sábado, 25 de maio de 2013

O BRASIL E SEU ‘ENTORNO ESTRATÉGICO’


O BRASIL E SEU ‘ENTORNO ESTRATÉGICO’ NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI

“Ao longo desta e das próximas semanas, a “Carta Maior” publica os artigos do livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil – Lula e Dilma” (Boitempo, 2013), organizado por Emir Sader. A entrevista de Lula já foi divulgada [ver neste blog:  http://www.democraciapolitica.blogspot.com.br/2013/05/integra-da-mais-ampla-e-valiosa.html ]. Agora, é a vez da análise de José Luís Fiori, que trata do ‘entorno estratégico’ do Brasil.


1. INTRODUÇÃO

A história das relações internacionais ensina que nunca existiram países com “vocações inapeláveis” nem povos que tenham nascido com o “destino manifesto” ou “revelado” de mandar, converter ou civilizar o resto da humanidade. Ensina, também, que todos os países que projetaram sua influência e poder para fora de suas fronteiras nacionais e acabaram liderando suas regiões ou o próprio sistema mundial, em algum momento, também foram sociedades periféricas. Mas foram sociedades que colocaram, como objetivo fundamental, a mudança de sua posição dentro da hierarquia de poder e da distribuição da riqueza internacional. Além disso, foram sociedades que se mobilizaram e atuaram de forma unificada, para enfrentar e superar seus momentos de dificuldade e suas situações de inferioridade, mantendo seu objetivo estratégico por longos períodos de tempo, independentemente das mudanças internas de governo.

Na primeira década do século XXI, aconteceu algo semelhante na sociedade brasileira. Depois de longo período de alinhamento quase automático do país às “grandes potências ocidentais”, o Brasil se propôs a aumentar sua autonomia internacional, elevando a capacidade de defesa de suas posições, em virtude de seu poder político, econômico e militar. Nesse período, o Brasil contou com a liderança política de um presidente que transcendeu as dimensões do seu país e projetou internacionalmente sua imagem e sua influência carismática. Como passou em outro momento, e em outra clave, com a liderança mundial de Nelson Mandela, que também foi muito além do poder real da África do Sul. Esses fenômenos são passageiros, mas, no caso brasileiro, a liderança presidencial permitiu que o país desse alguns passos importantes na direção de nova estratégia internacional, tomando posições, estabelecendo alianças e criando expectativas dentro do jogo de poder mundial, cuja mudança ou abandono – agora – custará ao país preço muito alto, do ponto de vista de sua imagem e de seu futuro dentro desse jogo de xadrez global. Mesmo assim, nada está assegurado de antemão e, para seguir em frente, o atual governo brasileiro terá de fazer um balanço rigoroso dos passos que já foram dados e das dificuldades que se anunciam para a segunda década do século, incluindo a intensa oposição interna da imprensa e das elites conservadoras à política seguida desde 2003.

Os principais objetivos da nova estratégia internacional aparecem definidos no Plano nacional de Defesa (PnD) e na Estratégia nacional de Defesa (EnD), aprovados pelo Congresso nacional em 2005 e 2008, respectivamente, e na sua versão mais recente, de 2012, em processo de discussão e aprovação parlamentar. Nesses documentos, o governo brasileiro propõe nova política externa que integre plenamente suas ações diplomáticas, com suas políticas de defesa e desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, propõe um conceito novo e revolucionário na história brasileira: o conceito de “entorno estratégico” do país, a região onde o Brasil quer irradiar – preferencialmente – sua influência e sua liderança diplomática, econômica e militar, o que inclui a América do Sul, a África Subsaariana, a Antártida e a Bacia do Atlântico Sul.

Na América do Sul, o objetivo brasileiro segue sendo a plena ocupação econômica da Bacia Amazônica, a integração da Bacia do Prata e a construção de acesso múltiplo e contínuo à Bacia Econômica do Pacífico, com a construção de um sistema integrado de transporte, comunicação e defesa do território sul-americano, além do aprofundamento da integração política e econômica do MERCOSUL.

Na África Subsaariana, o Brasil prioriza sua aproximação diplomática, econômica e militar com África do Sul, Angola, Nigéria e Namíbia, além de alguns países da Comunidade da Língua Portuguesa, como Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Nisso, o Brasil dá ênfase às suas relações bilaterais com a África do Sul, dentro da “Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral” (da sigla em inglês, SADC) e dentro do “Diálogo índia-Brasil-África do Sul” (IBAS), criado em 2004.

A Bacia do Atlântico Sul adquire grande importância estratégica, como principal meio de comunicação, transporte e comércio com a África.

Por fim, o Brasil se propõe a ampliar suas áreas de convergência e ação comum com algumas “potências emergentes”, como China, índia e Rússia, que é – na verdade – uma “velha potência” em processo de reconstrução.

Este artigo seleciona apenas alguns aspectos e iniciativas mais importantes da política externa brasileira entre 2003 e 2012, com o objetivo fundamental de identificar seus principais desafios futuros. O artigo parte de brevíssimo diagnóstico da conjuntura internacional, para depois discutir as relações do Brasil com a América do Sul, com o Atlântico Sul, com a África negra e com o grupo dos BRICS. Por último, o artigo inclui quatro notas sobre as condições do projeto de expansão de poder e liderança internacional do Brasil.

2. BREVÍSSIMO DIAGNÓSTICO DA CONJUNTURA INTERNACIONAL

Como resposta à crise da década de 1970, os Estados unidos redefiniram sua estratégia geopolítica e econômica internacional. Isso começou com reaproximação diplomática com a China, que envolveu a derrota/saída do Vietnã e levou à pacificação e ao redesenho do equilíbrio de poder no Sudeste Asiático. Isso permitiu, ao mesmo tempo, o cerco e a destruição da URSS, seguidos do fim da Guerra Fria. Paralelamente, os Estados unidos abandonaram o “Sistema de Bretton Woods”, que eles mesmos haviam criado, e promoveram a progressiva desregulação de seu mercado financeiro, dando início a longo processo de “redivisão” internacional do trabalho. Depois, já nas décadas de 1980 e 1990, os grandes “milagres econômicos” da Guerra Fria perderam centralidade, e a China e o Sudeste Asiático assumiram a condição de novo dínamo da acumulação capitalista mundial, ao lado dos EUA, evidentemente.

Depois do fim da Guerra Fria e até aos primeiros anos do século XXI, o mundo viveu situação de aparente unipolaridade. Mas a vitória de 1991 não foi apenas norte-americana, foi também vitória política da Alemanha unificada e da China, e representou perda de posição relativa da França, da Grã-Bretanha e do próprio Japão. O desaparecimento da URSS e o fortalecimento da China obrigaram a índia a assumir nova postura internacional, e a própria desconstrução da URSS trouxe de volta ao jogo internacional a velha Rússia, na condição de potência derrotada que luta para reconquistar seu território e sua antiga “zona de influência”. Além disso, já no início do novo século, as guerras do Iraque e do Afeganistão, além das mudanças do norte da África, redefiniram as posições relativas dos países da Ásia Central e do Oriente Médio e colocaram sobre a mesa a necessidade incontornável de assimilar a nova liderança regional do Irã, da Turquia e do Egito, além de redefinir a posição de Israel e da Arábia Saudita dentro do tabuleiro do “Grande Oriente Médio”.

Mesmo depois de sua contundente vitória na Guerra Fria, os Estados unidos seguiram expandindo seu poder internacional e construíram uma estrutura de poder militar global, com cerca de oitocentas bases e mais de meio milhão de soldados fora de seu território, além de vários tipos de acordos de defesa mútua com cerca de 140 países, garantindo a supremacia militar dos EUA em todos os oceanos e espaços aéreos do mundo. 


Paralelamente, o poder da economia e dos mercados financeiros norte-americanos impôs aos “mercados globais” novo sistema monetário internacional, baseado no dólar e sem nenhum tipo de base metálica, apoiado apenas na “credibilidade” do poder global e da dívida pública dos EUA. Como consequência, nas duas décadas depois do fim da Guerra Fria, os EUA acumularam poder e riqueza numa velocidade sem precedente na sua história e na história do próprio sistema capitalista mundial.

