Mitos Econômicos Brasileiros #9: “O Brasil vive um período de estagflação”
Do blog "Novas Cartas Persas"
Palavra da moda na mídia especializada para retratar situação da economia hoje não resiste aos fatos e à análise histórica
Um colunista da "Folha" “explicou”, em sua “análise” que estagflação é a “combinação de economia estagnada, ou em desaceleração, com inflação alta, ou em aceleração”. Simplificou tanto que errou a definição (erro recorrente, aliás, entre os “setoristas da estagflação”).
Sim, a palavra, emprestada do inglês, é uma fusão de estagnação e inflação. Mas, ao contrário do senso comum, o sentido de “estagnação” não se refere apenas a crescimento do PIB, mas refere-se também (e sobretudo) ao desemprego em massa. Assim, para tentar aproveitar a explicação do arauto do apocalipse, a definição de estagflação seria algo como “a combinação de economia estagnada, ou em desaceleração, com inflação alta, ou em aceleração e taxa de desemprego alta ou em elevação”.
Por que a minha insistência com a questão do emprego? Além de ser parte fundamental da definição internacionalmente aceita, tem uma razão de ser. O paradoxo fundamental é a coexistência de demanda interna baixa e inflação alta – e demanda baixa significa desemprego (não por acaso, o dilema da curva de Phillips é desemprego baixo vs inflação baixa). Vamos explicar como funciona, a grosso modo, os grandes dilemas do gestor de política econômica:
A lógica é simples, em uma situação normal de ciclo de baixo crescimento, empresas não vendem e têm que demitir; há aumento do desemprego e redução da demanda total (menos pessoas comprando, para falar em bom português). Com menos pessoas comprando, os preços tendem a cair, ou pelo menos não aumentam (sob pena de vendedores terem ainda mais dificuldade para acharem compradores), e a inflação cai. No fim, há recessão, desemprego, mas a inflação é baixa. O que o gestor de política econômica tem a fazer nessa situação? Um conjunto de medidas para estimular o consumo e o emprego, gerando assim crescimento e a roda volta girar (políticas anticíclicas).
Num quadro oposto, em que o desemprego é baixo (ou moderado) e o crescimento é alto (ou moderado), um problema pode ser uma taxa de inflação elevada (ou até mesmo, hiperinflação). Aqui, pessoas estão empregadas e seguem comprando, e a economia cresce, mas a inflação prejudica tanto as bases do crescimento, quanto o poder de compra dos assalariados. Aqui, o remédio também é o oposto: o esforço tem que ser o de “enxugar” o dinheiro da economia, isto é, cortar gasto público, aumentar juros (para diminuir o consumo e aumentar o dinheiro poupado) e diminuir o dinheiro em circulação. A inflação cai, o crescimento e o emprego se estabilizam (assim como o poder de compra dos assalariados) e a roda volta a girar.
Mas, numa situação de baixo crescimento, alto desemprego e inflação elevada, as soluções usuais (expansionismo/constracionista) apresentadas para consertar um problema (digamos, crescimento e emprego) pioram o outro (a inflação), e vice-versa. Como resultado, na prática, nenhum dos problemas é resolvido e a situação piora.
Por exemplo: num caso de estagflação, o gestor da política econômica pode decidir que é hora de afrouxar o gasto público (expansionismo fiscal) sem critério e aumentar o crédito e dinheiro circulante disponível para os agentes econômicos (expansionismo monetário, via, por exemplo, redução da taxa de juros, redução do depósito compulsório e uso de bancos públicos para manter ou aumentar o crédito ao consumidor/produtor).
Só que em uma situação de estagflação, a inflação, por algum motivo, não está baixa, mas sim elevada, e um conjunto de medidas anticíclicas aumentaria a quantidade de crédito e de demanda, piorando o quadro de inflação, o que, por sua vez, mina as bases do crescimento. Da mesma forma, sufocar o crédito (aumentar juros) e a demanda (aumentar o desemprego), pode aprofundar o quadro recessivo – sem, necessariamente, diminuir a inflação (por exemplo, se houver uma fuga de dólares e desvalorização da moeda local).
Certo, então a questão é: estamos ou não nessa situação?
Uma vez tendo claro o conceito, podemos verificar os dados e a história. Comecemos com a história.
