segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O QUE FALTA NA ARGENTINA, NO BRASIL E NA AMÉRICA DO SUL




Bernardo Kliksberg e o que falta na Argentina, no Brasil e em toda a região


"Em meio ao lançamento de sua nova série de documentários, "El otro me importa", o consultor das Nações Unidas Bernardo Kliksberg criticou a "cobiça desenfreada", analisou a origem das novas demandas na América do Sul, falou dos "heróis éticos" como Anilevich e Luther King e afirmou que as soluções para melhorar a situação atual são viáveis.

Por Martín Granovsky, no jornal argentino "Página/12"

Buenos Aires – Bernardo Kliksberg acaba de receber um prêmio, o "Prêmio à Solidariedade", que lhe prestaram ao mesmo tempo o "Cáritas" e a AMIA, a "Associação Mutual Israelita Argentina", junto a dezenas de universidades e organizações da sociedade civil. De passagem por Buenos Aires para assistir os primeiros capítulos de sua nova série de documentários pelo canal "Encuentro", "El otro me importa", o economista e colaborador do "Página/12" Bernardo Kliksberg dialogou conosco.

"O que falta é muito", disse sobre a situação atual na América do Sul. "Não é que 10 anos seriam o bastante. Estamos na região mais desigual de todo o planeta Terra. Como era há 10 anos e continua sendo. Há 180 milhões de pobres na América Latina. Os progressos são valiosíssimos mas não há com que se iludir porque a meta estava aí ao lado e era fácil de conseguir. Por isso, as reivindicações escutadas são realizadas em função do muito que falta. Quando há mais participação, mais qualificação e demandas básicas satisfeitas, se pode esperar um nível superior de demanda. Isso é positivo. E para cumprir com as demandas que faltam são necessárias reformas ainda mais profundas".

--De que maneira?


Por agora, sem descuidar o 'timing': como articular essa demanda e transformá-la em um maior apoio para o aprofundamento. Sobretudo porque as demandas dos setores mais marginalizados são legítimas e, por definição, devem ser amplamente consideradas.

--"Aprofundamento" é uma palavra que, pelo menos na política argentina, circula muito. A ponto de cada um não ter definição alguma ou ter uma definição própria. Qual é a sua? 


Continuar reduzindo a deserção na escola secundária. Estender a cobertura universal de água potável e esgotos. Gerar formalização em amplos setores da economia informal. Esses três objetivos concretos são parte da agenda, na qual ainda falta muito e há que se apressar. Ao mesmo tempo é necessário intensificar a luta pela compreensão da realidade, que também será decisiva. Essa luta deve ser universalizada.

--Situá-la no mundo? 


Sim. É uma luta em que as possibilidades aumentam quando se colocam os temas no grande enfrentamento planetário, o do 1% contra o 99%. Ao se colocar os temas nacionais nesse marco global estaremos mais próximos da realidade. 99% da população expressa suas demandas em nome de algo em comum, que são os novos bens: as tecnologias médicas que prolongam a esperança de vida, a educação... Tomemos a nacionalização da YPF. Bom, isso forma parte de uma luta planetária maior. É o enfrentamento entre a cobiça desenfreada e as tendências à inclusão e a solidariedade.

--Como define a cobiça?

Nos Estados Unidos, houve recentemente uma sentença inédita. Um jurado de Nova York condenou um ex-analista do "Goldman Sachs". Os juízes estavam impressionados pelo espetáculo do que em inglês se chama "greed" e é muito difícil de traduzir.

--Qual seria a tradução aproximada?

A cobiça avarenta. Rompe as regras básicas de jogo do sistema. Enquanto essa ruptura é percebida aparecem sentenças, como a do jurado de Nova York. Significa que a sociedade entende que as doses atuais de 'greed' desequilibram o sistema. Muitos jovens são cada vez mais conscientes desse desequilíbrio, e não falo só dos Estados Unidos.

--Se pode falar dos jovens como sujeito?

Em minha opinião sim, ainda que sem absolutizar nada. Claro que é marcante o fato de viver em uma geração determinada... Quando éramos muito jovens, só acreditávamos nas classes sociais como marca. Agora sabemos que as classes não definem toda a história. Não explicam, por exemplo, o Maio Francês de 68, ou então que nos Estados Unidos setores que deveriam ter votado pelo 'Tea Party' decidiram a eleição de Barack Obama. Então, viver em um espaço histórico determinado e ter heróis e anti-heróis comuns incide. Mas dito isso prefiro desagregar também o conceito de juventude. Há juventudes e juventudes. Se não, quando se mete tudo no mesmo saco surgem os mitos. Digo com conhecimento real do tema. Nos últimos três anos, somente, formei dois mil jovens nos conceitos mais avançadas do planeta.