Mesmo depois da crise financeira de 2008, não faz sentido falar em “crise final” dos EUA nem, muito menos, do capitalismo. Mesmo o “declínio relativo” do poder norte-americano, com relação ao crescimento da importância econômica e política da China, não deve deslocar os EUA da posição de pivô do sistema mundial durante as próximas décadas. Tudo indica, pelo contrário, que os Estados unidos se transformaram na cabeça de um sistema de poder global que está atravessando – no início do século XXI – dificuldades e incertezas produzidas pela mudança de sua condição de “potência hegemônica” até a década de 1970, para a condição de “potência imperial”, depois de 1991.

O novo estatuto imperial dos EUA, somado a sua política interna de austeridade fiscal – induzida pela crise financeira de 2008 – os levaram a adotar nova forma de administração do seu poder global, cada vez mais arbitral e “terceirizada”, por meio da promoção ativa de divisões e “equilíbrios de poder” regionais, segundo o modelo clássico da administração imperial da Grã-Bretanha, e só fazendo intervenções diretas em última instância e de preferência através de países aliados.

De qualquer maneira, é impossível prever exatamente como será o desenvolvimento desse novo tipo de “império”, porque não é colonial e terá de conviver com 195 Estados e economias nacionais, que têm assento nas Nações Unidas, e são, ou se consideram, soberanos. A própria expansão do poder norte-americano seguirá criando e fortalecendo novas potências emergentes que acabarão competindo entre si e com os próprios EUA no longo prazo. Do ponto de vista norte-americano, o essencial é impedir que alguma potência regional ameace sua posição de árbitro em última instância, ou se proponha a desafiar sua supremacia naval e aérea em qualquer latitude do sistema mundial.

Com certeza, esse será um jogo de xadrez extremamente complicado, mas será sem dúvida o jogo da próxima década: de um lado, os EUA se distanciando e dividindo, e só intervindo em última instância; do outro, as demais potências regionais tentando escapar do “cerco norte-americano” e lutando para impedir que os seus vizinhos conquistem posições hegemônicas dentro de sua própria região. Isso não acontecerá sem conflito e sem guerras, porque a nova doutrina estratégica dos EUA deve estimular a corrida armamentista dentro de todas as regiões arbitradas pelos EUA. Os próprios EUA deverão ser os grandes fornecedores das armas destinadas a “equilibrar” os vários “jogos geopolíticos” regionais.

Não se deve excluir, também, a possibilidade de derrotas ou fracassos militares localizados dos EUA. E tampouco se pode excluir da nova ordem a repetição de crises financeiras, como a de 2008. Dentro do novo sistema monetário e financeiro internacional que se globalizou depois de 1991, toda crise financeira interna da economia norte-americana deverá atingir a economia mundial, em maior ou menor grau, pela corrente sanguínea do “dólar flexível” e das finanças globalizadas. Mas essas crises não deverão atingir a posição de liderança monetária e financeira dos EUA, enquanto o governo e os capitais norte-americanos puderem repassar seus custos para outros países e puderem manter o controle monopólico da inovação tecnológica, sobretudo no campo militar.

A nova engenharia da economia mundial – criada pela associação entre as economias norte-americana e chinesa – contribuiu para transformar a China numa economia nacional com enorme poder de gravitação sobre a economia mundial. A nova distribuição da riqueza e do poder econômico já aumentou a intensidade da competição interestatal e intercapitalista, atingindo a economia europeia e promovendo nova “corrida imperialista” na África. Apesar de tudo, não está no horizonte da próxima década uma “guerra hegemônica” entre as grandes potências.

Por fim, o Brasil já ingressou no rol dos estados e das economias nacionais que fazem parte do “caleidoscópio central” do sistema, onde todos competem com todos e todas as alianças são possíveis, em função dos objetivos estratégicos de cada país e de sua proposta de mudança do sistema internacional.

3. O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

3.1. A HISTÓRIA, A GEOGRAFIA E AS MUDANÇAS RECENTES


No século XIX, as guerras e as disputas políticas e territoriais entre os novos Estados sul-americanos não produziram na região as mesmas consequências sistêmicas – políticas e econômicas – das guerras de centralização do poder e de formação dos Estados e das economias nacionais europeias. E, mesmo no século XX, não se consolidou no continente sul-americano um sistema integrado e competitivo de Estados e economias nacionais, como ocorreu na Ásia, após sua descolonização. Por isso, nunca existiu na América do Sul uma disputa hegemônica entre os seus próprios Estados e economias nacionais e nenhum dos seus Estados jamais disputou a hegemonia continental com as grandes potências. De fato, desde sua independência, o continente sul-americano viveu sob a tutela hegemônica dos países anglo-saxões: primeiro, da Grã-Bretanha, até o fim do século XIX, e, depois, dos Estados unidos, durante o século XX. Como consequência, os Estados sul-americanos nunca ocuparam posição importante nas grandes disputas geopolíticas do sistema mundial, até o fim da Guerra Fria.

A própria geografia sul-americana sempre conspirou contra a interiorização da sua atividade econômica e contra a integração política do continente. O território sul-americano é recortado por grandes barreiras naturais que obstaculizam sua comunicação e integração física, como é o caso da Cordilheira dos Andes, da Floresta Amazônica e da região do Pantanal brasileiro e do Chaco boliviano. Só na “região do pampa” argentino, uruguaio, paraguaio e brasileiro é que se pode falar de um território extenso e contínuo com terras extraordinariamente férteis. As terras da Bacia Amazônica e da maior parte das planícies tropicais são muito pobres e de baixa fertilidade, e por isso também a população e a atividade econômica de Venezuela, Guiana, Suriname se concentram a poucos quilômetros da costa: é muito difícil e custoso qualquer projeto de interiorização. Da mesma forma, a combinação de montanhas e florestas tropicais também limita as possibilidades de integração econômica dentro do arco de países que se estende da Guiana Francesa até a Bolívia. O Peru é um país rachado ao meio e dividido entre a sua zona costeira, onde se concentra a atividade extrativa e de exportação, e seu interior andino ou amazônico, extremamente isolado e atrasado social e economicamente. O Chile, por sua vez, possui um clima temperado e terras produtivas, mas é um dos países mais isolados do mundo, o que dificulta sua integração com os demais países do “Cone Sul”, e o transforma em uma pequena economia aberta e exportadora, voltada, quase obrigatoriamente, para os EUA e o Pacífico. Mesmo no caso do Brasil, um terço do seu território está ocupado por florestas e a topografia do território induziu ocupação econômica e urbanização que ainda seguem concentradas próximas da costa atlântica, apesar do movimento intenso de interiorização das últimas décadas. A própria integração econômica de suas grandes metrópoles costeiras ainda é pequena e obstruída por uma cadeia montanhosa quase contínua.

Depois do fim da Guerra Fria, durante a década de 1990, quase todos os governos sul-americanos aderiram ao projeto da “globalização liberal” e a suas políticas econômicas, responsáveis pelas crises cambiais da Argentina, em 1999, e do Brasil, em 1997, 1999 e 2001. O insucesso econômico das políticas neoliberais contribuiu decisivamente para a “virada à esquerda” dos governos sul-americanos durante a primeira década do século XXI. Em poucos anos, quase todos os países da região elegeram governos de orientação nacionalista, desenvolvimentista ou socialista, que mudaram o rumo político-ideológico do continente. Todos se opuseram às ideias e políticas neoliberais da década de 1990 e todos apoiaram ativamente o projeto de integração da América do Sul, opondo-se ao intervencionismo norte-americano no continente. Esse giro político à esquerda coincidiu com o ciclo de expansão da economia mundial, que favoreceu o crescimento generalizado das economias regionais até a crise financeira de 2008.

Hoje, já é possível identificar as principais mudanças que ocorreram na América do Sul, durante a primeira década do século XXI e, ao que tudo indica, vieram para durar: i) o aumento do poder e da liderança brasileira dentro da América do Sul; ii) a mudança do posicionamento regional dos Estados unidos; iii) a invasão econômica chinesa do continente; e, finalmente, iv) o “vaivém” do processo de integração e o “cisma do Pacífico”.

