sábado, 1 de junho de 2013

DEZ ANOS DE POLÍTICA EXTERNA, por Marco Aurélio Garcia

Itamaraty

“Ao longo desta e das próximas semanas, a “Carta Maior” publica os artigos do livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil – Lula e Dilma” (Boitempo, 2013), organizado por Emir Sader. Já estão disponíveis a entrevista com Lula e o artigo de José Luís Fiori [ver neste blog ‘democracia&política’ em: http://democraciapolitica.blogspot.com.br/2013/05/integra-da-mais-ampla-e-valiosa.html e http://democraciapolitica.blogspot.com.br/2013/05/o-brasil-e-seu-entorno-estrategico.html). Agora, os leitores poderão ler a análise de Marco Aurélio Garcia, assessor especial da presidência, sobre a política externa brasileira.

 


Recentemente, um trêfego analista da política externa brasileira – às vezes da interna também – decretou o “fracasso da Doutrina Garcia”, denominação na qual englobava o conjunto das ações exteriores dos dois governos Lula e da administração da presidenta Dilma Rousseff. Tudo se passa, para esse cristão-novo do “conservadorismo” [direita], como para os mais velhos e respeitáveis conservadores, de um somatório de derrotas motivadas pelo abandono de valores tradicionais da política externa em favor de preconceitos ideológicos impostos pelos partidos hegemônicos no governo, especialmente o PT, nesse período relativamente longo de nossa história republicana.

Não é hora de responder a esses argumentos, que expressam desacordo, incompreensão ou, até mesmo, inconformidade com a grande transformação em curso no país desde 2003. Trata-se, apenas, de tomar nota desse e de outros monólogos encontráveis em boa parte da grande imprensa, sobretudo naquela onde não há espaço para qualquer tipo de resposta, sempre em nome de um centenário “liberalismo político”.

A análise histórica “à chaud” tem seu interesse, pois procura dar conta de acontecimentos recentes, quando não dos que estão em curso. Tem, no entanto, o limite da excessiva proximidade com esses acontecimentos, o que impede de vê-los em contexto mais amplo.

Em outro momento, pus a nu o falacioso argumento dos que defendem uma política externa “apartidária”, fundada em tradições e valores imutáveis. O fato de ser política de Estado não exime a política externa de mudanças, motivadas não só pela alternância política, própria às democracias, como pelas transformações internacionais – vertiginosas nas duas últimas décadas. Estas frequentemente aconselham reorientações necessárias à proteção do interesse nacional e dos grandes valores dessa política de Estado – como a preservação da paz, a defesa dos direitos humanos, da liberdade e da soberania nacional e do princípio de não intervenção nos assuntos internos das nações.

É próprio de certo “liberalismo político conservador” tentar aprisionar a democracia em valores ideológicos imutáveis que impedem qualquer movimento de transformação na (e da) sociedade. Esse foi seu pecado capital, já no século XIX, quando privilegiou a noção de “ordem” em detrimento da de “justiça social” – temeroso que estava com as mudanças que a emergência da sociedade industrial provocava.

Entender a democracia também como um espaço de constituição de direitos, capaz de articular as dimensões socioeconômicas, político-jurídicas e nacionais foi o que deu força à Social Democracia no limiar do século XX, a despeito dos desdobramentos que teve sua trajetória ulterior.

1. AS INCERTEZAS QUE MARCAVAM O SÉCULO XXI

Em seu “manifesto para uma nova ordem mundial”, George Mombiot afirmava, em 2002, que “tudo já foi globalizado, exceto nosso consenso [...] [, pois] a democracia resta confinada aos limites do Estado nacional. Permanece na fronteira, carregando uma valise, mas sem um passaporte na mão”. São palavras que expressam o sentimento daqueles que viviam o impacto de mais de uma década de grandes mudanças, que destruíram certezas sem repor novos valores, ao mesmo tempo em que “alguns poucos homens das nações ricas [...] [assumiam] o poder global para dizer ao resto da humanidade como deve viver”.

Falar em (des)ordem mundial no início deste século não é um apocalíptico recurso retórico. Os Estados unidos haviam sido atacados em seu território pelo terrorismo e, em vez de parar para pensar sobre as causas e o significado mais profundo daquele ato insano, o governo Bush enfiou-se, primeiro, em uma guerra sem fim no Afeganistão e, depois, programou um ataque massivo e letal ao Iraque, ao arrepio do direito internacional. Nem mesmo o Conselho de Segurança das Nações Unidas deu aval à demanda do governo dos Estados unidos, o que aprofundou a crise de legitimidade da ONU.

Foi nessas circunstâncias que Luiz Inácio Lula da Silva ganhou as eleições presidenciais e, preparando-se para assumir suas responsabilidades em janeiro de 2003, visitou rapidamente, em dezembro de 2002, Buenos Aires, Santiago do Chile, Cidade do México e Washington.

Na capital norte-americana, Lula encontrou no Salão Oval um presidente obcecado em atacar o Iraque. Sem entrar em uma discussão mais profunda sobre o 11 de Setembro, o dirigente brasileiro afirmou que a única guerra que ele queria levar adiante naquele momento era contra a fome e a pobreza. Apesar da aparente troca de farpas, o encontro foi considerado muito positivo.

Os Estados unidos haviam dado sinais favoráveis em relação à eleição de Lula, como ficou evidente nas declarações e iniciativas de sua embaixadora em Brasília. Mas a chegada de um dirigente sindical, líder de um partido de esquerda, à presidência de um país relevante da América Latina poderia, evidentemente, provocar alguma inquietação em um governo republicano, de corte conservador, e que estava sem clara política para a região, salvo algumas observações disparatadas de “neocons” como Otto Reich e Roger Noriega. Expressão anedótica e divertida dessa insegurança foi a pergunta que Bush fez ao presidente chileno Ricardo Lagos, no dia seguinte ao encontro da Casa Branca com Lula, sobre o significado da estrela vermelha do PT que o novo governante brasileiro exibia com orgulho na lapela de seu paletó.

