam repletos de corrupção e lealdades étnicas com líderes que se mostraram incapazes ou relutantes ao buscar um caminho de desenvolvimento verdadeiramente nacional e democrático.

Em tal situação, a religião, que poderia ter tido papel positivo na formação de uma base moralmente segura das esferas pública e econômica, se tornou marginalizada da governança, passando aos poucos a assumir forma tóxica entre a maior parte dos grupos marginalizados da região.

APOIANDO O TIME ERRADO

Se a história colonial da França criou as estruturas nas quais a crise presente inevitavelmente se desenvolveu, uma série de políticas mais recentes se constitui na explicação para o segundo bumerangue explosivo; ou seja, o apoio sem reservas da França ao governo da Argélia na sua repressão à transição democrática que começou em 1988 e foi esmagada em 1992.

Como é bem sabido, em vez de permitir que a “Frente Islâmica de Salvação” — um grupo inspirado na “Irmandade Muçulmana”, que não difere muito nas raízes e contornos de seus co-irmãos estabelecidos no Egito e na Tunísia — assumisse o poder depois de sua clara vitória eleitoral depois do primeiro turno das eleições parlamentares de 1991-92, os militares argelinos cancelaram o segundo turno e começaram uma repressão que, rapidamente, explodiu em uma guerra civil entre o governo e grupos radicais islâmicos.

Diante da decisão de permitir ou não que um novo ator político islâmico assumisse o poder, a França se juntou aos Estados Unidos no apoio aos militares argelinos, com os quais tem relações próximas. Ao se aliar a um governo brutal, corrupto e autoritário, os franceses e o Ocidente se tornaram parte de um conflito perverso que viu emergirem perigosos grupos terroristas como o GIA (Grupo Armado Islâmico), possivelmente controlado em parte pelos próprios militares, e em seguida uma sangrenta guerra civil de uma década que custou a vida de mais de 100 mil civis.

O GIA, por sua vez, foi a semente da qual outros grupos emergiram, como o “Grupo Salafista para a Pregação e o Combate” e a Al Qaida no Magreb Islâmico. Na década passada, esses grupos focalizaram sua atenção no Norte da África, mas gradualmente se moveram mais profundamente no Sahel para ligar a Argélia ao Mali, Mauritânia, Níger e Marrocos.

Se a França e o Ocidente não tivessem dado apoio sem reservas aos militares argelinos, é pouco provável que tais grupos tivessem sido criados, muito menos que tivessem crescido para atingir seu status atual (um argumento similar poderia ser utilizado para falar do braço principal da Al Qaida que, de várias formas, foi um subproduto do incessante apoio dos Estados Unidos a alguns dos regimes mais corruptos e brutais do mundo, inclusive a Arábia Saudita, o Egito e o Paquistão).

Como em muitos outros casos, a França e seus aliados ocidentais escolheram estabilidade em vez de democracia. Ao fazer isso, inevitavelmente — e ironicamente — ajudaram a criar o cenário do presente caos no qual suas tropas são forçadas a lutar.

APOIANDO O TIME ERRADO… DE NOVO

O terceiro e mais recente círculo do efeito-bumerangue nasce no longo apoio da França ao ditador da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali. Especificamente, o presidente francês Nicolas Sarkozy deu forte apoio a Ben Ali no início da crise, inclusive, como descrito pela ministra das Relações Exteriores, Michèle Alliot-Marie, “o saber-fazer, reconhecido em todo o mundo, das forças de segurança francesas em enfrentar situações de segurança deste tipo”. As palavras do presidente da França deixaram seu governo envergonhado quando os protestos ganharam força a ponto de criar uma “crise de credibilidade” que forçaram Sarkozy a “admitir o erro” de apoiar Ben Ali contra os revolucionários.

A vergonha de Sarkozy foi tal que, quando a crise da Líbia irrompeu, a França assumiu a liderança na pressão por intervenção militar ocidental para derrubar Gaddafi do poder, da maneira a perdoar os franceses por seus pecados tunisianos. E foi exatamente o início da guerra aérea da OTAN e do apoio militar ao rebeldes líbios que levou ao êxodo de bem treinados guerrilheiros e suas armas, obtidas na Líbia, para o Níger, o Mali e outras partes do Sahel, acompanhando o colapso do estado de Gaddafi.