3.1.1. O AUMENTO DO PODER E DA LIDERANÇA BRASILEIRA

No fim da primeira década do século XXI, o Brasil concentrava metade da população sul-americana e era o principal ‘player’ dentro do tabuleiro geopolítico e econômico continental, tendo alcançado, inclusive, presença expressiva na América Central e no Caribe. Do ponto de vista econômico, a diferença entre o Brasil e o resto do continente aumentou consideravelmente nos últimos anos: em 2001, o Produto Interno Bruto brasileiro girava em torno de 550 milhões de dólares, a preços constantes, e era inferior à soma do produto dos demais países sul-americanos, que girava em torno de 640 milhões de dólares nessa mesma época. Dez anos depois, a relação mudou radicalmente: o Produto Interno Brasileiro (PIB) brasileiro cresceu e alcançou a cifra aproximada de 2,5 trilhões de dólares em 2011, enquanto o valor do produto bruto do resto da América do Sul era de cerca de 1,6 trilhão de dólares.

Na América Central e Caribe, o Brasil aceitou o comando da “missão de paz” das Nações Unidas no Haiti, tomou posição decidida a favor da reintegração de Cuba na comunidade americana e defendeu, em todos os foros internacionais, o fim do bloqueio norte-americano a Cuba. Ao mesmo tempo, exerceu razoável influência ideológica sobre alguns governos da América Central e tomou posição rápida e dura frente ao golpe de Estado militar em Honduras, em junho de 2009, e à tensão com os Estados unidos com respeito à coordenação da ajuda ao Haiti, no terremoto do início de 2010. Apesar de adotar um ativismo diplomático mais intenso, o Brasil não tem nenhuma possibilidade de competir ou questionar o poder norte-americano no seu “mar interior caribenho”.

Na América do Sul, o Brasil demonstrou, nos últimos dez anos, vontade e decisão de defender seus interesses e seu próprio projeto de segurança e integração econômica do continente. Com a expansão do MERCOSUL, a criação da “União de Nações Sul-americanas” (UNASUL) e do “Conselho Sul-Americano de Defesa”, o Brasil contribuiu para o engavetamento do projeto da “Área de Livre Comércio das Américas” (ALCA) e reduziu a importância do “Tratado Interamericano de Assistência Recíproca” e da “Junta Interamericana de Defesa”, criados e sustentados pelo patrocínio dos Estados Unidos. Além disso, o Brasil teve participação ativa e pacificadora nos conflitos de fronteira dessa primeira década, entre Equador e Colômbia e entre Colômbia e Venezuela, e fez uma intervenção discreta, mas eficiente, para impedir que os conflitos regionais da Bolívia se transformassem em uma guerra de secessão territorial. Finalmente, em 2012, o Brasil liderou a rápida reação da UNASUL contra o “golpe civil” que derrubou o governo do presidente Fernando Lugo, do Paraguai, e foi favorável ao afastamento do país do MERCOSUL até sua completa redemocratização.

Do ponto de vista da segurança e da defesa continental, o Brasil assinou – em 2009 – um acordo estratégico militar com a França que deverá alterar, no longo prazo, o poder naval do Brasil no Atlântico Sul, pois o país vai adquirir, entre 2021 e 2045, a capacidade simultânea de construir submarinos convencionais e atômicos e de produzir seus próprios caças bombardeiros. Essa decisão não caracteriza corrida armamentista entre o Brasil e seus vizinhos do continente, muito menos com os EUA, mas sinaliza mudança da posição internacional brasileira e vontade clara de aumentar sua capacidade político-militar de veto dentro da América do Sul com relação às posições norte-americanas.

3.1.2. A NOVA POSIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS

Os Estados unidos mudaram sua posição frente à América do Sul, depois do fracasso das políticas neoliberais do “Consenso de Washington”, do abandono do projeto da ALCA e da desastrosa intervenção a favor do golpe militar na Venezuela, em 2003. Diminuíram sua intervenção política direta no continente, passaram a promover acordos comerciais bilaterais com alguns países da região, estimularam a divisão interna do continente com o estímulo à formação de um “bloco liberal” dos países do Pacífico e, sobretudo, mudaram seu foco militar no continente. Fizeram parte dessa última inflexão a decisão de reativar a 4ª Frota naval, em 2008, responsável pelo controle marítimo das águas que cercam a América Latina, e as negociações de novo acordo militar com a Colômbia, que dará acesso aos militares norte-americanos a sete bases aéreas e navais dentro do território colombiano, na contramão do projeto de criação do “Conselho de Defesa Sul-Americano”, liderado pelo Brasil. A reativação da 4ª Frota naval, em particular, explicita a nova doutrina estratégica internacional dos EUA, mais focada no plano militar; isso fica claro na advertência do almirante Gary Roughead, chefe de Operações navais da Marinha norte-americana: “ninguém deve se enganar: porque esta frota estará pronta para qualquer operação, a qualquer hora e em qualquer lugar, num máximo de 24 a 48 horas”.

3.1.3. A “INVASÃO” ECONÔMICA CHINESA

Como em outras partes do mundo, também na América do Sul a intervenção econômica da China seguiu trajetória ascendente e acelerada durante a primeira década do século XXI. Como consequência, a China se transformou, rapidamente, no maior parceiro comercial da maioria dos países da região. Nesse período, a China mais que dobrou sua participação nas importações realizadas pelos países sul-americanos, e seu o valor bruto cresceu mais de 700%, enquanto as exportações brasileiras para a América do Sul, nesse mesmo período, cresceram menos de 40%. Mesmo durante a crise econômica de 2008, a participação brasileira no mercado argentino recuou de 42% para 31,5%, enquanto a participação chinesa subiu de 21,5% para 30,5%. O mesmo aconteceu na Venezuela, onde a participação chinesa subiu de 4,4%, em 2008, para 11,5% nos quatro primeiros meses de 2009. Também, aumentou a parcela de investimentos que a China destina à América Latina, que, como um todo, recebe 18% dos recursos do país asiático, perdendo apenas para a Ásia, aonde vai 63% do investimento externo chinês. Em linguagem estruturalista clássica, pode-se dizer que a China se transformou no novo “centro cíclico principal” do continente, ao reforçar a “velha vocação” primário-exportadora das economias sul-americanas. Mas é importante destacar que não existe nenhum sinal ou perspectiva de que a China queira se envolver no jogo geopolítico sul-americano.

3.1.4. O “VAIVÉM” DA INTEGRAÇÃO E O “CISMA DO PACÍFICO”

O projeto de integração sul-americana nunca foi uma política de Estado, indo e vindo no decorrer do tempo, na forma de um projeto ou utopia “sazonal”, que se fortalece ou enfraquece dependendo das flutuações da economia mundial e das mudanças de governo dentro da própria América do Sul. Durante a primeira década do século XX, os novos governos do continente – alinhados com uma postura crítica ao neoliberalismo –, num contexto de crescimento generalizado das economias regionais entre 2001 e 2008, estimularam e fortaleceram os projetos de integração da América do Sul, em particular o MERCOSUL, liderados pelo Brasil e pela Argentina. Depois da crise de 2008, entretanto, esse cenário mudou: a América do Sul recuperou-se rapidamente, puxada pelo crescimento da China, mas, por mais paradoxal que isso possa parecer, o sucesso econômico de curto prazo trouxe de volta, e vem aprofundando, as velhas limitações objetivas do projeto de integração econômica da América do Sul, ou seja: 1) o fato de as economias sul-americanas seguirem sendo, quase todas, economias primário-exportadoras e pouco integradas entre si; 2) a existência de grandes assimetrias e desigualdades nacionais e sociais dentro de cada país e da região como um todo; 3) a falta de uma infraestrutura continental eficiente; e 4) a falta de objetivos regionais permanentes, capazes de unificar a visão estratégica do continente.