Não lembro bem quais explicações Lagos deu a Bush, mas o fato é que as relações entre Brasil e Estados unidos nos dois mandatos republicanos foram mais do que corretas. O dirigente norte-americano esteve duas vezes no Brasil, fato inédito em muitas décadas. Lula foi mais de uma vez aos Estados unidos, sendo recebido em Camp David, o que fez ranger os dentes dos que apostavam em uma degradação das relações entre os dois países.

Mas o que interessa no diálogo dos dois presidentes na Casa Branca é a fala do brasileiro. Ela demonstrava algo que poderia estar distante de uma visão tradicional de política externa, mas que, na verdade, era elemento consubstancial da nova presença do Brasil no mundo.

Presidente recém-eleito de um país rico, mas profundamente desigual, o novo governante expressava claramente que o Brasil necessitava atacar a chaga da exclusão econômica e social que o marcava secularmente. Ela minava a democracia política, pois fazia da igualdade entre os cidadãos um engodo, um princípio constitucional que não encontrava amparo no cotidiano da sociedade real.

Esse não tão pequeno episódio revela como a nova articulação interno/externo se transformaria em elemento central do governo Lula, o que explica o enorme ativismo internacional do presidente (a decantada “diplomacia presidencial”) que se fez não em detrimento do Itamaraty, mas, ao contrário, com sua intensa e fortalecida participação.

2. UMA MUDANÇA DE RUMO

A eleição de Lula – e, antes dela, a de Hugo Chávez na Venezuela – dava corpo a um processo de revisão drástica dos modelos econômicos até então hegemônicos na América Latina, inspirados no denominado “Consenso de Washington”.

Não tendo logrado – muito pelo contrário – o pretendido equilíbrio fiscal, que se sobrepunha a qualquer outro objetivo, as políticas inspiradas no “Consenso” haviam provocado, também, aguda crise econômica, social e política em muitos países.

O exemplo mais flagrante era o da Argentina, que mergulhara em um abismo econômico e no caos social na virada de 2001-2002. O fim da chamada “convertibilidade” do peso destruiu a moeda nacional e instabilizou politicamente o país. A sucessão de cinco presidentes no período de dez dias expressou dramaticamente a profundidade e intensidade da crise no país vizinho. “Que se vayan todos”, proclamavam nas ruas os coléricos argentinos.

A crise uruguaia, no mesmo período, teve dimensões econômicas semelhantes às da Argentina – mais graves, dizem alguns –, só não tendo um desdobramento institucional da mesma intensidade em função do pacto político que se estabelecera naquele país, e que expressava, também, o amadurecimento de sua esquerda e as perspectivas de uma vitória da “Frente Ampla” nas eleições presidenciais, como acabou ocorrendo posteriormente.

Uma vez mais, aparece aqui a correlação interno/externo.

O fato de o governo Lula ter podido enfrentar positivamente os temas do crescimento com forte inclusão social, ao mesmo tempo em que estabilizava macroeconomicamente o país, reduzia sua vulnerabilidade externa e fortalecia a democracia, teve forte efeito de demonstração sobre a região, em especial na América do Sul.

É claro que a vitória de forças progressistas nas eleições que se seguiram na Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Paraguai não foram consequência de qualquer “intervenção brasileira”. Mas também é certo que o Brasil de Lula não pôde ser usado pela direita como espantalho, capaz de impedir a vitória eleitoral das esquerdas na região.

O declínio do projeto conservador não havia cedido lugar a um novo “modelo de desenvolvimento”, no sentido abrangente que essa expressão teve no passado. Mas começavam a caducar alguns dogmas que contaminaram o pensamento econômico daquele período e produziram efeito muitas vezes paralisante sobre o pensamento progressista. Não mais se poderia dizer, por exemplo, que “é impossível crescer e distribuir renda ao mesmo tempo”, ou que “há que escolher entre o fortalecimento do mercado interno ou expandir as exportações”, ou, finalmente, que “não se pode crescer e controlar a inflação simultaneamente, pois o crescimento só virá após anos de políticas fiscais e monetárias austeras”.

Pairava sobre o conjunto do continente a proposta de formação de uma “Área de Livre Comércio das Américas” (ALCA), prato de resistência da “Cúpula das Américas”, lançada em Miami, em 2004, no limiar do governo Fernando Henrique Cardoso, que lá compareceu como presidente eleito. Apesar do atrativo ideológico que esse projeto apresentava para setores do governo brasileiro e para parte do empresariado, eram muitos os segmentos da indústria, da agricultura e dos serviços locais que se davam conta dos enormes riscos que essa “solução de mercado” [pró-EUA] representava para o desenvolvimento econômico e social do Brasil. É óbvio que, à frente do rechaço à ALCA, se encontravam os sindicatos que, a partir da experiência do “Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio” (NAFTA), se davam conta dos enormes riscos que tal iniciativa traria ao mundo do trabalho.

O destino da ALCA é conhecido. Na “Cúpula das Américas” de Mar Del Plata (2005), a posição unitária dos quatro países do MERCOSUL, com o apoio da Venezuela, impediu que o projeto prosperasse. A recusa pelo governo Lula da proposta de formação da ALCA era também consequência do aprofundamento de uma visão de desenvolvimento nacional. Não se tratava de pensar o futuro da economia e da sociedade brasileira de forma autárquica ou subordinada [aos EUA], mas em estreita relação com os países sul-americanos, que constituem sua circunstância geoeconômica e geopolítica.