O caos e a disseminação de armas gerada pela guerra na Líbia colocou um número crucial de homens e armas no norte do Mali num momento particularmente perigoso da história do país, quando os muito oprimidos Tuaregues, que tinham obtido apoio de Gaddafi no passado (alguns chegaram a lutar por Gaddafi), estavam outra vez prontos para se rebelar contra o governo central.

A situação se tornou ainda mais caótica com o inesperado e aparentemente indesejado golpe contra o presidente que estava próximo de se aposentar, Amadou Toumani Touré, em março de 2012, o que criou um vácuo de poder ainda maior no país.

O BUMERANGUE DO BUMERANGUE

Aqui vemos décadas, na verdade séculos, de políticas francesas, europeias e norte-americanas se juntando para produzir o caos máximo. Isso, por sua vez, é fortalecido pelo bumerangue de antigos conflitos locais, da hostilidade da liderança militar do Mali aos recrutas extremamente pobres (o que levou aos protestos que forçaram o presidente a fugir em março de 2012) à incapacidade do movimento rebelde Tuaregue de abandonar sua tradição de resistência violenta em troca de uma nova geração de ativistas, que advogava um movimento revolucionário muito mais próximo do que acabou irrompendo na “Primavera Árabe”. Depois de um ano, o exército do Mali perdeu o controle da maior parte do país, enquanto os Tuaregues foram colocados de lado pela revolta iniciada pelos grupos Salafistas aliados à Al-Qaida.

O que é mais interessante é que o bumerangue explosivo do presente deveria ter sido antecipado por políticos franceses e ocidentais quando planejavam a guerra na Líbia. Especialistas no Norte da África, tais como o cientista político Jean-Pierre Filiu, da “Sciences Po”, já diziam em 2010 que a Al Qaida no Magreb e outros grupos salafistas estavam abandonando seu foco na Argélia para desenvolver uma presença estratégica, e mesmo um “novo teatro” de guerra no Sahel, com o objetivo último de desestabilizar tais países.

Esses jihadistas “agora representam uma séria ameaça de segurança no norte do Mali e de Níger”, explicou Filiu, por causa dos numerosos sequestros, contrabando e outros atividades ilícitas de recrutamento de uma “nova geração” de combatentes das várias comunidades pobres da região.

A realidade das crescentes operações de grupos islâmicos no norte do Mali, juntamente com maior agitação dos Tuaregues e o bem conhecido uso que Gaddafi fazia de mercenários de grupos nômades, deveria ter despertado alarme entre os franceses e ocidentais antes da decisão de se engajar na guerra civil líbia.

Na verdade, do lado norte-americano, o embaixador no Mali já em 2004 alertava que o Mali “como pedaço isolado da África, tribal e pouco governado… era terreno potencial para extremismo religioso e terrorismo similar ao Afeganistão sob o talibã… se o Mali for, o resto [da região] vai”. Esse alerta foi feito, justamente, quando os militares dos Estados Unidos estavam aumentando sua presença no continente, culminando com a criação do comando AFRICOM, em 2008.

Dada a clara atenção que se dava ao Sahel na última década por formuladores de política da França e dos Estados Unidos, podemos considerar que, ou eles foram completamente incompetentes para entender os resultados inevitáveis da intervenção militar ocidental na Líbia, ou viram a situação como vencer-vencer, providenciando um novo teatro de operações numa área estratégica do mundo onde os militares dos Estados Unidos, França e outros países poderiam se tornar crescentemente engajados (ao fazer isso, mantendo os rivais da China mais distantes).

Seja como for, assim como prévias intervenções na África geraram os bumerangues explosivos que resultaram na atual crise do Mali, a atual intervenção no Mali, ainda que necessária, bem intencionada e desejada pela maioria dos habitantes (se é que é possível determinar os desejos deles) sem dúvida vai produzir seu próprio bumerangue, que vai custar a vida de muitos africanos, franceses, norte-americanos e outros cidadãos ocidentais.”

FONTE: escrito por Mark LeVine, na “Al Jazeera”.O autor é professor de história do Oriente Médio na “University of California - UC Irvine”, professor-visitante do “Center for Middle Eastern Studies” da “Lund University” na Suécia, autor do livro sobre revoluções no mundo árabe “The Five Year Old Who Toppled a Pharaoh”. Artigo transcrito no portal “Viomundo” (http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/a-intervencao-ocidental-na-libia-e-a-crise-no-mali.html).

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