domingo, 28 de abril de 2013

CRISE EUROPEIA INTERROMPE PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO


Ignacio Ramonet

 

“Para o ex-diretor da edição francesa do 'Le Monde Diplomatique' e professor de teoria da comunicação, Ignacio Ramonet, ‘o curso da globalização parece suspenso’ e momento é marcado por ‘desglobalização e decrescimento’. ‘Todas as sociedades do sul da Europa se voltaram furiosamente antialemãs, uma vez que a Alemanha, sem que ninguém tenha lhe outorgado esse direito, se erigiu em chefe. (...) A Europa é, agora, para milhões de cidadãos, sinônimo de castigo e sofrimento: uma utopia negativa’, afirma Ramonet.

 


Ignacio Ramonet (Redondela, Espanha, 1943), é um dos pensadores mais lúcidos dos últimos tempos. Instalado em Paris desde 1972, sociólogo e semiólogo [semiologia é a ciência que se dedica ao estudo da significação no seio da vida social], especialista em geopolítica, professor de teoria da comunicação, sagaz jornalista, sua forma de ver e interpretar a modernidade e, por extensão, a globalização, faz de suas ideias um ponto de inflexão necessário contra o pensamento dominante. Falamos com ele sobre a atualidade política, a crise e os emergentes movimentos sociais, a Europa e o porvir.

Assistimos a um renascimento dos movimentos de protesto cidadão?

Ignacio Ramonet – Desde que estourou a atual crise econômico-financeira, em 2008, estamos assistindo uma multiplicação dos movimentos de protesto cidadão. Em primeiro lugar, nos países mais afetados (Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha), os cidadãos – civicamente – apostaram em apoiar, com seus votos, a oposição, pensando que esta traria mudança de política tendente a menos austeridade e menos ajuste. Mas quando todos esses países mudaram de Governo, passando da esquerda ou centro-esquerda à direita ou centro-direita, a estupefação foi completa, já que os novos Governos conservadores radicalizaram ainda mais as políticas restritivas e exigiram mais sacrifícios, mais sangue e mais lágrimas aos cidadãos. Aí é quando começam os protestos. Sobretudo porque os cidadãos têm diante de seus olhos os exemplos de dois protestos com êxito: o do povo unido na Islândia e o dos contestadores que derrubaram as ditaduras na Tunísia e no Egito. Além disso, destaca o fato de que as redes sociais estão facilitando formas da organização espontânea das massas sem necessidade de líder, de organização política, nem de programa. Tudo está preparado então para que surjam, em maio de 2011, os “indignados espanhóis”, e que seu exemplo se imite de um modo ou outro em toda a Europa do sul.

Por que os partidos políticos da esquerda são mal compreendidos por esses movimentos?

Porque o que os meios de comunicação qualificam de "partidos políticos da esquerda" tem, na opinião desses movimentos e das maiorias exasperadas, muito pouco de esquerda. Não se pode esquecer, também, que esses partidos estão comprometidos com essa mesma política conservadora que eles foram os primeiros a aplicar, sem anestesia. Lembre o que aconteceu na Espanha quando, de uma hora para a outra, em maio de 2011, Rodríguez Zapatero, sem avisar nem explicar, decidiu aplicar um brutal plano de ajuste ultraliberal que era exatamente o contrário do DNA do socialismo.

Qual foi o pecado original de Maio de 68? Os movimentos de hoje são filhos tardios de 68? Acha que podem realmente construir contrapoder político, alternativa real de Governo, ou são movimentos emocionais?

Não se podem comparar as duas épocas. “Maio de 68” era uma crise contra um país [França] em expansão (nascimento da sociedade de consumo, crescimento alto, pleno emprego), que continuava sendo profundamente conservador e até arcaico em matéria de costumes. Hoje sabemos que foi menos uma crise política que uma crise cultural. O movimento do “15M”, entretanto, é o reflexo da queda geral de todas as instituições (Coroa, justiça, Governo, oposição, Igreja, autonomias...). Nesse sentido, é o mais positivo que aconteceu na política espanhola desde o final do franquismo. O mais fresco e inovador. Ainda que não se tenha traduzido em movimento político com perspectivas de conquistar o poder, revela sentimento profundo de saturação da sociedade espanhola golpeada pela crise e pelas brutais medidas de austeridade do Governo de Mariano Rajoy. Poder-se-ia dizer que os movimentos de protesto são uma boa notícia, já que demonstram que as sociedades europeias, e em particular sua juventude tão castigada pela crise social, está expressando seu descontentamento geral com a situação que se está vivendo e com o tipo de solução neoliberal que os Governos e a União Europeia estão aplicando contra a crise. Esses movimentos recusam a adoção de medidas de austeridade extremamente sérias de ajuste econômico, em uma Europa do sul onde mais de 20% dos jovens menores de trinta anos se encontram desempregado. Curiosamente, essa juventude se expressa de maneira pacífica, não violenta, inspirando-se em vários movimentos gerais.