3. O SENTIDO DA INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA PARA O BRASIL

Como Lula havia dito e Dilma reiterou em seu discurso de posse, o Brasil queria associar seu destino ao da América do Sul.

A despeito de muitas narrativas que buscavam filiar o projeto de uma integração sul-americana à gesta dos Libertadores, quase dois séculos antes, havia razões mais atuais para sustentar essa iniciativa. Independentemente dessa retórica de conotações histórico-ideológicas que esteve (e está) presente no discurso integracionista, predominavam considerações de ordem econômica e política que refletiam aguda percepção da evolução da situação internacional e do papel que a América do Sul poderia desempenhar em um mundo multipolar em formação. A disjuntiva era: o Brasil podia (ou queria) ser, isoladamente, um polo na nova ordem global em construção, ou buscaria ocupar um lugar de destaque nela, junto a todos os países da América do Sul?

A opção por essa segunda hipótese decorreu de duas considerações. A primeira delas está ligada à avaliação do novo quadro mundial – a demanda crescente por alimentos, energia e matérias-primas – e o potencial da região para supri-la, além de outros fatores que serão a seguir mencionados. A outra consideração reflete a nova abordagem do que é o interesse brasileiro.

No documento em que foi desenvolvida a primeira proposta de formação de uma “Comunidade Sul-Americana de Nações” (CASA), posteriormente denominada “União das Nações Sul-Americanas” (UNASUL), destacou-se a importância de fatores materiais e imateriais que aconselhavam a formalização de mais esse processo de integração subregional.

A América do Sul é apresentada como uma região de enorme potencial energético, em um mundo carente de energia. Destaca-se por suas grandes reservas de petróleo e gás, antes mesmo que se houvessem anunciado as descobertas do pré-sal brasileiro e, mais recentemente, das novas regiões de hidrocarbonetos na Argentina.

O continente também é rico em recursos hídricos, o que incide na constituição de seu enorme potencial hidroelétrico. Essas reservas aquíferas, somadas à qualidade e à diversidade dos solos e à abundância de sol, são determinantes para a produção agrícola. É importante destacar, entretanto, que essa vocação da região para celeiro do mundo não depende exclusivamente de fatores naturais ou mesmo de uma força de trabalho barata, como no velho modelo agroexportador. A agricultura da região – em particular a brasileira – ganhou altos níveis de produtividade em função da pesquisa científica e tecnológica, da qual uma entidade como a “Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária” (EMBRAPA) é paradigmática. A América do Sul possui grandes florestas e opulenta (e inexplorada) biodiversidade, além de rico e diversificado acervo mineral.

Nos últimos anos, conflitos em torno de impactos ambientais e/ou sociais de grandes projetos energéticos, de logística ou mineiros ganharam visibilidade e testemunharam o avanço da democracia. Reduziu-se o espaço para ações predatórias contra a natureza ou em detrimento de povos originários.

O parque industrial da região é relevante, a despeito de problemas conjunturais. Materializando-se a preocupação de muitos governos da América do Sul de levar adiante amplos programas de formação de mão de obra e de inovação tecnológica, a indústria poderá atingir um novo patamar, comparável ao das economias emergentes mais competitivas.

Um dado demográfico é essencial: 400 milhões de sul-americanos formam parte do mercado de consumo, beneficiados em grande medida por políticas de inclusão social. A relevância desse mercado de bens de consumo de massa pôde ser constatada quando da irrupção da crise econômica mundial a partir de 2008. O retraimento dos fluxos comerciais internacionais foi compensado pelo vigor do mercado interno. Essa crise teve consequências muito distintas daquela que abalou o mundo em 1929, quando o continente enfrentou grave depressão econômica e social e aguda instabilidade política.

A última década tem mostrado a América do Sul como região estável, onde se fortalece a democracia. Com exceção do episódio da destituição arbitrária de Fernando Lugo no Paraguai – pronta e unanimemente condenada pelo MERCOSUL e pela UNASUL –, os presidentes de todos os demais países da região foram eleitos em pleitos limpos e com forte participação popular. Por certo, a intensidade dessa participação nem sempre é bem-vista por alguns observadores locais, que tentam qualificá-la como renascimento do “nacionalismo populista”. Essas opiniões revelam, no mais das vezes, viés conservador e a dificuldade de entender processos que, a partir do ingresso de novos segmentos sociais na política, colocam na ordem do dia a refundação de instituições que excluíam a presença dos “de baixo” nas grandes decisões nacionais.

A esse fator “imaterial” – a democracia –, nem sempre encontrável em outras partes do mundo emergente, somam-se outras características que a região pode apresentar: a de ser uma zona de paz, livre de armas de destruição em massa, onde os poucos contenciosos de fronteira estão sendo resolvidos (ou poderão sê-lo) por arbitragem. A América do Sul é, também, uma região onde não há espaço para conflitos religiosos e as tensões étnicas persistentes têm encontrado soluções crescentes no marco de instituições, que mostram capacidade de renovação.

Para preservar a América do Sul de conflitos potenciais ou reais, a política externa brasileira tem buscado, nos âmbitos bilateral ou multilateral, soluções criativas e duradouras.