Foi nesse contexto de “reprimarização” da economia sul-americana que surgiu o “cisma do Pacífico”, o aparecimento de um novo eixo político-diplomático e econômico dentro do continente, a “Aliança do Pacífico”, com a participação do Chile, do Peru e da Colômbia, ao lado do México e do Panamá, sob a liderança dos Estados Unidos. Os três países sul-americanos são pequenas economias de exportação com escasso relacionamento comercial entre si e – talvez por isso mesmo – sempre foram favoráveis às políticas de abertura de seus mercados externos. A soma do Produto Interno Bruto dos três países é de cerca de 800 bilhões de dólares, menos de um terço do PIB brasileiro e menos de um quarto do PIB do MERCOSUL. É nesse sentido que se pode dizer que o “cisma do Pacífico” tem mais importância ideológica do que econômica, porque sua força política decorre inteiramente da sua aliança com os EUA. Na verdade, os três países sul-americanos associados à “Aliança do Pacífico” fazem parte do processo de criação da “Trans-Pacific Economic Partnership” (TPP), que se transformou na peça central da política externa comercial da administração Obama e de seu projeto de afirmação do poder econômico e militar norte-americano na região do Pacífico. Além dos cinco países latinos, fazem parte do projeto norte-americano o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia, a Malásia, Singapura e Brunei, além da Coreia do Sul e do Japão. Sem o Japão, o acordo terá menor relevância, mas se as resistências japonesas forem vencidas, esse bloco de livre comércio e proteção dos direitos de propriedade incluirá 40% do PIB mundial e acrescentará 60 bilhões de dólares às exportações norte-americanas. Segundo a revista “Foreign Affairs”, “se as negociações da TPP prosperarem, os EUA vão se tornar muito mais fortes, econômica e politicamente na próxima geração”.

3.2 BALANÇO E PERSPECTIVAS

Depois de uma década de mudanças e forte ativismo político, é possível identificar algumas disjuntivas no horizonte da América do Sul, e algumas escolhas que seus governos deverão fazer nos próximos anos.

Do ponto de vista econômico, e em particular do ponto de vista dos mercados, a tendência “natural” é que a América do Sul siga sendo uma periferia econômica exportadora, mesmo se ampliar e diversificar seus parceiros e compradores, e que seu novo “centro cíclico” seja a China. Para mudar essa tendência, é preciso que haja vontade política e poder de decisão do Estado para levar adiante, mesmo nos momentos de maior dificuldade, um projeto integracionista que fortaleça a estrutura produtiva e dos serviços regionais. Nesse caso, haveria que acelerar o projeto de construção dos grandes eixos de transporte e comunicação interna, além de tomar decisões conjuntas de política econômica que apontassem – de forma consistente e continuada – para a construção e consolidação do mercado interno, com a redução progressiva da dependência macroeconômica em relação às flutuações dos mercados internacionais de ‘commodities’. Nesse ponto, não existe meio-termo: os países inteiramente dependentes da exportação de produtos primários ou de recursos naturais – mesmo no caso do petróleo – serão sempre países periféricos, incapazes de comandar sua própria política econômica e incapazes de comandar sua participação soberana na economia mundial.

Do ponto de vista da defesa e segurança do continente, a tendência “natural” dos fatos, uma vez mais, é que a América do Sul se mantenha sob a proteção militar norte-americana. Mas não é impossível a construção, no médio e longo prazo, de uma capacidade estratégica mais autônoma e centrada na própria região. Para isso, entretanto, os governos sul-americanos teriam de sair de sua atual “zona de conforto” e tomar a decisão política de construir, mesmo que seja de forma lenta, um sistema de segurança regional coletivo, em que os países sul-americanos participariam na condição de aliados estratégicos.

De qualquer maneira, uma coisa é certa: a possibilidade de sucesso de uma alternativa sul-americana mais autônoma e soberana dependerá, cada vez mais, das escolhas do Brasil. No caso do Brasil, também é possível identificar, pelo menos, duas alternativas fundamentais. Primeiramente, do ponto de vista econômico, o mais fácil é que o Brasil siga o caminho indicado pelos mercados e pelos grandes investidores financeiros internacionais.

Nesse caso, o Brasil poderá se transformar numa economia exportadora de petróleo, alimentos e commodities, uma espécie de “periferia de luxo” das grandes potências compradoras do mundo, como foram, no seu devido tempo, a Austrália e o Canadá, mesmo depois de sua industrialização. Nesse caso, entretanto, o Brasil nunca poderá se transformar em “locomotiva continental” e será sempre um competidor em relação aos seus vizinhos. Mas o Brasil tem capacidade e possibilidade de construir um caminho alternativo e novo dentro da América do Sul, de alguma forma similar ao da economia norte-americana, que tem autossuficiência energética, que possui excelente dotação de recursos naturais estratégicos e que soube combinar uma indústria de alto valor agregado com um setor produtor de alimentos e ‘commodities’ de alta produtividade.

Do ponto de vista de sua política de defesa, o Brasil também tem, pelo menos, duas alternativas: ou se mantém na condição de sócio preferencial dos Estados Unidos e garante a administração colegiada de sua supremacia sul-americana; ou luta para aumentar sua capacidade de decisão estratégica autônoma, com política hábil e determinada de complementaridade e competitividade crescente com os Estados Unidos.

Tanto na disjuntiva econômica quanto na defesa, a opção mais autônoma e soberana aponta para um caminho muito mais longo e árduo do que o caminho “natural” dos mercados e da subordinação estratégica aos EUA. Por isso mesmo, a construção desse caminho alternativo supõe a existência de uma coalizão de poder com capacidade de sustentar um projeto de expansão econômica e de afirmação geopolítica até à consolidação de posições irreversíveis, incluindo a construção de nova hegemonia ideológica, dentro do Brasil e da América do Sul.

4. O BRASIL E O ATLÂNTICO SUL

4.1. A GEOGRAFIA E A GEOPOLÍTICA ATLÂNTICA

Na primeira década do século XXI, o Brasil assumiu plenamente o fato de o Atlântico Sul ser uma reserva e uma fonte importante de recursos econômicos, ser seu principal meio de transporte e intercâmbio comercial e poder ser um meio de projeção de sua influência e poder na África. Além das novas reservas de petróleo do pré-sal brasileiro, também existem reservas na plataforma continental argentina e foram comprovadas expressivas reservas de petróleo ‘offshore’ na região do Golfo da Guiné, sobretudo na Nigéria, em Angola, no Congo, no Gabão e em São Tomé e Príncipe. Ainda na costa ocidental africana, a Namíbia possui grandes reservas de gás e a África do Sul, de carvão. Também existem na Bacia Atlântica crostas cobaltíferas, nódulos polimetálicos (contendo níquel, cobalto, cobre e manganês), sulfetos polimetálicos (contendo ferro, zinco, prata, cobre e ouro), além de depósitos de diamante, ouro e fósforo, entre outros minerais relevantes, e já foram identificadas grandes fontes energéticas e minerais na região da Antártica. Além disso, o Atlântico Sul é uma via de transporte e comunicação fundamental com a África e espaço de suma importância para a defesa e a segurança dos países ribeirinhos, dos dois lados do Atlântico.

A Argentina tem 5 mil quilômetros de costa e sustenta uma disputa territorial com a Grã-Bretanha em torno da soberania das ilhas Malvinas e das ilhas Geórgia e Sandwich do Sul. Além disso, a Argentina tem importante projeção e interesse no território da Antártida e nas passagens interoceânicas do canal de Beagle e do estreito de Drake. Do outro lado do Atlântico, a África do Sul ocupa o vértice meridional do continente africano, e é um país bioceânico, banhado simultaneamente pelo Oceano Atlântico e pelo Oceano índico, com quase 3 mil quilômetros de costas marítimas e cerca de 1 milhão de quilômetros quadrados de águas jurisdicionais. Além disso, ocupa posição estratégica, como “rota do cabo” ou ponto de passagem entre o “ocidente” e o “oriente”, e vice-versa, por onde circula cerca de 60% do petróleo embarcado no Oriente Médio na direção dos EUA e da Europa, e é também por onde circula intenso comércio de ‘commodities’, sobretudo na direção dos países mais industrializados. A África do Sul defende cooperação mais estreita com os demais países ribeirinhos do Atlântico Sul, mas sua Marinha se manteve sob forte influência britânica entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o fim do apartheid, e hoje é relativamente inexpressiva. Finalmente, a Nigéria e Angola têm 800 e 1,6 mil quilômetros de costa atlântica, respectivamente. As reservas de petróleo do Golfo da Guiné estão estimadas em 100 milhões de barris, o que faz da costa e da plataforma atlântica um elemento central da estratégia defensiva dos dois países. Mas nenhum dos dois dispõe de capacidade naval mínima de defesa autônoma e de participação em operações estratégicas mais amplas, que envolvam os demais países da Bacia do Atlântico Sul.

