sábado, 23 de março de 2013

AS RAÍZES DA BRECHA TECNOLÓGICA ENTRE ÁSIA E AMÉRICA LATINA

Gabriel Palma

“À Carta Maior, Gabriel Palma, especialista em economia comparada da Universidade de Cambridge, fala sobre as consequências da distância tecnológica entre os países da América Latina e da Ásia, e, em particular, sobre o Brasil. Hoje, o Brasil é responsável por dois terços do comércio de ferro e por apenas 2% do comércio de aço. O Brasil não pode produzir aço? Por que um país que tem a Embraer não produz aço?


 Por Marcelo Justo, de Londres.


“A América Latina cresceu antes e depois do estouro financeiro de 2008. Não há crise da dívida à vista, aumentou sua renda per capita e, em comparação com os países desenvolvidos, tem melhores perspectivas econômicas. Esse panorama é mais promissor ainda se lembramos a década perdida dos 80, mas tem um problema no momento insuperável: a região não conseguiu diminuir sua distância tecnológica não só em relação ao primeiro mundo, mas também com a Ásia.

Segundo um informe da “Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe” (CEPAL), a incidência da tecnologia na produção manufatureira regional representa apenas uma quarta parte daquela dos produtos “made in Asia”.

A “Carta Maior” conversou com Gabriel Palma, especialista em economia comparada da Universidade de Cambridge [Inglaterra], sobre as consequências dessa brecha tecnológica e sobre o caso particular do Brasil.

Carta Maior - Como é essa brecha tecnológica da América Latina com a Ásia?

Gabriel Palma - Uma forma quantitativa de ver essa questão seria comparar quantas patentes a Ásia e a América Latina registram por ano. Esse número é mínimo na América Latina e muito significativo na Ásia. Isso mostra a brecha na criação tecnológica. Mas, do ponto de vista dos países em desenvolvimento, muitas vezes é igualmente importante a absorção tecnológica. Cerca de 90% do que se produz na indústria, no setor de serviços e commodities utiliza tecnologias bastante maduras que se compram prontas. Ou seja, absorvendo tecnologia. Também aí os países asiáticos abriram grande vantagem sobre os latino-americanos.

CM - A que se deve esta diferença tanto na capacidade de gerar nova tecnologia como na absorção de tecnologias existentes?

GP - A primeira é a educação. A Índia produz mais engenheiros e cientistas que toda a América Latina. Se a indústria do software é desenvolvida na Índia, não é só porque sabem falar inglês, mas sim pela quantidade de engenheiros. Há uma prova que se chama PISA que compara resultados educacionais em todo o mundo. Nessa prova, os estudantes asiáticos apresentam níveis nas chamadas ciências duras que estão a anos luz dos nossos. Há grande capital humano. E, por outro lado, o Estado apoia tudo isso. Diferentemente do que ocorre na América Latina, na Ásia, quando o setor empresarial olha para o Estado, pensa em um sócio e não em um inimigo que quer lhe cobrar impostos.

Há uma pergunta que sempre faço em meus trabalhos. Se olharmos para o setor automotriz, vemos que entre os oito maiores produtores do mundo se encontram o Brasil e o México. Mas entre esses oito países, os únicos que produzem automóveis e não têm marcas próprias são os da América Latina. Questionei os empresários do Brasil e do México sobre esse ponto e eles não souberam o que dizer. Nos anos 70, o Brasil produzia mais automóveis que toda a Ásia reunida, excluindo o Japão. Hoje, todos os asiáticos têm a sua marca própria. O Brasil não.

CM - Seguramente há exceções.

GP - A mais impressionante é a Embraer no Brasil, a terceira maior produtora de aviões do mundo, com suas próprias marcas e tecnologia. Agora, se o Brasil é capaz de ter tecnologia aeronáutica, certamente é capaz de ter tecnologia automotriz. É falta de audácia. Conformamo-nos com as montadoras. As chamadas multilatinas, empresas chilenas, argentinas, brasileiras que investem no resto da América Latina, cada vez que precisam de um avanço tecnológico buscam um sócio externo para fornecê-lo. Essas grandes empresas têm muito pouca pesquisa científica, criação tecnológica etc. Quase todos os avanços tecnológicos que há na região ocorrem com matérias-primas. Na Argentina com a soja, no Chile com a extração do cobre, não com o tratamento do cobre etc. Se isso é possível, não se entende por que não se pode fazer isso de maneira sistemática.