[OBS: não consegui retirar deste artigo a imagem reduzida (de outra postagem, que se intrometeu aqui), da carta manuscrita de Getúlio Vargas. Aparece com o Internet Explorer. Com o Google Chrome ela não aparece]. 

--Qual seria o mito? 

Que todos os jovens são superficiais, retrógrados, presa fácil do capitalismo selvagem e de seus meios de comunicação. E não é assim. A tendência mais geral encontrada é, antes de mais nada, aos jovens pobres tentando sobreviver e procurando encontrar algum lugar por onde entrar no sistema. No mundo, 20% dos jovens se encontra fora do mercado de trabalho e fora do sistema educativo. Estão desesperados por subsistir. E depois achamos os jovens da nova classe média, por exemplo, aqueles que Lula tirou da pobreza, os que deixaram a pobreza na Argentina, ou no Equador, ou no Uruguai. Dizer que os jovens pobres só repetem alguns valores de classe média é fazer uma interpretação grosseira. Estão melhores na busca.

--Por que procuram algo? Ou melhor: por que procuram algo diferente?

Porque estão desencantados com as ideologias convencionais, que tiveram fracassos estrepitosos. O comunismo não lhes deu nada e não lhes dá nada o capitalismo selvagemente consumista. É uma busca, as vezes torturante, de heróis verdadeiros e por causas onde não serão manipulados. Uma grande ideia que se transformou em uma organização autenticamente jovem foi ‘Un techo’. Sou seu assessor principal. Têm um objetivo, nada mais. Consiste em sair os finais de semana para construir moradias para as pessoas em situação de pobreza extrema.

--Quantos são na América Latina?

Muitos: 120 milhões sobre 650 milhões de habitantes. Os jovens de ‘Un techo’ constroem nos fins de semana uma casa de 40 metros quadrados, com piso de madeira e com teto de madeira. Há poucos dias, no norte argentino um deles me contou que quando terminaram a casa, a mãe que viveria ali se pôs a chorar. "Fizemos algo mal?", perguntou ele. E ela lhe respondeu: "Não, é que jamais em minha vida tive uma janela". Uma janela! ‘Un techo’ já está assentado em 19 países depois de seu nascimento no Chile, com inspiração de um sacerdote. São 400 mil voluntários. Na Argentina, a organização se converteu em um furor inclusive para jovens das elites, que vão ser voluntários para construir as casas. Não estão resolvendo as causas estruturais da pobreza, claro, mas sim, operam sobre uma das manifestações mais cruas e desalmadas, que é deixar boa parte da população na intempérie total. Isto teve uma repercussão inédita. Ninguém supunha que iria passar. Que iriam construir mais de 100 mil moradias como uma verdadeira rede de proteção social.

--E por que aconteceu?

Porque os jovens, quando encontram uma causa que é válida e que lhes dá rapidamente resposta, aí estão. Estamos falando de menores de 30 anos. Na Guatemala, um dos líderes, de 26 anos, me diz: "Minha família me perguntava quanto me pagavam. Me custou muito explicar que o pagamento é encontrar sentido para minha vida". Ou seja: os que não têm trabalho o procuram e também perseguem ideais. E os que têm trabalho não deixam de procurar ideais. ‘Un techo’ é um ideal micro. Quando aparece um ideal micro os jovens se sentem atraídos. Isto ilustra que talvez também os ideais macro possam atraí-los. Tomara, porque só a política pública pode resolver a questão da moradia, por exemplo, e a política pública necessita.

--Como se combinam os ideais micro e as políticas públicas para evitar o onguismo do Estado e torna-lo eficaz?

Em meu papel de assessor de ‘Un techo’, teço alianças entre os jovens com ideais e as políticas públicas. Os dois setores não podem permanecer fechados. A política pública, a ação coletiva organizada, é a única que resolve o tema da pobreza, mas a sociedade civil pode lhe injetar forças. Quando os jovens encontram a nível micro, se metem de cabeça. Se conseguirmos atraí-los para propostas macro com concreções micro, vamos tê-los trabalhando.

--Essa seria a combinação desejável?