Das grandes potências, a Grã-Bretanha mantém a posse de um cinturão de ilhas no Atlântico, que lhe confere vantagem estratégica sem igual, como é o caso das ilhas meso-oceânicas de Tristão da Cunha, Ascensão e Santa Helena e das ilhas periantárticas de Shetlands, Geórgia, Gough, Sandwich do Sul, Orcadas do Sul e Malvinas. Por sua vez, os EUA realizam exercícios periódicos no Atlântico Sul e também possuem bases navais na ilha de Ascensão (arrendadas dos ingleses), além de terem dois comandos militares com responsabilidades geográficas na região – o Comando do Sul, estabelecido em 1963 e o Comando da África (AFRICOM) mais recente, estabelecido em 2007). Por fim, como já vimos, os EUA reativaram, em 2008, a sua 4ª Frota para o controle do Atlântico Sul, o que caracteriza situação de grande assimetria de recursos e de poder naval entre as duas potências anglo-saxônicas e os demais países situados dos dois lados do Atlântico Sul.

4.2. A POSIÇÃO E AS PERSPECTIVAS DO BRASIL

O Brasil é o país que dispõe do litoral mais extenso e da maior plataforma marítima entre os países ribeirinhos do Atlântico. O interesse estratégico declarado do Brasil no Atlântico Sul ultrapassa a defesa exclusiva das águas jurisdicionais de seu mar territorial e das 200 milhas de sua Zona Econômica Exclusiva (ZEE), onde se encontra a maior parte de suas reservas de petróleo e gás, e estende-se até a África e o território da Antártida. O comércio marítimo brasileiro se dá, prioritariamente, através do Atlântico, que representa 90% do comércio internacional do país; além disso, cerca de 90% das reservas totais de petróleo do Brasil e 67% de suas reservas de gás natural estão no mar; e o mesmo acontece com 82% de sua produção atual de petróleo. O Brasil também possui três ilhas atlânticas e tem importante projeção sobre o território da Antártida.

Entre 1952 e 1977, a Marinha brasileira esteve sob tutela material e estratégica dos EUA, e só começou a desenvolver o seu próprio planejamento autônomo a partir da denúncia do Acordo Militar com os EUA e a formulação de seu “Plano Estratégico da Marinha”, em 1977. Mesmo hoje, apesar de contar com poder naval superior ao de Nigéria, Angola, África do Sul e Argentina, o Brasil ainda tem enorme vulnerabilidade no Atlântico Sul, por causa das dimensões de sua plataforma marítima, que chega a ser metade de seu território continental, e da grande concentração de seu comércio, cidades e atividade econômica no litoral atlântico. A Marinha do Brasil desenvolve, há anos, várias atividades de cooperação com os países banhados pelo Atlântico Sul, incluindo Argentina, Uruguai e África do Sul e tem ampliado sua cooperação com Guiné-Bissau, Namíbia, Angola e São Tomé e Príncipe. Mas nada disso poderá alterar – ainda por um bom tempo – a correlação de forças e o controle da Bacia Atlântica, que seguirá sob o domínio do poder naval anglo-americano.

Nesse ponto, não há como enganar-se: o poder naval brasileiro foi inteiramente dependente da Inglaterra e dos Estados unidos, pelo menos até a década de 1970, e o Brasil segue sendo um país vulnerável do ponto de vista da capacidade de defesa da sua costa e de sua plataforma marítima. Esse panorama só poderá ser modificado no longo prazo, com a construção da nova frota de submarinos convencionais e nucleares que deverão ser entregues à Marinha brasileira entre 2021 e 2045. Trata-se de um limite material objetivo e intransponível no curto prazo, e o cálculo estratégico do Brasil tem de assumi-lo como um dado de realidade e um elemento central de sua política de defesa e de projeção de sua influência no Atlântico Sul e na África Subsaariana. Até porque é muito pouco provável que os países ribeirinhos, dos dois lados do Atlântico Sul, possam levar à frente ações conjuntas de tipo afirmativo, por falta de interesses coincidentes e por falta de poder real de implementação de decisões que envolvam o uso de um poder naval de que não dispõem.

5. O BRASIL E A ÁFRICA SUBSAARIANA

5.1. A HISTÓRIA, A GEOGRAFIA E AS MUDANÇAS RECENTES

A África é o segundo maior e o mais populoso continente do mundo: tem área de 30.221.532 quilômetros quadrados e população de cerca de 1 bilhão de habitantes, aproximadamente 15% da população mundial. Encontra-se cercada pelo Mar Mediterrâneo, ao norte, pelo Canal de Suez e pelo Mar Vermelho, ao nordeste, pelo Oceano Índico, ao sudeste, e pelo Oceano Atlântico, ao oeste. O continente inclui a ilha de Madagascar, vários arquipélagos, 9 territórios e 57 estados independentes. Seu território é dividido geograficamente em cinco grandes regiões, e é comum ser separado em dois grandes blocos: a África do norte, predominantemente arábica e islâmica, situada ao sul do Mar Mediterrâneo, e a África Subsaariana, também chamada África negra, situada ao sul do Deserto do Saara. Cerca de metade da população africana vive na África negra, que, apesar de ser considerada o “berço da humanidade”, inclui sociedades extremamente desiguais, com indicadores socioeconômicos muito negativos. A maior parte da África vive sob clima tropical, dominante tanto na zona tropical quanto na região equatorial, com exceção de algumas pequenas áreas de clima ameno, situadas nos extremos norte e sul do continente.

Os europeus chegaram à costa africana e iniciaram seu comércio de escravos negros no século XV e XVI, mas foi só no século XIX que as grandes potências europeias ocuparam e impuseram sua dominação imperial em todo o território africano, menos a Etiópia. A “Conferência de Berlim”, de 1884 a 1885, consagrou a divisão colonial do território africano entre a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Bélgica e a Itália, além da Espanha e de Portugal, que já ocupavam suas colônias desde muito antes da conferência. Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o final da década de 1970, quase todas as colônias africanas se separaram de suas metrópoles europeias, dando origem a um sistema de Estados recortado por fronteiras criadas (na sua maior parte) pelos próprios colonizadores. Durante a Guerra Fria, a maioria dos países africanos se colocou ao lado das potências ocidentais. A independência africana, depois da Segunda Guerra Mundial, despertou grandes expectativas com relação aos seus novos governos de “libertação nacional” e seus projetos de desenvolvimento, que tiveram sucesso em alguns casos durante os primeiros tempos de vida independente. Esse desempenho inicial, entretanto, foi atropelado por sucessivos golpes e regimes militares, e pela crise econômica mundial da década de 1970, que atingiu todas as economias periféricas e provocou prolongado declínio da economia africana, até o início do século XXI. Mesmo na década de 1990, depois do fim do mundo socialista e da Guerra Fria, e no auge da globalização financeira, o continente africano ficou praticamente à margem dos novos fluxos de comércio e de investimento globais.

