“MORALISMO” AJUDA A ESCONDER A
LEI
“Os ataques a
José Genoíno chegaram a um ponto escandaloso e inaceitável.
Vários observadores se colocam no direito de fazer
uma distinção curiosa. Dizem que a decisão de Genoíno em assumir o mandato para
o qual foi eleito por 92 000 votos pode ser legal, mas é imoral.
Desculpem-me. Mas é uma postura de ditadorzinho,
que leva a situações perigosas e inspira atos violentos. Também permite
decisões arbitrárias e seletivas. Pelo argumento moral, procura-se questionar
direitos que a lei oferece a toda pessoa. Isso é imoral.
Não surpreende que essa visão tenha produzido
grandes tragédias, na história e na vida cotidiana.
Isso porque os valores morais podem variar de uma
pessoa para outra, mas a lei precisa valer para todos.
Você pode achar que aquele livro sobre não sei
quantos tons de cinza é uma obra imoral, mas não pode querer que seja proibido por
causa disso. Por quê? Porque a Lei garante a liberdade de expressão como um
valor absoluto.
Para ficar num exemplo que todos lembram. Os
estudantes de uma faculdade paulista que agrediram e humilharam uma aluna que
foi às aulas de minissaia muito mini também se achavam no direito de condenar o
que era legal, mas lhes parecia imoral. Vergonhoso. Isso sempre acontece quando
se pretende dizer que o moral precisa ser o legal.
Para começar, quem acha muita imoralidade da parte
de Genoíno deveria olhar para o lado em vez de exagerar na indignação.
Em seis Estados brasileiros, o Superior Tribunal
de Justiça, a segunda mais alta corte do país, tenta licença para processar
governadores e não consegue avançar na investigação. Não consegue nem apurar as
acusações que o STJ considera sérias.
Por quê? Porque as Assembleias Legislativas não
autorizam. Curiosidade: não há "petistas aparelhados” envolvidos. Entre os seis
governadores, cinco são tucanos e um é do PMDB. Quantos são imorais nesse time?
E os ilegais? Vai saber.
O que está em jogo nos Estados? O princípio do
artigo 55 da Constituição, aquele que reserva ao Congresso o direito de decidir
pela cassação (ou não) de deputados e senadores. São os representantes eleitos
que podem cassar os representantes do povo – e apenas eles.
Mas é curioso que ninguém fala em imoralidade nesse
caso.
Pergunto: cadê o abaixo-assinado, uma denúncia
contra “esses políticos”? Cadê as marchadeiras de botox e cabelo tingido? Onde
ficaram nossos moralistas de punho cerrado? Onde estão os cronistas do constrangimento,
os marqueteiros da “imagem” dos políticos?
Será que voltamos (ou nunca saímos?) à lógica dos
dois mensalões, o do PT e o do PSDB-MG?
A Constituição reconhece os três poderes e não
reconhece, de forma alguma, qualquer hierarquia entre eles.
E aí cabe a pergunta: se as Assembleias
Legislativas podem impedir a abertura de uma investigação sobre governadores [por coincidência tucanos],
por que o Congresso não tem o direito de decidir, como manda a Constituição, o
destino de quatro deputados? Há uma diferença de princípio, uma visão de mundo?
Ou é a velha paróquia política do país ?
No caso dos governadores e deputados [tucanos], a
preferência é tão descarada que nem se abre uma investigação. Não vamos julgar
e depois absolver. Não. Nem se começa o jogo. Não custa recordar de novo.
A Lei diz que o mandato de um deputado só pode ser cassado por decisão do
Congresso. Não é interpretação. Não é princípio genérico.
É texto da lei. É tão claro como dizer que o
Brasil não pode fabricar bomba atômica. Ou que o racismo é crime e é
inafiançável. Ou que a licença-maternidade deve durar quatro meses.
O jurista Pedro Serrano, especialista em Direito
Constitucional, disse aqui mesmo neste blogue [do Paulo Moreira Leite]
que essa prerrogativa é um dos elementos básicos da separação entre os poderes,
definição que separa a República da Monarquia.
Embora diversos ministros do Supremo tenham feito
elogios demorados à Constituição do Império – entre outros traços típicos, ela
tratava os escravos como “coisas” – desde 1899 o país vive sob um regime
republicano. O retorno à monarquia foi derrotado em plebiscito, junto com o
parlamentarismo, lembra?