Há um equilíbrio do “subótimo” na América Latina. É a armadilha da renda média. Passar de baixas rendas a médias é relativamente fácil, de médio a médio alto também. Mas para chegar a rendas altas, como fizeram Coreia, Taiwan, Singapura e Hong Kong, é preciso ter política industrial, Estado que invista na parte pública, não só infraestrutura, mas também pesquisa e educação. É preciso também ter classe capitalista com mais vocação de risco e investimento. Para atravessar esse teto, é preciso mais tecnologia, processamento de matéria prima, produção de manufaturados de maior valor agregado.

CM - Quais são as consequências econômicas desta situação?
 
GP - Por que a Ásia cresce o dobro que a América Latina? Por que cresce de maneira sustentada? Não é só que a Coreia do Sul cresce a 7%, mas sim que vem fazendo isso há 50 anos. Na América latina, isso ocorreu por pequenos períodos em todos os países. O Brasil nos anos 60 e 70, o México nos 70, a Argentina nos 90 e neste século. Mas ninguém conseguiu sustentar esse ritmo. Os asiáticos correm maratonas. Nós, meia distância. O Chile é o caso óbvio. Cresceu a taxas asiáticas de 85-86 até 98 e esgotou esse ciclo sem que houvesse crise política nem nada que o justificasse. Acabou porque acabou o oxigênio. Há dois outros exemplos. No modelo das maquiladoras mexicanas nos anos 80, 75% dos insumos eram importados. Hoje, não há nenhuma mudança. 75% dos insumos são importados. Um segundo exemplo das consequências econômicas de tudo isso. Nos anos 80, a produtividade media da economia brasileira era igual a coreana. Hoje, a coreana é três vezes mais alta. Assim, vamos seguir com esse equilíbrio médio e com aumentos do PIB de 3 ou 4% no melhor dos casos.

CM - Houve políticas públicas como a substituição de importação e protecionismos que foram tentados na América Latina durante o pós-guerra, mas que não tiveram o mesmo resultado obtido na Ásia. O que ocorreu?

GP - É preciso não subestimar o que ocorreu nesse período. O Brasil, de 1965 a 1980, cresceu a uma taxa muito parecida com a da Ásia. A questão é que não se deu o salto. Fabricava-se mais automóveis que em toda a Ásia, mas não havia marcas próprias. Faltou um Estado que pudesse disciplinar a elite capitalista para que, não só usufruísse dos benefícios de mecanismos protecionistas, mas que os utilizasse de forma efetiva. E faltou mais integração regional e abertura infra-regional. Produzia-se muito em termos de manufatura, mas na lógica das empresas montadoras. Esse tipo de produção também ocorria nos anos 80 na Índia, China e Vietnã, países asiáticos que saíram tarde no caminho da industrialização. Mas eles têm níveis de investimento e educação diferentes, um Estado que não tem medo de usar políticas industriais e comerciais, uma macroeconomia com taxas de câmbio competitivas e taxas de juros baixas.

CM - Vê algum sinal de mudança na América Latina?

GP - Não. Pelo contrário. Os sinais que temos são de taxas de câmbio flexíveis com taxas de juros supervalorizadas. Na política sobre investimento estrangeiro, não há nenhuma condicionalidade. Na China, isso é totalmente diferente. O capital estrangeiro precisa de um sócio local e tem que trazer tecnologia que deve começar a produzir na China. A taxa de câmbio no Chile e no Brasil está totalmente sobrevalorizada. Na Ásia, há certeza sobre a taxa de câmbio com intervenção dos bancos centrais.

CM - O que deve ser feito?

GP - É preciso ter política industrial para processar a matéria-prima. É um absurdo que, no Chile, se exporte o cobre concentrado que tem conteúdo de 30% de mineral e 70% de impurezas. Ele deveria ser fundido no Chile. O nicho manufatureiro latino-americano está baseado nas ‘commodities’. Hoje, o Brasil é responsável por dois terços do comércio de ferro e por apenas 2% do comércio de aço. O Brasil não pode produzir aço? Por que um país que tem a Embraer não produz aço? A Índia produz. E é preciso lembrar que a política asiática nos afeta negativamente porque as multinacionais recebem subsídios e vantagens para fundir o cobre, por exemplo, na Ásia. Precisamos de disputa industrial para emparelhar essa disputa. No caso chileno, poderia se estabelecer um imposto sobre a exportação de cobre e condicionalidades para que o mineral seja fundido no país. Por que não se faz tudo isso? Por pura ideologia. Compramos o “neoliberalismo” de tal maneira que tudo o que o Estado faz está mal e tudo o que o mercado faz está bem.”

FONTE: escrito por Marcelo Justo, de Londres. Publicado no site “Carta Maior” com tradução de Marco Aurélio Weissheimer
(http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21778 [Imagem do Google adicionada por este blog ‘democracia&política’].

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