Depois de 2001, entretanto, a economia africana ressurgiu, acompanhando o novo ciclo de expansão da economia mundial, como aconteceu na América do Sul. O crescimento médio, que era de 2,4% em 1990, passou para 4,5% entre 2000 e 2005, e alcançou as taxas de 5,3% e 5,5%, em 2007 e 2008. No caso de alguns países produtores de petróleo e outros minérios estratégicos, essas cifras alcançaram níveis ainda mais expressivos, como em Angola, Sudão e Mauritânia. A África conta com 25% das reservas de urânio e mais de 35% do potencial hidrelétrico do mundo, e é responsável pelo fornecimento de 15% da produção mineral do planeta, incluindo 70% da de diamantes e platina, 50% da de cobalto, mais de 30% da de ouro e cromo e cerca de 20% da de urânio, manganês e fosfato. Os países da África que circundam o Atlântico Sul possuem significativas reservas provadas de petróleo, totalizando quase 60 bilhões de barris e 3,5% das reservas mundiais. Destacando-se: Angola, cujas reservas aumentaram cerca de dez vezes entre 1991 e 2011 (partindo de 1,4 bilhão de barris) e que possui 13,5 bilhões de barris em reservas provadas de petróleo, com 0,8% das reservas mundiais; e Nigéria, cujas reservas quase dobraram entre 1991 e 2011 (partindo de 20 bilhões de barris) e que possui as maiores reservas da região subsaariana, com 37,2 bilhões de barris em reserva, 2,3% do total das reservas globais. A dotação de recursos explica, em parte, por que a África Subsaariana se transformou – depois do ano 2000 – no palco central de uma intensa competição entre os governos e os grandes capitais públicos e privados das antigas potências colonialistas, ao lado da China, da Índia, da Rússia e também do Brasil, que é o país com a segunda maior população negra do mundo.

A mudança da economia africana na primeira década do século XXI – como no resto do mundo – se deveu ao impacto do crescimento vertiginoso da China e da Índia, que consumiam 14% das exportações africanas no ano 2000 e hoje consomem 27%, assim como a Europa e os Estados Unidos, que são velhos parceiros comerciais do continente africano. Na direção inversa, as exportações asiáticas para a África vêm crescendo a uma taxa média de 18% ao ano, seguindo os investimentos diretos chineses e indianos, sobretudo em energia, mineração e infraestrutura. Neste momento, existem mais de mil empresas e cem mil trabalhadores chineses na África, com uma estratégia conjunta de “desembarque econômico” no continente, como acontece também, em menor escala, com o governo e os capitais privados indianos. Nesse sentido, não cabe mais dúvida, devido ao volume e à velocidade dos acontecimentos: a África é hoje o grande espaço de “acumulação primitiva” asiática e uma das principais fronteiras de expansão econômica e política da China e da Índia. Mas, ao mesmo tempo, não há o menor sinal de que os Estados unidos e a União Europeia estejam dispostos a abandonar suas posições estratégicas conquistadas e controladas dentro do território econômico africano.

Depois da frustrada “intervenção humanitária” dos Estados unidos, na Somália, em 1993, o presidente Bill Clinton visitou o continente e definiu uma estratégia de “baixo teor” para a África: democracia e crescimento econômico através da globalização dos seus mercados nacionais. Mas, depois de 2001 – como aconteceu também na América do Sul –, os Estados unidos mudaram radicalmente sua política africana, em nome do “combate ao terrorismo” e da “proteção dos seus interesses energéticos”, sobretudo na região do “Chifre da África” e do Golfo da Guiné, que, até 2015, deverá fornecer 25% das importações norte-americanas de petróleo. Foi quando os Estados Unidos criaram seu novo comando estratégico regional no nordeste africano e instalaram as primeiras bases de apoio do AFRICOM, criado em 2008, dando início a uma nova era de intenso engajamento da Marinha norte-americana na costa oeste da África. O aumento da presença militar norte-americana, entretanto, não é um fenômeno isolado, porque a União Europeia e a Grã-Bretanha também têm dedicado atenção crescente à África, e até a Rússia vem intensificando seus acordos envolvendo venda de armas e alguns projetos bilionários de suprimento de gás para a Europa, através da Itália e do deserto do Saara.

5.2. A PROJEÇÃO DO BRASIL NA ÁFRICA

Depois da Segunda Guerra Mundial e até a década de 1960, a política externa brasileira se submeteu à estratégia norte-americana da Guerra Fria e apoiou o colonialismo europeu na África. Essa posição só mudou pela primeira vez com a “política externa independente” (PEI), dos governos de Jânio Quadros e João Goulart, entre 1961 e 1964. Logo depois do golpe militar de 1964, entretanto, o governo Castello Branco voltou a apoiar o colonialismo português e europeu, e essa posição só veio a ser modificada durante o governo Geisel, que reconheceu a independência dos governos revolucionários de Guiné-Bissau e de Angola, em 1975, mesmo contra a posição dos EUA e de vários países europeus. Nos anos 1990, o governo brasileiro voltou a dar prioridade, na sua política externa, às relações com os EUA e com os países desenvolvidos. E, só na primeira década do século XXI, o Brasil definiu explicitamente a África Subsaariana como parte de seu “entorno estratégico”, onde pretendia irradiar sua liderança e projetar sua influência política e econômica.

Entre 2003 e 2010, o presidente Lula visitou 29 países africanos – alguns mais de uma vez –, totalizando mais visitas ao continente do que a somatória das visitas de todos os presidentes anteriores. Nessas visitas, foram firmados inúmeros acordos econômicos e foram criadas diversas organizações empresariais, como no caso do lançamento da Câmara de Comércio Brasil-Gana, em 2005. O Brasil também renegociou a dívida de vários países africanos num valor que ultrapassou 1 bilhão de dólares e representou cerca de 75% do total das dívidas renegociadas pelo governo brasileiro nesse período. Além disso, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) intensificaram seu apoio e financiamento às exportações brasileiras para o continente africano; em 2008, os incentivos concedidos às empresas brasileiras para exportar para a África – no âmbito do “Programa de Integração com a África” – resultaram no desembolso de R$ 477 milhões, elevando-se para R$ 649 milhões, em 2009. Nesse período, várias empresas brasileiras se instalaram em Moçambique, Angola, Guiné, Mauritânia, Argélia e Líbia, explorando o setor de serviços, extração de recursos naturais e grandes obras públicas de transporte, barragens e hidroelétricas. A Petrobras e a Vale do Rio Doce foram as grandes responsáveis pelos investimentos brasileiros em extração mineral. Os principais projetos da VALE estão em Moçambique e na Guiné, onde a VALE está construindo uma ferrovia que atravessa o Malaui, para poder escoar o seu minério. A Petrobras atua em Angola, Gabão, Líbia, Namíbia e Tanzânia, além e sobretudo na Nigéria, que é seu principal parceiro e fornecedor do petróleo importado pelo Brasil. A agricultura também tem sido um campo fértil de colaboração, e a EMBRAPA tem fornecido – desde seu escritório de Gana – assistência técnica à indústria de algodão em Benin, Burkina Faso, Chade e Mali, com algumas empresas brasileiras que produzem soja, cana-de-açúcar, milho e algodão no continente africano. Importante também foi a atuação brasileira na área de cooperação técnica bilateral, com o envio de missões de apoio ao desenvolvimento urbano a países como Moçambique e Namíbia, ou de cooperação na construção ou reconstrução de infraestrutura e de conjuntos habitacionais, como no caso de Angola, além de informatização de órgãos governamentais, como aconteceu com o governo de São Tomé. Além disso, o governo brasileiro intensificou significativamente suas “ações horizontais” e suas parcerias governamentais no campo da educação, do saneamento básico, da nutrição e da saúde, sobretudo através da Fundação Oswaldo Cruz e do seu Ministério de Saúde. O Brasil também aumentou suas ações e parcerias estratégicas no campo da defesa com alguns países subsaarianos, contribuindo para o levantamento da plataforma continental da Namíbia e de Angola. Depois da Oceania, o continente africano é o que menos gasta em armamentos, em todo o mundo – 1,7% do seu orçamento – e a África do Sul, que é o país que ocupa a posição geoestratégica mais importante na África Subsaariana, possui uma força militar menor do que a da Argentina. Assim mesmo, há grande espaço para cooperação na área da defesa entre o Brasil e a África negra, através dos organismos internacionais ou mesmo através de ações conjuntas voltadas para o ordenamento e a exploração dos recursos do Atlântico Sul. A Marinha do Brasil ajudou a criar a Marinha da Namíbia e, entre 2003 e 2010, o Brasil assinou Acordos de Cooperação no Domínio da Defesa com África do Sul, Angola, Moçambique, namíbia, Guiné Equatorial, Nigéria, Senegal e Cabo Verde. Empresas brasileiras da área da defesa, como a EMBRAER e a EMGEPRON, têm tido uma atuação significativa na África, tanto no campo comercial quanto na difusão de conhecimento tecnológico e na realização de projetos conjuntos, como no caso do desenvolvimento – com a África do Sul – de um novo míssil ar-ar (Projeto A-Darter), de um avião cargueiro e de veículos aéreos não tripulados. Na última década, o governo brasileiro também fortaleceu laços com os países da Comunidade de Língua Portuguesa, que se tornou um instrumento de concertação e influência diplomática do Brasil, e também avançou na consolidação do seu diálogo com a Índia e a África do Sul, dentro do IBAS, criado em 2004 para promover a cooperação e o intercâmbio Sul-Sul.