O termo, como foi citado, foi cunhado para explicar a situação dos EUA, entre 1972 e 1975. O que houve nesse período? Em outubro de 1973, aconteceu o primeiro choque do petróleo: nesse caso, uma forte redução (choque) de oferta dessa mercadoria fundamental e de difícil substituição para as economias modernas. O preço subiu e, num contexto de mercado aquecido (a inflação estava em aceleração), se espalhou por toda a economia, gerando inflação e aumento de custos para as empresas, afetando o crescimento. À elevação dos preços, se juntaram a recessão e elevação do emprego (ampliar os gráficos):
entre o 1º trimestre de 1974 e o 1º trimestre de 1975, o PIB anualizado dos EUA ficou negativo em 4 de 5 trimestres.
Ao mesmo tempo, a taxa de desemprego foi de 4,9%, em dezembro de 1973, para 8,6% em março de 1975
E a taxa de inflação acumulada de 12 meses foi de 5,7% em agosto de 1973, acelerou de maneira consistente até chegar em 12,3% em janeiro de 1975
Senhoras e senhores, ISSO é estagflação.
O outro período da história americana em que isso aconteceu foi entre o fim de 1981 e o início de 1983 (ampliar os gráficos):
entre o 4º trimestre de 1981 e o 4º trimestre de 1982, o PIB anualizado dos EUA ficou negativo em 3 de 5 trimestres e muito baixo (0,4) em um deles.
Ao mesmo tempo, a taxa de desemprego que era elevada (7,9%), em outubro de 1981, acelerou de maneira consistente até chegar 10,8% em março de 1982
No período, a taxa de inflação acumulada de 12 meses se manteve em patamar mais elevado que no período da estagflação de 1973-1975, quase sempre em dois dígitos, mesmo com recessão e desemprego em alta (configurando-se, portanto, em estagflação do mesmo modo), embora não estivesse em aceleração (de fato, estava em declínio)
Tá, mas e o Brasil com isso? Todos os analistas estão falando de estagflação aqui. É o caso?
Vou deixar os dados responderem por mim, fazendo análise semelhante.
Entre o 1º trimestre de 2009 e o 1º trimestre de 2014, houve apenas dois trimestres que registraram PIB negativo, em valores anualizados: 3º e 4º trimestres de 2009 (e além desse, apenas no 3º trimestre de 2012 o PIB anualizado ficou abaixo de 1%). Em 2009, a inflação se manteve baixa e em desaceleração, comportamento “esperado” em um contexto de desaquecimento da economia. Por outro lado, o desemprego seguiu em queda. Resumo da ópera, nos últimos cinco anos, não há nenhuma evidência que sustente afirmações ou sugestões de que o Brasil estivesse ou esteja enfrentando agora uma situação de estagflação.
O quadro que existe no momento é outro (ampliar os gráficos):
Tá, mas e o Brasil com isso? Todos os analistas estão falando de estagflação aqui. É o caso?
Vou deixar os dados responderem por mim, fazendo análise semelhante.
Entre o 1º trimestre de 2009 e o 1º trimestre de 2014, houve apenas dois trimestres que registraram PIB negativo, em valores anualizados: 3º e 4º trimestres de 2009 (e além desse, apenas no 3º trimestre de 2012 o PIB anualizado ficou abaixo de 1%). Em 2009, a inflação se manteve baixa e em desaceleração, comportamento “esperado” em um contexto de desaquecimento da economia. Por outro lado, o desemprego seguiu em queda. Resumo da ópera, nos últimos cinco anos, não há nenhuma evidência que sustente afirmações ou sugestões de que o Brasil estivesse ou esteja enfrentando agora uma situação de estagflação.
O quadro que existe no momento é outro (ampliar os gráficos):
apesar de o crescimento do PIB estar em um patamar baixo, não foram registrados vários trimestres seguidos com PIB anualizado próximo a zero ou inferior (como seria uma situação de estagnação do PIB);
O desemprego não apenas segue baixo, como também segue em declínio a cada mês na comparação anual, e atinge patamares recordes negativos, mesmo se o saldo de empregos formais esteja caindo (o que importa é a desocupação).
Quanto aos preços, vê-se que a demanda está aquecida, mas não está acelerando. A inflação está em patamar acima da meta, mas está estável, considerando a trajetória dos preços (no acumulado de 12 meses), nos últimos 5 anos, quase sempre dentro da banda e sempre abaixo de 7,5%.