Há muitos movimentos na mesma direção em nível internacional. O traço comum consiste em aprofundar os modelos de mudança. Há demandas articuladas e demandas não articuladas. Mas não nos enganemos: tudo será insatisfatório por definição, frente à brecha enorme presente nas sociedades. Aumentar o transporte público no Brasil, um país onde a presidenta Dilma Rousseff começou sua gestão montando um programa gigantesco para terminar com a pobreza extrema de 17 milhões de pessoas indica quão profunda é essa brecha. Agrava-se a situação do transporte, por exemplo, como acaba de acontecer, e se abrem dilemas sobre as mudanças a empreender para solucionar velhas e novas demandas. Ainda há uma brecha entre o mínimo que o modelo tem que produzir e o grau de progresso alcançado. O nível de avanços na América Latina é altíssimo, mas continuamos tendo 180 milhões de pobres e insuficiências severas de água potável. Haverá novos movimentos.

--Lhe preocupa ou lhe alegra a possibilidade de que hajam novos movimentos?


São um sinal de saúde. Dizem que veremos ou vemos? mais rápido e melhor. A médio prazo está claro que o governo do Brasil está colhendo a demanda coletiva. E também reparemos em um detalhe muito importante: nas manifestações no Brasil, ninguém pediu mais liberdade de mercado. Não houve uma consigna neoliberal. O mesmo no Chile, que para mim foi um fenômeno muito importante.

--Qual é o dado crucial dos protestos chilenos?

A "rebelião dos pinguins", como se chama o protesto iniciado pelos estudantes secundários, não é uma rebelião de um dia. Levamos dois anos se levarmos em conta apenas a última etapa. E conseguiram manter atenta toda a sociedade chilena. Reuniram mais de 150 mil pessoas. Derrubaram três ministros de educação neoliberais. Conseguiram convocar o apoio majoritário. Também criaram novas maneiras de enfrentar o poder, porque são imaginativos e conseguem esquivar-se inclusive da legislação repressiva. Michelle Bachelet, que será candidata à presidência, colheu a mensagem. Em sua plataforma eleitoral, o tema central é educação gratuita e de qualidade para todos. O ditador Augusto Pinochet montou um projeto de longo prazo: que só as elites pudessem estudar com qualidade. E funcionou. Só há educação de qualidade para as elites. A rebelião encabeçada pelos "pinguins" é estrutural, contra o modelo de Pinochet. E puramente jovem. No Chile, a rebelião é totalmente interclassista. Há líderes da Universidade Católica e líderes dos setores populares. Todos participaram através de seus jovens. E não é uma rebelião só com reivindicações setoriais. Os jovens do Chile não pedem que o Estado melhore só sua própria educação, mas que dê possibilidade de educação real a todo o povo chileno. Uma das consignas, já muito repetida, tem significado profundo: "Um povo educado jamais será explorado". Pinochet acreditava na exploração para a eternidade.

Voltando ao Brasil, os protestos também são interclassistas. Também saíram jovens em Nova York e na Califórnia para protestar contra a decisão que declarou não culpado pelo assassinato do jovem afro-norte-americano Trayvon Martin o vigilante privado George Zimmermam. Os jovens estão procurando ideais genuínos. Vi como trabalhavam os jovens de uma produtora, "Mulata", em minha primeira série de televisão, "Escândalos éticos". Quatro países latino-americanos decidiram replicá-la por completo: Bolívia, Peru, Uruguai e Costa Rica. Chaco, na Argentina, fará o mesmo. Procurei dados e saídas. Os jovens, todos menores de 30, o produziram documentalmente. Agrada-lhes documentação atual com enorme critério cinematográfico. Calculam que tiveram 100 mil doações de material, começando pela ONU e todas suas agências, ONGs e organizações comunitárias de todo o mundo. A qualidade documental apaixona os espectadores? jovens. Os conteúdos estão dirigidos à sede de ideais dos jovens. Porque sim, há ideais e propostas. Os heróis éticos do gênero humano são um dos temas centrais são. Não são os que assassinam em série, com credencial ou sem, no menor tempo possível, sem perguntar quanto a origem social dos delinquentes, ou os heróis das celebridades superficiais. E agreguemos na análise os 400 mais ricos do planeta. Não costuma reparar-se que esses 400 tem o maior percentual do Produto Bruto da história do gênero humano. A isso se referiu o papa Francisco em Lampedusa e no Brasil. Por essa desigualdade, morre no mundo uma criança a cada 15 segundos devido à ingestão de água contaminada. 