5.3. BALANÇO E PERSPECTIVAS

A África Subsaariana apresenta níveis altos de pobreza e carência no campo da alimentação, saúde, educação etc. Em geral, são economias subdesenvolvidas com baixa capacidade endógena de dinamização econômica. Além disso, existem enormes disparidades e assimetrias sociais dentro dos países e entre os países da África negra, como os países petroleiros que se destacaram, tanto pelo crescimento acelerado do seu PIB na última década, quanto da desigualdade na distribuição de renda. Nesse contexto, as “ações horizontais” da diplomacia brasileira se mantiveram quase sempre num nível de cooperação bastante elementar de solidariedade e sobrevivência, desenvolvendo-se de forma muito lenta e com resultados observáveis limitados. Ao mesmo tempo, o continente africano possui grande variedade de recursos naturais, tem enorme carência de infraestrutura de transportes e comunicação e apresenta escasso nível de industrialização. Nesse sentido, pode-se dizer que o futuro oferece boas oportunidades econômicas para o Brasil no campo dos investimentos em infraestrutura (transportes, energia e comunicações), mas também no desenvolvimento tecnológico da indústria local e na capacitação da mão de obra.

Agora, se o Brasil mantiver sua política africana na próxima década, enfrentará pesada concorrência das grandes potências tradicionais e das potências emergentes, em particular da China e da Índia, que disputam influência e controle dos recursos estratégicos da região e têm muito mais capacidade de mobilização econômica e militar do que o Brasil. um desafio que exigirá do governo brasileiro enorme capacidade de mobilização de sua sociedade e elites – em geral reticentes frente a suas origens africanas – e de articulação e coordenação entre as várias agências do governo brasileiro – diplomacia, defesa e política econômica. Além disso, o Brasil deve ter plena consciência de que está entrando num jogo de xadrez extremamente complicado, porque o sistema internacional já ingressou numa nova “corrida imperialista” entre as suas “grandes potências” e seu epicentro deverá ser, uma vez mais, a África. Como já aconteceu com o primeiro colonialismo europeu que começou com a conquista da cidade de Ceuta, no norte da África, em 1415, estendendo-se em seguida pela costa africana e transformando sua população na principal ‘commodity’ da economia mundial, no início da globalização capitalista. E, depois, de novo, na “era dos impérios”, no fim do século XIX, quando as potências europeias conquistaram e submeteram quase todo o continente africano.

6. O BRASIL E O GRUPO DOS BRICS


 
Fora de seu “entorno estratégico” imediato, a iniciativa diplomática mais expressiva do Brasil, na primeira década do século XXI, foi sem dúvida sua participação no grupo político e diplomático dos BRICS, ao lado de Rússia, índia, China e África do Sul.

6.1. A ORIGEM E AS DIMENSÕES DO GRUPO

O acrônimo foi usado pela primeira vez em 2001, mas só se transformou em fenômeno diplomático e simbolizou agrupamento político a partir da reunião dos chanceleres dos quatro primeiros “sócios” do grupo, durante a 61ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro de 2006. E foi só na 1ª Cúpula, de Ecaterimburgo, na Rússia, em 2008, que o agrupamento alcançou o nível de chefes de Estado e de governo. Depois, seguiram-se as reuniões da 2ª Cúpula, de Brasília, em abril de 2010, a 3ª Cúpula, de Sanya, na China, em abril de 2011, quando foi admitida como sócia a África do Sul, e a 4ª Cúpula, de nova Déli, na índia, em março de 2012. A 5ª ocorreu na cidade de Durban, na África do Sul, em abril de 2013. A somatória simples indica que o peso demográfico e econômico dos BRICS é considerável. Juntos, os cinco países governam cerca de 3 bilhões de seres humanos, quase metade da população mundial. E, entre 2003 e 2007, o crescimento do grupo representou 65% da expansão do PIB mundial; em 2003, os BRICS respondiam por 9% do PIB mundial e, em 2009, o valor havia aumentado para 14%. Em paridade de poder de compra, o PIB dos BRICS já supera hoje o dos EUA e o da União Europeia. Em 2010, o PIB conjunto dos cinco países – considerado pela paridade do poder de compra – havia alcançado já 19 trilhões de dólares, ou seja, 25% do PIB mundial.

Na geopolítica das nações, entretanto, semelhanças econômicas e afinidades ideológicas só operam com eficácia quando coincidem com os interesses e as necessidades dos países, do ponto de vista de seu desenvolvimento e segurança. Desse modo, a formação de um grupo político de cooperação diplomática e de um espaço econômico com fluxos comerciais e financeiros mais ou menos significativos entre o Brasil, a Rússia, a China, a Índia e a África do Sul é um fato novo e pode vir a ser a base material de algumas parcerias setoriais e localizadas entre todos ou alguns desses países. Mas é muito pouco provável que só isso seja suficiente para justificar uma aliança estratégica de longo prazo entre os cinco países.

6.2. A HETEROGENEIDADE DO GRUPO

São cinco países que ocupam posição de destaque, nas suas respectivas regiões, devido ao tamanho de seu território, de sua população e de sua economia. Mas, ao mesmo tempo, são cinco países completamente diferentes do ponto de vista de sua história, de sua inserção internacional, de seus interesses geopolíticos e de sua capacidade de implementação autônoma de decisões estratégicas.

6.2.1. RÚSSIA

Logo depois da dissolução da União Soviética e durante toda a década de 1990, muitos analistas vaticinaram o fim da grande potência, que ingressou no cenário europeu com as guerras de conquista de Pedro, o Grande, no início do século XVIII. Mas a Rússia é um império e uma civilização milenar que já foi destruída e reconstruída muitas vezes no decorrer da história. Por isso, não surpreende que, já a partir de 2000, com o primeiro governo de Vladimir Putin, a Rússia tenha iniciado rápido processo de reconstrução do seu Estado e da sua economia, tenha retomado e reerguido seu complexo militar-industrial, tenha se reaproximado da China e tenha explicitado claramente sua disposição de refazer sua antiga “zona de influência” na Ásia Central, nos Bálcãs e em parte da Europa do Leste. A Rússia manteve o arsenal atômico da URSS e, no ano 2000, os líderes militares e civis russos alertaram os Estados Unidos sobre a possibilidade da retomada da corrida nuclear, caso os norte-americanos insistissem no seu projeto de instalação de um sistema antimísseis na fronteira russa. No início de 2007, a Rússia alcançou o nível de atividade econômica anterior à grande crise dos anos 1990 e reassumiu seu lugar como grande fornecedor de armamento e tecnologia militar para a China, a Índia e o Irã, além de vários outros países ao redor do mundo, incluindo recentemente a Argentina e a Venezuela. De tal maneira que, apenas vinte anos depois do fim da União Soviética, todos os sinais indicam nova onda de modernização da economia russa, associada à retomada dos objetivos estratégicos seculares do país, como aconteceu em outros momentos de “reconstrução” da história da Rússia e da própria União Soviética. Trata-se de um país que já foi a segunda maior potência mundial e que possui o maior estado territorial do mundo, dotado de enorme capacidade de resistência militar e econômica, como ficou comprovado nas guerras napoleônicas e na Primeira e Segunda Guerra Mundial.