Teve gente que levou os descendentes de Pedro II e
da Princesa Isabel para percorrer o país, na esperança de que algum fantasma do
passado contribuísse para melhorar o marketing eleitoral da monarquia.
Mas o Supremo considerou por 5 votos a 4 que tem o
direito de cassar os mandatos dos deputados condenados pelo mensalão. Muitos
juristas – os mesmos que os donos da moral de hoje costumam ouvir quando lhes
interessa — consideram que foi uma decisão que atravessou essa divisão entre
poderes.
Num plenário que, em situações normais, inclui
onze votos, cinco ministros acharam-se no direito de questionar um artigo
explícito da Lei Maior. Quatro ficaram contra essa decisão.
Em qualquer caso, não custa lembrar que, como está
estabelecido, a Constituição só pode ser modificada por uma emenda
constitucional, com o voto de dois terços – e não maioria simples – dos
parlamentares, que são os representantes eleitos do povo. Não é debate moral. É
determinação legal.
Por que ela diz isso? Porque esse artigo 55 é
coerente com o artigo 1, aquele que diz que “todo poder emana do povo, que o
exerce através de seus representantes eleitos.”
Uma decisão do Supremo deve ser cumprida e tem
força de lei, diz o Ministro da Justiça.
Mas o que se faz quando, por 5 votos a 4, se
estabelece uma diferença clamorosa, uma contradição com a própria Constituição?
Não é possível ser simplório nem empregar
argumentos de autoridade. A menos, claro, que se pretenda criar um novo tipo de
autoritarismo. Durante o Estado Novo, o Supremo autorizou que a militante
comunista Olga Benário fosse enviada para a morte num campo de concentração
nazista.
Seria imoral e ilegal tentar impedir a entrega de
Olga Benário por todos os meios e recursos que poderiam preservar sua vida, sua
dignidade e mesmo a filha que levava em seu ventre, vamos combinar.
Em 1964, o Supremo aceitou a tese de que a
presidência da República ficara vaga depois que Jango deixou o país, e deu
posse à ditadura militar. Legal? Moral? Ou ilegal e imoral?
Em 2010, o Supremo decidiu por 7 votos a 2, que só
o Congresso poderia modificar a Lei de Anistia. Com isso, as investigações
sobre torturas e execuções perderam uma base legal importante.
Pergunto: vamos proibir os jovens que denunciam
torturadores nas operações esculacho e não se rendem a uma decisão que – sem
entrar no debate se correta ou não – envolve uma opção pela impunidade?
Vamos chamar a PM para dar porrada? (Quando ela
não estiver perseguindo estudantes que portam maconha, o que a lei diz que é
legal em certa quantidade, mas que muita gente considera imoral e, por isso,
aprova todo tipo de repressão, até sem base legal).
Mais ainda. Vamos silenciar procuradores que,
teimosamente, ainda procuram brechas para colocar os responsáveis por crimes
contra a humanidade na cadeia, lembrando que a Constituição diz que a tortura
não é passível de anistia ou graça?
Os 7 a 2 do Supremo deveriam garantir que esses garotos
exemplares fossem silenciados para sempre?
Queremos a Submissão à Autoridade, título de um
livro antológico sobre técnicas de tortura?
Colocar a questão moral à frente da legal só ajuda
a despolitizar um debate, a encobrir questões sérias e a impedir uma avaliação
consciente do que está em jogo. No saldo, quem perde é a democracia.
Quando Genoíno se diz com a “consciência limpa dos
inocentes” deveríamos dedicar alguns minutos de reflexão ao assunto.
Você pode, com base naquilo que viu e ouviu nas 53
sessões do julgamento, achar que ele é mesmo culpado e deveria renunciar ao
mandato que recebeu.
Mas você poderia pensar o contrário.
A grande acusação é que ele assinou “empréstimos
fraudulentos” que "alimentaram o esquema", certo? Podemos ouvir isso todo dia,
nos comentários de sabichões que frequentam o rádio e a TV.
Mas, veja só. A própria Polícia Federal, que
investigou o caso e as contas do mensalão, concluiu que os empréstimos não eram
uma fraude. Em seu relatório, a PF diz que os empréstimos foram verdadeiros,
implicaram na remessa de dinheiro do Banco Real para o PT. A Justiça, mais
tarde, supervisionou um acordo para o pagamento do empréstimo. Era ilegal? Era
imoral? Ou o quê?