A criação do “Conselho Sul-Americano de Defesa”, proposta por Lula, sob o impacto do conflito entre Colômbia e Equador em 2008 e da ameaça de enfrentamento de maiores proporções entre Colômbia e Venezuela, decorreu de novo consenso, facilitado por mudanças nas doutrinas nacionais de defesa, inclusive a brasileira. Abandonou-se a hipótese de guerra entre os países do continente. Enfatizaram-se estratégias dissuasivas centradas na cooperação, e não no conflito, e na criação de mecanismos capazes de inibir a cobiça extracontinental em relação às reservas naturais da região, especialmente suas abundantes fontes de energia.

Outro tema de importância é o da violência e da criminalidade internacional organizada. Sem atingir as dimensões que têm hoje na América Central, ele representa séria ameaça à cidadania e ao funcionamento do Estado democrático de direito. Para enfrentar essa ameaça, a UNASUL criou o “Conselho de Combate ao Problema Mundial das Drogas”. Ao lado de ações bi ou multilaterais que o Brasil desenvolve com seus vizinhos, esse organismo articulará uma estratégia comum – eficaz e respeitosa da soberania nacional – de enfrentamento desse grande desafio.

4. SUPERAR A DESIGUALDADE

A despeito dos enormes avanços econômicos e sociais da última década, a América do Sul continua a ser a região mais desigual do planeta. Esse grave problema tem sido enfrentado nacionalmente por meio de políticas econômicas e sociais inovadoras. Mas encontrará soluções mais efetivas quando se materializarem projetos de integração no plano energético, logístico e produtivo. Estes permitirão aproveitar plenamente nosso potencial natural e, ao mesmo tempo, estabelecer cadeias de valor capazes de articular processos industriais em toda região.

A integração logística garantirá, como vem ocorrendo em escala ainda insuficiente, uma efetiva aproximação das economias e o pleno aproveitamento da grande vantagem que possui o continente de ser banhado tanto pelo Atlântico como pelo Pacífico.

A integração energética resolverá a situação de países que padecem de grandes déficits nesse terreno, como é o caso do Chile, ou situações paradoxais, como a do Paraguai que, tendo a maior produção per capita de eletricidade no mundo, ainda enfrenta apagões em sua capital. A construção da linha de transmissão entre a Usina Binacional Itaipu, financiada com recursos do MERCOSUL (FOCEM) essencialmente originários do Brasil, terá em breve enorme impacto sobre a vida da cidadania, mas também sobre a industrialização do país.

Na mesma direção, a agregação de valor ao gás, ao petróleo e a outros recursos naturais – essencial para romper com um modelo primário exportador – depende da capacidade de articulação energética do continente.

Os avanços na integração produtiva são condicionados pelo peso da economia brasileira na região. Algumas de nossas grandes indústrias nacionais – aeronáutica, defesa, automobilística e autopeças ou de fármacos, para citar exemplos relevantes – podem substituir importações provenientes de fora do continente por produção regional.

A ampliação do conceito de conteúdo nacional, exigido em diretrizes da política industrial brasileira, para o de conteúdo regional será de vital importância para que grandes projetos do pré-sal e outros relacionados às compras governamentais beneficiem toda a região.

Finalmente, estão colocados os problemas da integração financeira. O “Banco do Sul” (BS), cuja criação foi decidida há alguns anos, ainda está no papel, e o Brasil tem responsabilidade no atraso de sua efetiva implementação. A inexistência do BS é, em parte, compensada pela ação da “Corporação Andina de Fomento” (CAF) e do “Banco Interamericano de Desenvolvimento” (BID), instituições importantes para muitos projetos nacionais e de integração regional.

O “Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social” (BNDES) tem sido relevante em muitos países da América do Sul. O Banco financia a exportação de serviços de empresas brasileiras, que são obrigadas a desenvolver suas ações no marco das leis de cada país e no respeito estrito de normas de preservação ambiental e de proteção social. A existência de conflitos aqui e acolá não desfigura a importância que o BNDES tem tido na política de integração sul-americana.

Mas o Banco tem seus limites, razão pela qual, há tempos, ainda no governo Lula, colocou-se a necessidade de criação de um EXIMBANK (da sigla em inglês, banco de exportações e importações. Refere-se a uma agência governamental de créditos) que realizasse, em escala ampliada, as tarefas que o BNDES não pode cumprir, em função dos entraves legais a que está submetida a instituição. Parte importante de seus recursos são originários do “Fundo de Amparo ao Trabalhador” (FAT), obrigando que eles sejam aplicados apenas no território nacional.

O papel que o Brasil tem, como maior economia da América Latina, impõe drástica revisão de seus instrumentos de cooperação externa. Apesar de boas iniciativas, os recursos e o formato institucional da “Agência Brasileira de Cooperação” (ABC) estão muito aquém da importância que o país passou a ter no contexto internacional.

5. MERCOSUL, O BRASIL E SEUS VIZINHOS

Embora alguns analistas afirmem que está paralisado, o MERCOSUL tem demonstrado vigor na última década, não só em função da extraordinária expansão quantitativa e qualitativa de suas trocas comerciais, mas também por sua capacidade mais recente de expandir-se, como atestam o ingresso da Venezuela como membro pleno, o início de negociações para a incorporação da Bolívia e as primeiras tratativas a fim de permitir ao Equador também juntar-se ao Bloco. O MERCOSUL não abandona seu objetivo de ser uma união aduaneira perfeita, o que não é fácil tendo em vista a assimetria das economias dos países que o integram.

Essas assimetrias, que muitas vezes provocam tensões entre seus integrantes, fazem parte de todos os processos de integração. Elas refletem, ao mesmo tempo, os limites de uma associação regional fundada apenas, ou centralmente, no livre-comércio. O peso desmesurado da economia brasileira e, em certa medida, da própria economia argentina, tende, no mais das vezes, a perpetuar as assimetrias ou até mesmo agravá-las. Ao lado de oferta competitiva de milhares de produtos, o Brasil se depara, não raro, com países que têm pequeníssima (e não necessariamente competitiva) capacidade de exportação. Para piorar as coisas, muitos desses produtos encontram resistências em setores empresariais brasileiros que se sentem ameaçados por essas importações.

