Por Silvio Caccia Bava, no jornal francês “Le Monde Diplomatique”
“O passe livre, ou
tarifa zero, é possível. Trata-se de transferir o custo dos serviços públicos
de transporte para a conta da sociedade como um todo, não do usuário;
desmercantilizar esse serviço público, transformá-lo em bem público à disposição
de todos.
O passe livre proposto
pelo Movimento Passe Livre (MPL) é possível, mas implica grandes mudanças no
modelo de financiamento e gestão dos transportes coletivos. Já houve um
momento, no início dos anos 1990, no governo da prefeita Luiza Erundina, em que
o passe livre foi colocado como uma alternativa na cidade de São Paulo, projeto
denominado na época de “Tarifa Zero”. A proposta era que os recursos para tanto
viriam da introdução de um IPTU progressivo. Os imóveis com até 50 metros quadrados
continuariam isentos de impostos, e os imóveis maiores e em zonas mais nobres
da cidade pagariam mais. O projeto esbarrou na objeção da maioria dos
vereadores da Câmara Municipal, ecoando a resistência de nossas elites a
políticas redistributivas. Outras iniciativas deram certo. Agudos, no interior
do estado de São Paulo, pratica a catraca livre há dez anos. Outras duas
cidades do Paraná – Ivaiporã e Pitanga – também adotaram a mesma política. Em
todos esses casos, o financiamento do transporte público é feito com os
recursos dos impostos de todos os contribuintes.
Outra iniciativa do
início dos anos 1990 foi a criação da Taxa
Transporte, à semelhança de um tributo introduzido na região metropolitana
de Paris, que incide sobre as grandes empresas que demandam do serviço público
a mobilização de recursos adicionais para atender à chegada e saída de seus
funcionários em grande número e em um horário determinado. Essa taxa foi
aprovada como lei em Campinas, em um acordo com os empresários de ônibus de que
ela seria destinada unicamente a melhorar a infraestrutura dos transportes
públicos, como a construção de corredores e sinalização. Mas a FIESP se
mobilizou e entrou com uma ação alegando a inconstitucionalidade da taxa,
conseguiu uma liminar suspensiva, e o assunto morreu. Seu argumento é de que “os
empresários não aceitam mais taxas para pagar”.
Com a predominância das
políticas neoliberais, a partir dos anos 1990, as empresas públicas de
transporte, como a CMTC em São Paulo, foram desativadas e abriram espaço para a
exploração comercial desses serviços por empresas privadas. Os governos
municipais perderam a capacidade de intervir nas empresas que não estivessem
cumprindo seus contratos de concessão e abriram mão também de controlar os
custos operacionais. Quanto à capacidade de exercerem a fiscalização desse
serviço, o próprio peso e importância dos empresários do setor inibem uma
atuação pública republicana. A concentração do capital também impactou esse
setor e hoje, dos 14 mil ônibus em circulação na cidade, praticamente a metade
é de apenas dois empresários.
Aqui no Brasil, quem
paga a conta dos transportes coletivos é o usuário, por meio da tarifa. O
governo de São Paulo subsidia 20% desse custo, 70% quem paga é quem toma o
ônibus, os 10% restantes pagam os empresários por meio da concessão do
vale-transporte para seus funcionários.
Essa equação de “quem usa é só quem paga” é perversa
porque exclui um terço dos cidadãos das regiões metropolitanas, que não têm
recursos para arcar com o preço da tarifa. Esses andam a pé, alguns poucos de
bicicleta. Esse modelo consagra a ideia de que o transporte público é uma
mercadoria, não um direito. Só tem acesso a ele quem paga. E as empresas que o
operam têm de ser lucrativas.
Mesmo no caso das
gratuidades (idosos, pessoas com
necessidades especiais, meia tarifa para estudantes), que são uma conquista
social a ser mantida, seus custos, em vez de serem pagos por todos os
contribuintes, são repassados para a tarifa. Quem paga as gratuidades é o mais
pobre, é o usuário do transporte coletivo, não todos os cidadãos.
Se tomarmos como
referência tanto os Estados Unidos quanto os países europeus, a equação é
outra: mais de 70% do custo dos transportes coletivos é pago pelo contribuinte,
e a tarifa cobre, no máximo, 30%.