Que outros efeitos esta crise na Europa está produzindo?

A crise está se traduzindo, também, em aumento do medo e do ressentimento. As pessoas vivem em estado de ansiedade e de incerteza. Voltam os grandes pânicos diante de ameaças indeterminadas como podem ser a perda do emprego, os choques tecnológicos, as biotecnologias, as catástrofes naturais, a insegurança generalizada. Tudo isso é desafio para as democracias, porque esse "terror difuso" se transforma, muitas vezes, em ódio e repúdio. Em vários países europeus, esse ódio se dirige hoje contra o estrangeiro, o imigrante, o diferente, “os outros” (muçulmanos, ciganos, subsaarianos, imigrantes sem papéis...) e crescem os partidos xenófobos, racistas e de extrema direita.

Os movimentos sociais e políticos atuais, culminando no “15M”, são capazes de superar os partidos políticos tradicionais da esquerda?

Não sabemos fazer política sem partidos políticos. O que reivindicam os contestadores, os indignados em quase toda a Europa do sul, é mudar as regras do jogo: desmontar o truque. Novas regras suporiam, por exemplo, na Espanha, uma nova Constituição, como reivindica número cada vez maior de cidadãos. Uma Constituição que dê mais poder aos cidadãos, que garanta mais justiça social e que sancione os responsáveis pelo atual naufrágio. Um naufrágio que não pode surpreender ninguém. O escândalo das hipotecas-lixo era sabido por todos. O mesmo que o excesso de liquidez orientado à especulação, e a explosão delirante dos preços da moradia. Ninguém se queixava porque o crime beneficiava a muitos. E se continuou afirmando que “a empresa privada e o mercado arrumariam tudo”. Na longa história da economia, o Estado tem sido sempre ator central. Apenas há trinta anos – ou seja, nada em uma história de séculos –, o mercado quis expulsar o Estado do campo da economia. Há que voltar ao senso comum, a um keynesianismo razoável: tanto Estado como seja necessário e tanto mercado como seja indispensável.

A prova evidente do fracasso do sistema neoliberal atual são os ajustes e resgates que demonstram que os mercados não são capazes de regular-se por si próprios. Autodestruíram-se por sua própria voracidade. Também se confirma uma lei do cinismo neoliberal: se privatizam os benefícios, mas se socializam as perdas. Agora, se faz os pobres pagarem as excentricidades irracionais dos banqueiros, e se ameaça, em caso de que se neguem a pagar, com empobrecê-los ainda mais! Produzir-se-á um incêndio social? Não é impossível. As repercussões sociais do cataclismo econômico são de brutalidade inédita: 23 milhões de desempregados na União Europeia e mais de 80 milhões de pobres. Os jovens aparecem como as vítimas principais. Por isso, de Madri a Londres e Atenas, de Nicósia a Roma, uma onda de indignação levanta a juventude. Acrescente-se também que, na atualidade, as classes médias também estão assustadas porque o modelo neoliberal de crescimento as está abandonando na beira do caminho. Na Espanha, uma parte se uniu aos jovens para reprovar o integralismo ultraliberal da União Europeia e do Governo. “Não nos representam”, disseram todos os indignados.

Como você vê a Europa e o projeto comum europeu dominado, nestes anos, pela Alemanha e sua política de austeridade?

O curso da globalização parece suspenso. Fala-se cada vez mais de desglobalização, de decrescimento. O pêndulo havia ido longe demais na direção neoliberal e agora poderia ir na direção contrária. Chegou a hora de reinventar a política e o mundo. Todas as sociedades do sul da Europa se voltaram furiosamente antialemãs, uma vez que a Alemanha, sem que ninguém tenha lhe outorgado esse direito, se erigiu em chefe – autoproclamado – da União Europeia, erigindo um programa de sadismo econômico. A Europa é, agora, para milhões de cidadãos, sinônimo de castigo e sofrimento: uma utopia negativa.

Existem alternativas frente ao abandono do campo de batalha da socialdemocracia tradicional?

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