A percepção dessas realidades provocou inflexões na política externa brasileira que, em mais de uma ocasião, encontraram resistências no próprio país. Para uns, esse modelo de integração feria interesses econômicos de grupos nativos; para outros, afetava convicções ideológicas; para terceiros, as duas coisas ao mesmo tempo.

Episódicos emblemáticos ilustram essas dificuldades.

A nacionalização dos ativos da Petrobras pelo governo Evo Morales provocou uma onda de protestos no Brasil, onde não estavam ausentes manifestações racistas (“até quando vamos aguentar esse índio”) ou propósitos belicistas, como a sugestão de que o governo concentrasse tropas na fronteira e pudesse, até mesmo, invadir a Bolívia. Esses protestos não levavam em conta o fato de que o governo boliviano havia utilizado critérios legais semelhantes aos da legislação brasileira. Omitia-se, também, que a Petrobras tenha sido devidamente indenizada e lá continue operando.

A renegociação das tarifas de Itaipu foi outra batalha difícil e a aprovação do acordo firmado entre os presidentes Lula e Lugo só foi obtida após intensa batalha parlamentar, na qual opositores não economizaram considerações chauvinistas.

As dificuldades nas relações comerciais com a Argentina, ainda que, em certas oportunidades, os processos administrativos utilizados por autoridades de Buenos Aires sejam objetáveis, não podem esconder um elemento central: a enorme importância do mercado daquele país para o sistema produtivo brasileiro. Não deve ser desconsiderado, tampouco, o considerável superávit brasileiro que tem marcado as relações entre os dois países nos últimos anos.

Os exemplos se multiplicam e poderiam ocupar muitas páginas de qualquer análise sobre estes dez últimos anos da política externa brasileira. O rigor exigido por alguns em relação aos países vizinhos contrasta, no entanto, com a mansuetude que demonstram esses mesmos críticos em relação às duras restrições que os países desenvolvidos tentam impor em matéria econômica e comercial. Essa atitude contraditória não passou despercebida à sociedade brasileira. Chico Buarque de Holanda resumiu bem: a política externa atual “não fala fino com Washington nem fala grosso com Bolívia e Paraguai”.

As diferenças de tratamento em relação aos países vizinhos não decorrem de “simpatias ideológicas”, como querem uns, ou de uma ingênua “generosidade” paga pelo povo brasileiro, como explicam outros.

Trata-se, antes de tudo, da assunção pela política externa brasileira, da importância que tem para o país uma América do Sul desenvolvida econômica e socialmente e estável politicamente. Sem imiscuir-se na situação interna dos distintos países da região, a política externa praticada nesta década contribuiu para a estabilidade alcançada em países como Bolívia, Equador e Venezuela, que sofriam graves e prolongados processos de perturbação de sua ordem social e política.

O Brasil não aspira a “liderança” do continente como, no passado, pediam lideranças de países desenvolvidos. (Basta lembrar que, na administração estadunidense de Richard Nixon, foi dito que a América Latina iria para onde fosse o Brasil). O Brasil não aceita essa tentativa de “terceirização de responsabilidades” e quer construir um movimento de solidariedade continental que instaure novo tipo de relacionamento no qual não exista espaço para qualquer tentação de um “imperialismo brasileiro”.

Um dos resultados positivos dessa postura no resto do continente foi a formação da “Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos” (CELAC), primeira tentativa de articular somente nações dessas duas regiões sem a presença de países estranhos a elas. Uma nova concepção de integração continental está em curso.

A CELAC não se opõe à “Organização dos Estados Americanos” (OEA). Ela vem colocando novos desafios para o que, anos atrás, era celebrado como “política hemisférica”. Sinais dessa nova realidade apareceram na “IV Cúpula das Américas” em Cartagena (2012), quando os Estados Unidos ficaram isolados em sua oposição à presença do governo de Cuba na reunião e a uma moção que pedia a abertura de negociações entre o Reino Unido e a Argentina, a fim de encontrar solução ao contencioso sobre as Malvinas. Mas, ao invés de boicotar a reunião de 2012 na Colômbia, a imensa maioria dos países compareceu, deixando claro que aquela seria a última cúpula sem a presença de Cuba.

O tema cubano tem sofrido importante evolução na América Latina e no Caribe. Toda a região mantém relações com a ilha. Seu governo desenvolve programas de cooperação relevantes, sobretudo na área social no continente, e sua ativa diplomacia tem contribuído para encontrar soluções de consenso para as complexas questões internas de alguns países, como evidencia o fato de Havana sediar hoje as negociações entre o governo colombiano e as FARC e de ocupar a presidência pro tempore da CELAC.

Sem interferir, o Brasil acompanha de perto as mudanças econômicas e políticas em curso nos últimos anos em Cuba, ao mesmo tempo que lá desenvolve a mais importante iniciativa em matéria de infraestrutura (o porto de Mariel), apoia a renovação de sua agricultura e amplia a articulação entre a indústria farmacêutica de Cuba com laboratórios nacionais, entre outras ações que intensificam o relacionamento entre esses países.

No diálogo franco e positivo que manteve e mantém com sucessivos governos norte-americanos, a diplomacia brasileira tem insistido no fim do embargo econômico de décadas imposto à ilha, sobrevivência de uma Guerra Fria que já acabou. O Brasil espera que, em seu segundo mandato, o presidente Barack Obama possa dar novo curso ao relacionamento Estados Unidos-Cuba.