Existem outros modelos
de financiamento do transporte público, e eles precisam ser considerados na
formulação de uma nova política para a melhoria da mobilidade. Há uma
compreensão crescente de que precisamos evitar que nossas cidades parem, poluídas
e congestionadas por automóveis. A equação é melhorar o transporte público e
inibir a circulação dos automóveis. Dessa lógica, surge a proposta de uma
inversão maciça de recursos na melhoria dos transportes coletivos, combinada
com a taxação sobre a circulação dos automóveis.
Há iniciativas
possíveis com impactos em curto prazo. Em São Paulo, por exemplo, a criação de
180 quilômetros de novos corredores de ônibus com duas faixas por sentido
substituiria 3,7 milhões de viagens diárias por automóvel. Esses corredores
contribuem significativamente para o alívio do tráfego, a elevação da
velocidade de deslocamento e a redução da poluição.
A discussão sobre as
possibilidades de financiamento de uma radical mudança nas políticas de
mobilidade urbana, passando a priorizar o transporte coletivo visando
transformá-lo em um bem comum, explora várias alternativas. Começa por
questionar a distribuição dos recursos públicos no pacto federativo. Hoje, 60%
dos impostos ficam nas mãos do governo federal, 18% vão para os municípios e
22% para os governos estaduais. Na Suécia, por exemplo, a relação é inversa:
70% para os municípios, 30% para o governo central. Os governos locais demandam
uma parcela maior dos recursos.
Outra proposta para
viabilizar essa política é a criação de uma CIDE-Combustíveis municipal, contribuição incidente sobre a
comercialização de gasolina, diesel e álcool etílico combustível. Pode ser
uma fonte de recursos complementar para operar essas mudanças nas políticas de
mobilidade. Outras isenções de impostos podem também colaborar para isso, como
sobre os combustíveis consumidos pelos ônibus, que correspondem hoje a 20% do
custo da tarifa.
Mas o mais intrigante é
como certas fontes de recursos assegurados, que poderiam orientar-se para
financiar novas políticas de mobilidade, são desprezadas. Estima-se que um
terço dos automóveis que circulam em São Paulo esteja com o IPVA atrasado, o
que leva também ao acúmulo de multas sem pagamento. O IPVA é um tributo
dividido meio a meio entre o governo do estado e o município. Quem o recolhe é
o estado, que repassa ao município sua quota-parte. Esses tributos atrasados,
somados a uma estimativa de multas a pagar, podem chegar a mais de R$ 7
bilhões. Por que estado e município não entram em acordo para intensificar a
cobrança desses impostos e os vinculam a um projeto comum de investimentos nos
transportes públicos?
O passe livre, ou
tarifa zero, é possível. Trata-se de transferir o custo dos serviços públicos
de transporte para a conta da sociedade como um todo, não do usuário;
desmercantilizar esse serviço público, transformá-lo em bem público à
disposição de todos.
Daí a dizer que ele vai
ser introduzido, eu não diria. Há muitas forças que se opõem. No entanto, as
últimas semanas me fizeram mudar de opinião, ficar em dúvida. Já não acho mais
impossível que os movimentos de massa imponham a catraca livre. De toda forma,
a construção do welfare
state só foi possível pela pressão das massas, e é o que estamos
vendo nas ruas das principais cidades.”
FONTE: escrito por Silvio Caccia Bava, diretor
e editor-chefe do “Le
Monde Diplomatique Brasil”. Transcrito no portal de Luis Nassif (http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-possibilidade-da-tarifa-zero-no-transporte-publico). [Imagem do Google acrescentada por este blog ‘democracia&política’].
Queria ver o DIPLO ser oferecido de graça nas bancas ... (podem começar dando o exemplo, certo?).
ResponderExcluirTarifa zero não existe: alguém sempre paga. Se for o empresário, vai querer tirar de algum lugar. Aqui já há gratuidades e vales-transporte que alcançam mais de 50% da população, em comparação a outros países como Argentina, Portugal e E.Unidos onde essas gratuidades são excepcionais e as tarifas sociais não são integrais, não isentam totalmente o usuário.
Apelido disponível: Sala Fério,
ResponderExcluirA colcha é curta. Se cobre os pés, descobre a cabeça, e vice versa. Resta escolher.
Maria Tereza