sábado, 21 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE UMA TARDE DE INSULTOS A UMA MULHER




O duradouro espírito da coisa

Por Paulo Moreira Leite, diretor da sucursal da revista ISTOÉ em Brasília

"Lembranças de uma tarde de insultos à uma mulher, no Pacaembu, num dia de Santos x Grêmio. Era 1964

É bom tomar cuidado com alguns bonzinhos.

Estou falando daqueles que, depois do insulto a Dilma Rousseff, decidiram lembrar os palavrões que costumam ser ouvidos nos campos de futebol – uma tradição brasileira, que tornou nossos estádios, durante décadas, um universo patriarcal masculino, onde as mulheres só entravam para ser humilhadas e ofendidas.

A sugestão é que tudo é "inocente, inofensivo, sem significado maior". Procura-se até apagar qualquer responsabilidade e toda demonstração de falta de respeito pela avaliação, marqueteira, de que a presidente acabou "saindo como vítima do episódio." Saindo como vítima?

Lembro de uma tarde de domingo, em janeiro de 1964, no Pacaembu quando fui assistir a um jogo Santos e Grêmio com meu pai. O jogo entrou para história porque, naquele dia, Gilmar foi expulso e Pelé terminou a partida com a camisa negra de goleiro. O Santos venceu por 4 a 3 mas não dá para esquecer aquele jogo, até por causa de um episódio ocorrido antes de a partida começar.

Quando um cidadão apareceu nas arquibancadas acompanhado de uma mulher bonita, de cabelos longos, calça comprida branca, bem justa, o casal foi vaiado e insultado. No máximo da agressão, alguns torcedores atiravam laranjas sobre ela. Humilhados, os dois foram embora. Alguns torcedores riram, divertidos com a cena. Outros se levantavam para berrar mais palavrões. Meu pai, sempre pronto a ensinar os filhos, ficou indignado.

Em junho de 2014, os bonzinhos – um pouco mais espertos – dedicam-se a nivelar por baixo o debate sobre o insulto a Dilma. Perguntam: como se pode reclamar contra um insulto, num país onde os políticos são xingados todos os dias, por todo mundo? E o discurso do ódio, da raiva?

Vamos combinar.

Ódio e raiva – que estão presentes nas melhores famílias -- são sentimentos, que as crianças aprendem a controlar em casa. Mas estão presentes na vida de todos os indivíduos da mesma forma que o afeto e o desejo.

O insulto é outra coisa.

É uma demonstração de poder. É um decalque social. Você insulta uma pessoa para poder diminuir sua imagem, atingir sua dignidade, definir espaços – como se mostrou, com palavrões e bagaços de laranja, àquela atrevida mulher de calças brancas.

A função do insulto é silenciar, não dar direito de defesa. Desumanizar. Apontar quem não tem os mesmos direitos que os demais – e comemorar essa posição de superioridade. Os insultos podem ser perversos, mas deixam seus autores risonhos, felizes em sua maldade. Em sua mente, estão dando uma lição às suas vítimas.

Imagine o que eram os direitos da mulher, há 50 anos. Não podia nem ir a um jogo de futebol. Nem precisamos dizer o que faz a mais recente mulher insultada por uma parcela dos estádios...

Os insultos se tornaram um instrumento político em nossa época a partir do nazismo. Leonardo Boff menciona que os nazistas costumavam insultar autoridades, o que não era de estranhar. Em seu esforço cotidiano para construir um poder totalitário, o nazismo dedicava-se a atacar os símbolos do poder democrático, o que implicava em desmoralizar seus representantes. Era uma forma de garantir a seus aliados que nada poderia detê-los – nem rituais desprezíveis da legalidade política. E era uma forma de intimidar adversários.

Nessa marcha que conduziu a uma das mais vergonhosas tiranias do século XX, pessoas que se julgavam da "elite" assumiam atitudes e posturas que costumavam condenar, copiando comportamento que elas próprias consideravam típico da “ralé”, como observa Hanna Arendt. Espancavam, batiam, xingavam. Não é que os nervos estivessem a flor da pele. Isso aconteceu antes e depois. Queriam definir novos padrões de convívio social – e direitos políticos – a partir de suas noções de hierarquia e desigualdade. Em seu apogeu, as hordas nazistas quebravam vidraças, espancavam e humilhavam seus inimigos. Impediam, pela força e também pela ameaça, que saíssem a rua. Quando Hitler invadiu Viena, integrantes da comunidade judaica foram arrancados de suas casas e forçados a usar escovas de dentes para limpar as calçadas da capital austríaca. Podemos até imaginar o que aqueles homens e mulheres ouviam, enquanto eram obrigados a se curvar – o serviço era feito de joelhos. Podemos ouvir as risadas dos agressores, as ofensas múltiplas – como eu ouvia, numa situação bem menos horrorosa, mas também lamentável, no Pacaembu daquele Santos x Grêmio.

Em 2011, integrantes da comunidade judaica de Higienópolis, bairro vizinho ao Pacaembu, se mobilizaram contra a abertura de uma estação de metrô na região. Discordo da opinião deles. Mas acho que todos têm o legítimo direito de manifestar-se. Um suposto humorista/jornalista, no entanto, permitiu-se uma ironia macabra e racista, dizendo:

Entendo os velhos de Higienópolis temerem metrô. A última vez que chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz.

Não espanta que, três anos depois, no dia do insulto a Dilma, tenha sido um dos mais ativos para divulgar. É um espírito, entende?

Só no fim deste texto me dei conta que a chuva de laranjas e ofensas, naquela tarde no Pacaembu, ocorreu num país que, apenas três meses depois, assistiria ao golpe de 1964.

Foi em São Paulo, que era sede da conspiração civil contra Jango. Entende o espírito da coisa?"


FONTE: escrito por Paulo Moreira Leite, diretor da sucursal da revista ISTOÉ em Brasília. É autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa". (http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/colunista/48_PAULO+MOREIRA+LEITE).

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