6. UMA POLÍTICA EXTERNA DE VOCAÇÃO UNIVERSALISTA

Ao leitor que chegou até aqui pode parecer estranho, ou até mesmo desmesurado, que esta análise tenha se centrado quase que exclusivamente na América do Sul e na América Latina. Como se a política externa dos governos Lula e Dilma se esgotasse no plano regional.

Ledo engano.

A ação externa do Brasil teve e tem caráter abrangente, mas sempre levando em conta que nossa presença internacional no conturbado mundo atual ganhará mais consistência e eficácia quando associada às posições de toda a América do Sul.

Desde os primeiros dias do governo Lula, em 2003, a vocação universalista da política externa foi enfatizada. Bastaria lembrar o ativismo do novo presidente em costurar alianças com França, Alemanha, Rússia e países da América Latina para impedir que se consumasse a letal aventura da invasão do Iraque. Em seguida, vieram as iniciativas – com França, Chile, Espanha e outros países – contra a fome e a pobreza no mundo.

Essa perspectiva abrangente da política externa se manifestou igualmente na busca de interlocução com países e regiões com os quais nosso relacionamento havia sido, até então, bastante pequeno. Exemplo disso foi o diálogo que se estabeleceu em Brasília (2005), entre a América do Sul e os países árabes, e se desdobrou posteriormente em outros dois encontros – em Doha (2009) e em Lima (2012).

País com mais de 10 milhões de imigrantes de origem árabe, mas não só por essa razão, o Brasil passou a dar enorme importância ao Oriente Médio, região que, por sua relevância econômica, política e cultural, tem significação estratégica para os destinos da humanidade e da paz mundial.

No topo das prioridades está a busca de uma solução para a questão palestina. Ela passa pela coexistência entre um Israel seguro e um Estado palestino viável economicamente – e igualmente seguro – nas fronteiras anteriores à guerra de 1967, com sua capital em Jerusalém Oriental.

Outra sobrevivência da Guerra Fria, a irresolução da questão palestina se transformou em um dos maiores fatores de instabilidade internacional. O Brasil defende que o tema seja efetiva e urgentemente assumido pelo “Conselho de Segurança das Nações Unidas”. O chamado quarteto – Estados Unidos, União Europeia, ONU e Rússia – revelou-se incapaz de oferecer uma solução, e sua inação tem estimulado as políticas de “fato consumado”, como a expansão ilegal de assentamentos de colonos judeus em territórios ocupados, que dificultam mais uma solução negociada.

Ainda que não exclusivamente ligado à questão palestina, mas sentindo sua influência, o Oriente Médio e Próximo tem sido abalado por uma série de movimentos e conflitos para os quais não são oferecidas soluções diplomáticas.

A intervenção da “Organização do Tratado do Atlântico Norte” (OTAN) na Líbia é perigoso precedente e suas consequências começam a se refletir nas ações de desestabilização em curso no norte da África. Sua repetição na Síria – onde governo e oposição são responsáveis por gravíssimas violações dos direitos humanos – teria efeitos mais desastrosos ainda que no caso líbio.

A “política de canhoneira”, com a qual um século atrás as grandes potências desenharam politicamente a região, fracassou. Ela é incapaz de captar os múltiplos e desencontrados sinais emitidos por esse movimento que se convencionou chamar de “Primavera árabe”.

Além do intrincado xadrez político e cultural dessa vasta região do mundo, há temas para os quais países emergentes como o Brasil podem dar sua contribuição a partir das experiências de suas políticas econômicas e sociais, capazes de enfrentar os problemas do desemprego, da exclusão e da desigualdade sociais e da desesperança que golpeia vastos setores da população, sobretudo os jovens. Esses problemas estão em boa medida na origem dos movimentos sociais que agitam a região.

A incapacidade de dar respostas a essas questões e a ilusão de que elas possam ser resolvidas por meio da exportação da “democracia ocidental” para a região, como se acreditou ser o caso durante as “Revoluções de Veludo” na Europa do Leste nos anos 1990, explica a persistência, quando não a intensificação, de fundamentalismos e até mesmo do terrorismo.

Outro tema que ganhou reverberação internacional foi o acordo que Brasil, Turquia e Irã assinaram em 2010 para encontrar uma solução negociada ao impasse criado pelo programa nuclear iraniano. Turquia e Brasil eram contrários às sanções aplicadas àquele país e às ameaças – algumas não tão veladas – de intervenção militar. O presidente Lula e o primeiro ministro turco Recep Tayyip Erdogan deslocaram-se à Teerã e chegaram a um acordo com o governo iraniano para permitir a transferência de uma parte importante do urânio daquele país a fim de ser enriquecido no exterior. Obteve-se, ainda, igualmente, a liberdade imediata de uma professora francesa e, um pouco mais adiante, de cidadãos norte-americanos detidos no Irã. A proposta turco-brasileira aceita por Teerã foi objeto de consultas e negociações prévias nos meses que antecederam o acordo e coincidiu com a posição do presidente Obama, expressa a Lula em carta reservada, só mais tarde tornada pública.

Pouco depois, a recusa do acordo e a adoção de novas sanções pelo “Conselho de Segurança da ONU” (contra os votos da Turquia e do Brasil) mostravam mais do que uma rigidez das grandes potências. Revelavam a inconformidade delas com o fato de que países “periféricos” tivessem obtido diplomaticamente do Irã o que elas não haviam conseguido com suas ameaças. O desfecho do episódio revelou a precariedade do sistema multilateral e uma visão distorcida dos instrumentos de resolução de contenciosos. Três anos após a recusa do Acordo de Teerã, o mundo encontra-se mais longe de uma solução do problema nuclear iraniano.