Em todo caso, se era ilegal, pergunta-se: o que
aconteceu com a turma do Banco Central que deveria fiscalizar essas coisas?
O que houve com quem referendou o acordo? Alguém
foi punido por ser ilegal? Ou não se julgou moralmente conveniente?
Muitos ministros condenaram Genoíno porque “não
era plausível” que ele “não soubesse” do que eles dizem sobre o que seria o
“maior escândalo da história.” Uniram o papel político óbvio de Genoíno no
governo Lula com um esquema financeiro, sem conseguir provar seu envolvimento
direto na “compra de votos” no Congresso. Não conseguiram apontar, sequer, qual
projeto foi aprovado em troca de dinheiro.
Enquanto não se provar que Genoíno cometeu uma
ilegalidade, estamos, mais uma vez, numa visão moral de uma pessoa, num
julgamento que envolve a atribuição de atitudes e valores, mas não consegue
reunir provas robustas – indispensáveis
no direito penal — para sustentar o que diz.
O que é imoral, nesse caso?
Embora o Supremo tenha condenado Genoíno, a lei dá
ao deputado o direito de aguardar pelo exame de todos os recursos antes de
considerar que o caso está encerrado. Junto com a liberdade, é a história de
uma vida que está em jogo.
Ao contrário do que se poderia julgar do ponto de
vista moral, ele tem o dever de resistir. A lei não lhe dá essa possibilidade
por acaso. O necessário, para o esclarecimento de qualquer dúvida, de qualquer
ponto de vista, é que ele entre com seus recursos, que eles sejam ouvidos,
examinados e conhecidos por todos. E a melhor forma de fazer isso é preservando
seu mandato.
Vou adorar ouvir seus argumentos na tribuna da
Câmara. E vou adorar ouvir os argumentos contrários.
Será uma grande novidade. Em sete anos de
investigações, o mensalão transformou-se no discurso de um lado só, uma única
voz, uma única verdade. Cada advogado de defesa teve direito a um discurso de [ínfimas] duas horas num julgamento que durou cinco meses. Isso impediu que dúvidas
importantes sobre Genoíno e sobre o mensalão fossem discutidas e resolvidas.
Nenhuma auditoria provou que os recursos usados pelo esquema do PT foram
extraídos do Banco do Brasil. Não há sinal de desvio na "Visanet", empresa [multinacional] que
fazia os pagamentos para as agências de Marcos Valério. Ou seja: verdades que
pareciam evidentes em 2005 teriam de ser examinadas, revistas e explicadas em
2012. Ou corrigidas, ou retiradas.
É por isso que o Congresso tem razão em debater
suas prerrogativas e nossos moralistas de plantão erram quando tratam Marco
Maia e seu provável sucessor, Henrique Alves, como criadores de caso,
encrenqueiros que jogam para a platéia. Se o artigo 55 não for abolido – o que só os parlamentares têm o direito de
fazer – é mais do que razoável que sua aplicação seja discutida. Um
pouquinho de história, para quem tem a memória selecionada. A cronologia diz
tudo neste caso. Ao longo de 7 anos de mensalão, o Congresso não moveu um dedo
mínimo para atrapalhar a investigação. Tampouco cometeu qualquer gesto em
direção ao STF que pudesse ser interpretado como ação indevida. Ficou
silencioso em seu canto, respeitoso das atribuições de cada um. E é natural que
queira ser respeitado, agora.
O ministro que decidiu a votação por 5 a 4 teve um
voto oposto, em situação muito parecida.
Juízes não são obrigados a votar de modo idêntico
a vida inteira.
Mas a democracia é um regime coerente.
Por isso, a Constituição diz que o povo exerce o
poder através de seus representantes eleitos. Esta frase não é enfeite, certo?
O voto da maioria da população é o começo e o fim de tudo.”
FONTE: escrito por Paulo Moreira Leite, no seu blog. Transcrito no portal “Viomundo”
(http://www.viomundo.com.br/politica/paulo-moreira-leite-moralismo-ajuda-a-esconder-a-lei.html) [Imagem do google e pequenos entre colchetes adicionados por este blog ‘democracia&política’].
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