O país não vive, portanto, “o dilema clássico das épocas de estagflação”: nem a demanda está reprimida (desemprego), nem os preços estão fora de controle (inflação alta em aceleração). Seguir uma política fiscal e/ou monetária restritiva agora é inócua para conter alta dos preços (meu palpite é que são fatores climáticos conjunturais que afetaram os preços: em 2013, o vilão foram os alimentos; em 2014, a energia). Uma política fiscal e/ou expansionista pura e simples tampouco resolveria o baixo crescimento: aí sim, poderia desencadear um processo inflacionário de demanda.
O remédio está fora dessas receitas usuais binárias: está em aumentar o investimento e, tendo em vista que o empresário tende a adotar posturas pro-cíclicas (investe se há crescimento, deixa de investir se não há crescimento, reforçando a tendência do momento), cabe ao Estado induzir e liderar a retomada desse investimento.
Outro passo importante é reforçar o pacto entre industriais, trabalhadores e governos em outras bases: na base justamente do compromisso em investimento e inovação. Com a retomada do investimento, o aumento da produção é retomado, e do crescimento dali gerado não resultaria grande pressão inflacionária. O nó é desfeito com uma demanda interna já bem situada na ponta para absorver a produção, dada a situação de baixo desemprego. O país entraria num novo ciclo de aumento do PIB, e as soluções usuais de política fiscal e monetária passam a ter mais eficácia. Não se trata de um dilema (aquecer ou desaquecer a demanda). O problema é um só: investimento.
Certo, então, como disse o presidente do Banco Central, estamos “bem longe” de uma situação de estagflação hoje. Mas, algum dia, já enfrentamos tal quadro ultimamente?
Nos últimos 20 anos, o único período que apresentou baixo crescimento, elevação do desemprego e elevação da inflação aconteceu entre o 4º trimestre de 2001 e o 1º 2004, no ocaso do governo FHC/PSDB-DEM e no primeiro ano do governo Lula (ampliar os gráficos).
Apesar de, tecnicamente não ter registrado variação negativa no acumulado, o PIB trimestral anualizado [nos anos FHC/PSDB] flertou várias vezes com a recessão (isso é, variação negativa do PIB em vários trimestres seguidos): ficou abaixo de 1% em 5 desses 10 trimestres, caracterizando, assim, um quadro de estagnação econômica. Em 4 trimestres, a variação ficou entre 1% e 2%, e apenas no 1º trimestre de 2003, o crescimento anualizado foi acima de 2% (de 2,5%).
Ao mesmo tempo, a taxa oficial de desemprego [nos anos FHC/PSDB] se manteve em níveis elevados, sempre acima dos dois dígitos. O desemprego medido pelo DIEESE ultrapassava 20% em algumas regiões metropolitanas.
E a inflação [nos anos FHC/PSDB] não só estava em patamar elevado, como também estava acelerando. Se hoje a mídia entra em pânico quando a inflação anualizada ultrapassa o limite em 0,02 ponto, como em junho de 2014, e chega a 6,52%, o pessoal teria um ataque cardíaco: o IPCA em agosto de 2012 era de 7,46%. Ruim? Não, era só o começo: a inflação fecharia o ano em 12,53%. O IPCA acumulado de 12 meses chegaria ao pico de 17,24% em maio de 2003, antes de baixar a partir de então até chegar a 5,24% em abril de 2004.
Eis ai, senhoras e senhores: o Brasil não vive hoje em situação de “estagflação” e, se em algum período nos últimos anos o país viveu uma “estagflação” foi entre 2001 e 2003, e não agora. Na época, nenhum grande “analista” de jornal disse que o Brasil vivia “o dilema clássico de épocas de estagflação”.
FONTE: do blog "Novas Cartas Persas" (http://novascartaspersas.wordpress.com/2014/08/12/mitos-economicos-brasileiros-9-o-brasil-vive-um-periodo-de-estagflacao/).[Negritos e trechos entre colchetes acrescentados por este blog 'democracia&política']
E agora, José?
ResponderExcluirAo Maurício Galvane Paladini,
ResponderExcluirA análise do blog "Novas Cartas Persas" foi muito bem feita com os dados da época. Ninguém, nem o tal José, imaginava a posterior queda de mais de 7% no crescimento da China (de mais de 14% para menos de 7%), nem o longo 3º turno no Brasil com a busca desesperada da direita brasileira de voltar logo ao poder por qualquer meio, sem esperar novas eleições, com a tática de promover (com integral apoio da mídia) o caos político, econômico e social para justificar e facilitar soluções drásticas heterodoxas para a derrubada do governo eleito. Portanto, não critiquemos o "Novas Cartas Persas".
Maria Tereza