O distanciamento em relação à África era incompreensível, levando em conta as origens históricas do Brasil e a contribuição decisiva daquele continente para a formação da nação brasileira. Um país em que mais da metade de sua população se declara negra ou parda não pode ficar indiferente a esse gigantesco e complexo continente que passa, nos últimos anos, por transformações econômicas e políticas decisivas.

Os governos Lula e Dilma multiplicaram viagens ao continente africano. Lula deslocou-se 13 vezes à África e visitou 39 países – alguns mais de uma vez – em seus oito anos de governo. Até metade de seu mandato, Dilma já esteve em cinco países e tem programadas mais duas novas viagens em 2013. O Itamaraty abriu dezenove novas embaixadas no período, totalizando hoje 37 países nos quais o Brasil tem embaixadores residentes. Em contrapartida, o número de embaixadas de países africanos em Brasília passou de 16 para 33.

O BNDES apoia na África projetos de infraestrutura física e energética, em moldes semelhantes àqueles desenvolvidos na América Latina. Criaram-se mecanismos de cooperação entre entidades, como a EMBRAPA e a “Fundação Oswaldo Cruz” (FIOCRUZ), e governos africanos. Recentemente, a presidenta Dilma viajou para Malabo (Guiné Equatorial), onde participou da “III Cúpula de Chefes de Estado e de Governo América do Sul-África” (ASA), e, posteriormente, para Abuja, na Nigéria, durante a “Rio+20”, em junho de 2012. A chefe do governo brasileiro recebeu mais de uma dezena de governantes africanos, com os quais manteve produtivas conversações. O interesse brasileiro em ampliar suas relações com o Sul do mundo fez com que alguns objetassem seu caráter “terceiro-mundista”.


É certo que, além das iniciativas em relação à América Latina e à África, o Brasil abriu-se de forma intensa para países como a China e a Índia, como Lula já antecipara em seu discurso de posse, em janeiro de 2003.

Essa abertura traduziu-se, entre outras iniciativas, na constituição de um mecanismo de cooperação com a África do Sul e com a Índia (IBAS) que desenvolve original diálogo político e implementa projetos comuns em vários países pobres. Também contribuiu para que o BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul –, inicialmente um acrônimo midiático que apontava para o novo papel econômico e político global ocupado por países emergentes, se transformasse em real e consistente articulação portadora de propostas inovadoras para enfrentar os problemas econômicos globais seriamente agravados a partir da eclosão da crise de 2008.

Merece especial destaque nesse ‘tournant’ da política externa brasileira a aproximação com a China, hoje o principal parceiro comercial do Brasil, com quem mantemos expressivo superávit em nossas trocas. O Brasil tem buscado diversificar – quantitativa e qualitativamente – o fluxo comercial bilateral para não ser apenas mero exportador de produtos primários e importador de manufaturas. Da mesma forma, deixou claro, na visita da presidenta Dilma à China em 2011, que os investimentos daquele país no Brasil devem produzir efetiva transferência de tecnologia, que propicie forte inovação produtiva.

A maior abrangência da política externa foi qualificada por opositores como arcaica virada terceiro-mundista, argumento que não tem consistência histórica, menos ainda teórica.

A expressão “terceiro mundo” prosperou quando havia outros “dois mundos”: o capitalista (o primeiro) e o socialista (o segundo). A partir do encontro dos “não alinhados” (1955), em Bandung, ela apontava para uma alternativa a dois modelos econômicos, sociais e políticos hegemônicos que não davam conta dos problemas da maior parte da humanidade. Estruturado a partir de importantes experiências pós-coloniais (Índia, China, Indonésia, Egito, Gana e Argélia, entre outros países), o “terceiro-mundismo” contava com a presença de grandes líderes políticos (Nehru, Zhou Enlai, Nasser, Tito e Nkrumah, entre outros). Hoje, os países emergentes, muitos dos quais estavam décadas atrás no terceiro mundo, sentam à mesa com as grandes potências para enfrentar os grandes desafios do presente, além de constituírem-se em principais motores do desenvolvimento econômico global.

7. O BRASIL NA ORDEM GLOBAL

Nos últimos dez anos, fortaleceu-se a vocação multilateral da política externa brasileira. O Brasil tem enfatizado a necessidade de profunda reforma das instituições multilaterais, a começar pelas Nações Unidas e seu Conselho de Segurança. O pleito brasileiro de integrar esse conselho na condição de membro-permanente não é uma demanda tacanha de um país que busca maior projeção no mundo. Trata-se, antes, de dar eficácia à ONU e legitimidade a seu Conselho de Segurança, que reflete hoje, em sua composição, uma correlação de forças internacionais ultrapassada, de mais de sessenta anos.

A reforma das instituições globais supõe, igualmente, uma afirmação e/ou a rediscussão de princípios fundamentais para a constituição de uma ordem internacional justa e democrática, como: reafirmar o primado do direito internacional; proteger os direitos humanos sem recorrer a sua politização, que discrimina países pobres ou em desenvolvimento, e ser condescendente para com as graves violações cometidas por grandes potências; enfatizar o princípio de não-intervenção nos assuntos internos dos Estados; construir um mundo de paz, buscando a não proliferação de armas de destruição em massa, mas, também o desarmamento global; e enfatizar que a paz e a democracia no mundo estão indissoluvelmente ligadas ao crescimento econômico, à inclusão social e à proteção dos mais vulneráveis.

O novo mundo, para cuja construção o Brasil quer contribuir cada vez mais, tem de enfrentar os problemas relacionados com a mudança do clima e a preservação do planeta.