6.2.2. CHINA E ÍNDIA

A China e a Índia também possuem civilizações milenares e controlam em conjunto um terço da população mundial. Além disso, possuem entre si 3.200 quilômetros de fronteira comum, afora as fronteiras que ambas têm com Paquistão, Nepal, Butão e Myanmar. Além disso, China e Índia têm territórios em disputa, guerrearam entre si nas últimas décadas e são potências atômicas. Dentro do xadrez geopolítico asiático, os indianos consideram que as relações amistosas da China com o Paquistão, Bangladesh e Sri Lanka fazem parte de uma estratégia chinesa de “cerco” da Índia e de expansão chinesa no Sul da Ásia, a “zona de influência” imediata dos indianos. Por sua vez, os chineses consideram que a aproximação recente entre os Estados Unidos e a Índia, sua nova parceira estratégica e atômica, faz parte de uma estratégia de “cerco” da China, caracterizando uma competição territorial e bélica, em torno da supremacia no Sul e no Sudeste da Ásia, que envolve também os Estados Unidos. A China vem investindo pesadamente na modernização de suas forças armadas, sobretudo do seu poder naval, com os olhos postos na disputa da hegemonia no Sudeste Asiático e nos oceanos índico e Pacífico.

A Índia não apresenta, à primeira vista, as características de uma potência expansiva e se comporta estrategicamente como um Estado que foi obrigado a se armar para proteger e garantir sua segurança numa região de alta instabilidade, onde sustenta uma disputa territorial e uma competição atômica também com o Paquistão, além da China. Mesmo assim vem desenvolvendo e controla uma tecnologia militar de ponta, como no caso do seu sofisticado sistema balístico e do seu próprio arsenal atômico, e possui um dos exércitos mais bem treinados de toda a Ásia. Foi depois da sua derrota militar para a China, em 1962, e da primeira explosão nuclear chinesa, em 1964, logo antes da sua guerra com o Paquistão, em 1965, que a Índia abandonou o “idealismo prático” da política externa de Nehru e adotou a Realpolitik do primeiro-ministro Bahadur Shastri, que autorizou o início do programa nuclear indiano na década de 1960. Naquele momento, a Índia assumiu plenamente a condição de potência nuclear e definiu nova estratégia de inserção regional e internacional.


6.2.3. BRASIL E ÁFRICA DO SUL

O Brasil e a África do Sul compartem com a China e a índia o fato de serem os Estados e as economias mais importantes de suas respectivas regiões, responsáveis por parte expressiva da população, da produção e do comércio interno e externo da América do Sul e da África. Mas não têm disputas territoriais com seus vizinhos, não enfrentam ameaças internas ou externas a sua segurança e não são potências militares relevantes. Desde o fim do apartheid e do início da sua democratização, a África do Sul se envolveu em quase todas as negociações de paz dentro do continente negro, mas sem jamais apresentar nenhum traço expansivo ou disposição para luta hegemônica dentro da África. Pelo contrário, tem sido um Estado que se move com enorme cautela, talvez devido ao seu próprio passado racista e belicista. Desde o primeiro governo de Mandela, a África do Sul tem se proposto a cumprir papel de ponte entre a Ásia e a América Latina, mas o volume e o ritmo de crescimento do PIB sul-africano, o tamanho de sua população, suas limitações militares e sua falta de coesão interna impedem que a África do Sul possa aspirar a qualquer tipo de supremacia que não seja na sua região imediata, na África Austral, ou na condição de um “Estado relevante” para os assuntos da África negra. Por outro lado, o Brasil também nunca foi um Estado com características expansivas nem disputou a hegemonia da América do Sul com a Grã-Bretanha ou com os Estados unidos. Depois de 1850, o Brasil não enfrentou mais guerras civis ou ameaças de divisão interna e, depois da Guerra do Paraguai, na década de 1860, o Brasil teve apenas uma participação pontual em conflitos internacionais, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, e algumas participações posteriores nas “forças de paz” das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos (OEA). Sua relação com seus vizinhos da América do Sul, depois de 1870, foi sempre pacífica e, durante todo o século XX, sua posição dentro do continente foi de sócio auxiliar da hegemonia continental dos Estados unidos.

6.3. BALANÇO E PERSPECTIVAS

Com relação ao futuro dos BRICS, o que se deve esperar para a próxima década é que a Rússia se dedique cada vez mais a reverter suas perdas da década de 1990 e a retomar sua posição dentro do núcleo central das grandes potências, enquanto a China deve se distanciar crescentemente do grupo e, aliás, de qualquer aliança que restrinja seus graus de liberdade de ação no tabuleiro internacional, uma vez que a China já vem atuando, em vários contextos, com a postura de quem comparte, e não de quem questiona, a atual “gestão” do poder mundial. O mesmo se deve dizer com relação à Índia, que deve dedicar atenção cada vez maior às ameaças do seu “entorno estratégico”, onde a própria China aparece como seu grande rival regional. Por último, o mais provável é que a África do Sul e o Brasil ampliem sua condição de Estados relevantes, mas ainda sem ter capacidade de projeção global de poder fora de sua zona imediata de influência.

Resumindo, o que se deve esperar, no médio prazo, é que o grupo dos BRICS se transforme em uma iniciativa diplomática muito importante da primeira década do século XXI, mas que vai se exaurindo e extinguindo à medida que o século avançar.

7. QUATRO NOTAS FINAIS

1. Depois da Segunda Guerra Mundial e mesmo depois do fim da Guerra Fria, a política externa brasileira foi inconstante e oscilou no tempo, mudando seus objetivos e estratégias, segundo o momento, o governo e a ideologia dominante. E dentro da sociedade, de suas elites e mesmo dentro de suas agências governamentais, houve mudança e divisões que impediram que se consolidasse uma posição estratégica que permanecesse através do tempo. Em particular na relação do Brasil com a América do Sul e com a África, é clara a dificuldade de definir e manter objetivos de longo prazo. Além disso, existe carência acentuada de uma rede de instituições ou “think tanks” fora do aparelho de Estado que cumpra o papel de reunir informações e ideias que formem a “massa crítica” indispensável para o estudo das alternativas e para a orientação inteligente da inserção internacional do Brasil. Sem informação crucial, sem mobilização da sociedade e sem coesão de seu establishment externo, é impossível levar à frente uma política externa consistente de projeção internacional, que não seja dependente de situações excepcionais.

2. Um país pode projetar o seu poder e a sua liderança fora de suas fronteiras nacionais através da coerção, da cooperação, da difusão das suas ideias e de seus valores e também através da sua capacidade de transferir dinamismo econômico para sua “zona de influência”. Mas, em qualquer caso, uma política de projeção de poder exige objetivos claros e coordenação estreita entre as agências responsáveis pela política externa do país, envolvendo a diplomacia, a defesa e as políticas econômica e cultural. Sobretudo, exige “vontade estratégica” consistente e permanente, ou seja, capacidade social e estatal de construir consensos em torno de objetivos internacionais de longo prazo, junto à capacidade de planejar e implementar ações de curto e médio prazo através das agências estatais, em conjunto com os atores sociais, políticos e econômicos relevantes.

3. O grande desafio brasileiro, na próxima década, será construir um caminho de expansão e projeção do seu poder – dentro e fora do seu “entorno estratégico” – que não siga a trilha que já foi percorrida pelas grandes potências tradicionais. Ou seja, o Brasil terá de traçar uma estratégia de expansão do seu poder e da sua influência, que não reivindique nenhum tipo de “destino manifesto”, que não utilize a violência bélica dos europeus e norte-americanos e que não se proponha a conquistar povos para “convertê-los”, “civilizá-los” ou simplesmente comandar o seu destino.

4. Mesmo assim, não haverá como contornar uma regra fundamental do sistema: todo país que ascende a uma nova posição de liderança regional ou global, em algum momento terá de questionar os “consensos éticos” e os arranjos geopolíticos e institucionais que foram definidos e impostos previamente pelas potências que já controlam o sistema mundial. Não está excluída a possibilidade e a necessidade de convergências e alianças táticas entre a potência ascendente e uma ou várias das antigas potências dominantes, desde que ela mantenha o objetivo permanente de crescer, expandir e galgar posições dentro do sistema internacional. Isso não é veleidade nacional nem se deve a nenhuma ideologia em particular; é imperativo do próprio “sistema interestatal capitalista”: nesse sistema, “quem não sobe cai”.

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