Meu humilde programa é possível, porque há um canal como "Encuentro" e canais públicos em todos os países interessados no que eu chamo "heróis alternativos". Desfilam uma e outra vez pessoas como Nelson Mandela, Rosa Parks e Martin Luther King. Rosa Parks, no Alabama, lhe pediram que se levantasse e desse o assento a um branco. Não o fez, o que foi um marco na luta pelos direitos civis. Meus heróis são os que deram a vida na luta contra o fascismo e o nazismo, que voltaram agora em suas variantes neo da Grécia, da França, da Itália. Há quem diga na França que Hitler não terminou a tarefa contra os ciganos, não? Meu herói é Mordejai Anilevich, que com seus 500 jovens em Varsóvia combateu o exército nazista em nome da dignidade. Meus heróis são Anne Frank, com sua frase simbólica: "Que maravilhoso é saber que ninguém precisa esperar sequer por um minuto antes de começar a melhorar esse mundo." É o chamado de uma menina de 15 anos vivendo em meio à obscuridade e a ponto de ser assassinada. Outro herói é Muhamad Yunus, que criou um banco que dá de comer a 500 milhões de pessoas. O mundo tem heróis éticos, como se vê. Pensar neles e no que fizeram ajuda a combater problemas atuais como que as pessoas morrem por ingerir água contaminada (1.800.000 crianças por ano) e há 2.800 milhões que não têm um vaso sanitário e por isso adoecem. As duas coisas juntas criam as doenças hídricas, como as chama a "Organização Mundial da Saúde": hepatite A, dengue, malária. Para não falar dos assassinatos massivos todos os dias. O segundo tema é a fome, que afeta 1200 milhões. Todos os dias, morrem 10 mil crianças. O terceiro tema de escândalo é a falta de trabalho, porque o capitalismo selvagem deixou de gerá-lo. A Itália tem hoje 40% de desemprego juvenil. Na nova série de documentários que acaba de começar, "El otro me importa", fixamos a atenção em algo: posso mudar o mundo se algo me importa além da minha família e meu patrimônio. Há muitas formas de militância.

--Além da militância política?


Sim. A militância política articula os esforços coletivos e serve para melhorar a qualidade da política e para dignificá-la. Outra é a militância na sociedade civil. Ou o voluntariado. Ou a responsabilidade social das empresas. Em geral, se trata de que cada um, todos os dias, faça o que está ao seu alcance para mostrar a consigna mais velha do gênero humano. No momento em que Caim matou Abel e a divindade lhe perguntou por que o assassinou, a resposta foi: "É que, por acaso, eu sou o guardião do meu irmão?". Uma leitura superficial diria que é o primeiro álibi da história. Há uma leitura mais profunda, a de Emmanuel Levinas: para Caim o outro não existia ontologicamente. Era o egoísmo absoluto. Só existia aquilo que fosse bom para ele. A inexistência ontológica se dá também no capitalismo selvagem com o 1% que tem 99% da riqueza. O ponto, desde o princípio do gênero humano, é se são os Caim ou são os Abel. Se assumimos que o outro me importa deveremos identificar-nos com Moisés (preocupar-nos e cuidar do outro) e com Jesus (ama a teu próximo como a ti mesmo). Se o outro me importa, aí está a democracia, conseguida por lutas sangrentas que agora nos permite lutar pela educação e pela dignidade.


--A nova série de documentários falará, por exemplo, da Noruega. 

Tomo episódios históricos recentes. A forma como a Noruega eliminou a pobreza, ou o modo como a Suécia eliminou a discriminação de gênero. Ou como a Costa Rica conseguiu ser um dos três países mais amigos do meio ambiente no planeta. Ou como a Bolívia passou de uma das taxas mais altas de analfabetismo de América Latina a quase zero. Ou como a Argentina conseguiu criar um programa social que incluiu crianças pobres da Argentina e mudou sua qualidade de vida. Ou como o Brasil conseguiu tirar 40 milhões da pobreza. São episódios demonstrativos de que o outro me importa e de que uma solução é viável. Que é possível.

Sobre a AUH, que é um dos maiores programas sociais, as vezes escuto vozes que dizem: "Isso é uma jogada política". Minha resposta diz que é uma jogada ética. Significa melhorar a vida de três milhões de pessoas. Os heróis éticos do passado aparecem nas ações do presente. Mordejai Anilevich é um herói do Uruguai de hoje. Haverá uma escola que leve seu nome. Martim Luther King é cada dia mais atual. Depois do assassinato cometido por Zimmermam, ainda mais. Os heróis éticos do gênero humano têm muito para dizer. Temos que conseguir que tenham uma projeção midiática forte e que formem parte do sistema educativo."


 FONTE: escrito por Martín Granovsky, no jornal argentino "Página/12". Transcrito no site "Carta Maior"   (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22562).

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