Em Copenhague, na “Conferência das Partes” (COP-15) de novembro de 2009, o Brasil apresentou, unilateralmente, a mais avançada proposta de controle da emissão de gases de efeito estufa. A ausência de um compromisso coletivo global impediu que se chegasse a um acordo a respeito, fazendo dessa reunião um fracasso cheio de advertências.

Três anos após, apesar do ceticismo de muitos, foi possível reverter, em parte, o sentimento negativo que dominava as últimas reuniões internacionais sobre o tema. Na “Rio+20”, o maior evento da história das Nações Unidas organizado pelo Brasil, com a participação de mais de cem chefes de Estado e de governo e de cerca 50 mil pessoas – funcionários governamentais, cientistas e representantes da sociedade civil – foi possível relançar iniciativas nesse crucial terreno. O documento aprovado pela Conferência reconfigura o debate, estabelecendo estreita vinculação entre a preservação ambiental, o crescimento econômico e a inclusão social. Esses pressupostos serão fundamentais para a elaboração, até 2015, dos “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”, para a implementação do “Plano Decenal de Programas de Consumo e Produção Sustentáveis” e para o desenvolvimento de “Mecanismo de Facilitação” capaz de promover a transferência e disseminação de tecnologias limpas e ambientalmente responsáveis.

Construir um novo cenário internacional implica atuar em múltiplas frentes. Quando o Brasil integra e comanda a MINUSTAH, no Haiti, ao abrigo das Nações Unidas e do Direito Internacional, ele está, não apenas, participando de uma iniciativa multilateral, mas dando sentido próprio a esse tipo de missão, distinto das intervenções internacionais passadas em países demandantes de estabilização.

Em terrenos muito diversificados, o governo brasileiro tem tido participação intensa na reforma de instituições como o FMI, o Banco Mundial, a FAO ou a Organização Mundial do Comércio. Muitas dessas organizações – especialmente o FMI e o Banco Mundial – ainda refletem um mundo que não existe mais, em função das grandes transformações dos últimos anos.

Sentindo a crise de grande parte do sistema multilateral, as grandes potências construíram soluções ad hoc, como o G7, mais tarde transformado em G8. Esses diretórios, ainda quando ampliados em parte para os países emergentes, como ocorreu em Evian (2003), não foram capazes de criar bases eficazes e, sobretudo, legítimas para fazer face aos complexos problemas colocados pela realidade.

A persistente crise econômica, desencadeada a partir da falência do “Lehman Brothers” em 2008, obrigou uma abordagem coletiva distinta. A transformação de um até então anódino G20 financeiro em uma instância de maior peso, revelou que as grandes potências passavam a reconhecer – ainda que sem tirar todas as consequências – não ser mais possível enfrentar o grave momento que vivia a humanidade com o mesmo grupo de países, sobretudo, porque eles tinham responsabilidade central na catástrofe que se desenhava.

Como é natural, os temas relacionados com a economia global passaram a ocupar lugar crescentemente importante no discurso e na ação externa do governo brasileiro. Nas sucessivas cúpulas do G20, desde a primeira de Washington em 2008 até a de Seul em 2010, quando Lula compareceu pela última vez, acompanhado da presidenta eleita, a voz do Brasil se fez ouvir.

Nas reuniões de Nice e de Los Cabos, Dilma deu continuidade e profundidade a um discurso em que mostrava didaticamente que as estratégias das grandes potências – sobretudo na União Europeia – de sacrificar o crescimento em nome do ajuste fiscal era a velha (e ampliada) receita que fracassara na América Latina nos anos 1980-1990. Insurgiu-se, igualmente, contra as políticas monetárias anunciadas ou já praticadas por países desenvolvidos, que provocavam, por meio de grandes emissões, uma valorização artificial das moedas dos emergentes, criando novas formas de protecionismo. Nesses discursos, a presidenta brasileira reiterou que a superação da crise global, especialmente na Europa, onde apresentava maior gravidade, era essencial ao Brasil e aos emergentes que começavam a sofrer os efeitos de uma recessão global persistente. Não ficou só na retórica, pois o Brasil e os demais países BRICS decidiram aportar recursos ao FMI para que essa instituição acelerasse o socorro a países da União Europeia golpeados pela retração econômica.

A incerteza global permanece nos planos econômico e político. No discurso de abertura do debate geral da “Assembleia Geral das Nações Unidas”, em 21 de setembro de 2011, a presidenta do Brasil foi ao ponto quando disse que “não é por falta de recursos financeiros que os líderes dos países desenvolvidos ainda não encontraram uma solução para a crise [...], [mas sim] por falta de recursos políticos e, algumas vezes, de clareza de ideias”.

A voz altiva da política externa brasileira fazia-se, uma vez mais, ouvir na maior caixa de ressonância mundial. Poucos anos antes, naquele mesmo cenário, diante dos primeiros sinais da crise econômica, Lula havia proclamado ter chegada da hora da política. Era necessário, dizia ele, valer-se de todos os instrumentos políticos, dentre eles os do Estado democrático, para corrigir distorções – de consequências sociais catastróficas – que a irracionalidade dos mercados acarretara.

Lula e Dilma não falavam em teoria. Eles refletiam a experiência brasileira de uma década, faziam a leitura da grande transformação em curso no país e restabeleciam a correlação interno/externo que toda uma diplomacia nunca deve esconder.”

FONTE: escrito por *Marco Aurélio Garcia, assessor especial para assuntos internacionais da Presidência da República. Transcrito no site “Carta Maior”  (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22118). [Imagem do Google e pequenas inserções entre colchetes adicionadas por este blog ‘democracia&política’].

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