sexta-feira, 24 de outubro de 2014

ENTREVISTA DO PRESIDENTE DO BNDES AO JORNAL "VALOR"


Leonardo Rodrigues/Valor - Coutinho: "Não há favoritismo. O banco buscou reforçar setores em que o país tem vantagens comparativas importantes"

Coutinho fala ao "Valor" sobre atuação do BNDES e momento atual

Do Jornal GGN


"Em momento de intensos debates eleitorais, a atuação do BNDES passa a ser um tema recorrente. E se é recorrente é preciso informações adicionais para que o leitor médio possa entender sua função e alcance atuais. 

Luciano Coutinho, presidente do BNDES, deu longa entrevista ao jornal "Valor Econômico", em que explica a função, a participação e o papel do banco nos últimos anos e desde sua fundação, há 50 deles. 

Leia a entrevista a seguir: 

"Cabe ao governo eleito pelo povo fixar as prioridades"

Por Cristiano Romero | De São Paulo

Em quase oito anos de presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciano Coutinho liderou a instituição na sua fase de maior expansão, mas não fez isso sem sofrer críticas. O papel do banco na economia brasileira nunca foi tão censurado. E por essa razão tornou-se um dos principais temas do debate político-eleitoral.

Coutinho espera que, passado o calor da disputa eleitoral, prevaleça a racionalidade. Para ele, há muita desinformação sobre a atuação do banco. Uma das principais diz respeito à correlação entre desembolsos dos bancos e a taxa de investimento, medida pela Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF). "Em 2013, 25,6% da FBCF teve participação do banco, sendo que o desembolso do BNDES foi de 14,6% da FBCF. Portanto, o aumento do apoio do BNDES gerou elevação da formação de capital", disse.

Coutinho também alega que a crítica sobre o peso dos subsídios - calculado a partir da diferença entre o custo de captação do Tesouro e o juro subsidiado oferecido pelo BNDES - não leva em conta os benefícios gerados pelas operações do banco. "Supondo um multiplicador de renda de 2,5, os benefícios acumulados entre 2008 e 20014 superam os custos em R$ 7,7 bilhões. Para um multiplicador de 1,5, bastante conservador, o custo fiscal líquido do período é R$ 19,8 bilhões, o que equivale a 0,06% do PIB." A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Nos quase oito anos de sua gestão, o orçamento do BNDES triplicou, mas a taxa de investimento, embora tenha aumentado num primeiro momento, hoje está num dos menores níveis da história. O apoio do BNDES não está funcionando?

Luciano Coutinho:
O crescimento do BNDES foi exponencial até 2010. Posteriormente, o banco reduziu os desembolsos em 2011 e 2012 e teve pequeno crescimento em 2013, abaixo dos números de 2010. Precisamos levar em conta que não estamos falando de valores nominais, mas dos reais [descontada a inflação do período]. O banco cresceu, mas depois estabilizou e fez isso porque há um projeto de estimular o mercado de capitais. A forma correta de comparar é em relação ao PIB ou como proporção da Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), e a relação dessa com o PIB. Se olharmos dessa forma, veremos que há uma correlação. Porém, é preciso olhar um outro aspecto.

Valor: Qual?

Coutinho:
A FBCF é composta por gastos com construção civil, algo que não é objeto das operações do BNDES; e pela FBCF em geral na economia, na indústria principalmente, mas também em comércio, serviços e infraestrutura. São investimentos fundamentalmente em máquinas e equipamentos. Essa é a esfera afetada pelo BNDES, mas o banco não responde por 100% dessa parcela da FBCF.

Valor: Responde por quanto?

Coutinho:
Em 2003, 10,1% da FBCF do país teve participação do BNDES. No total, o banco desembolsou naquele ano o equivalente a 6,2% da FBCF. O aumento do apoio nos anos seguintes mostra o seguinte: em 2013, 25,6% da FBCF teve participação do banco, sendo que o desembolso foi de 14,6% da FBCF. Portanto, o aumento do apoio do BNDES provocou a elevação da formação de capital. Temos indicações de que, nesse sentido, o papel do banco é, sim, positivo.

Valor: Por exemplo?

Coutinho:
Podemos olhar o crescimento das operações do banco na infraestrutura, com o aumento dos investimentos nessa área que, embora ainda aquém do que todos gostaríamos, vem acontecendo. Programas como o PSI [Programa de Sustentação do Investimento], que financia máquinas, equipamentos agrícolas, caminhões e ônibus, têm um comportamento correlacionado com os programas do BNDES. Cerca de 65% do PSI é usado por pequenas e médias empresas. O programa tem um efeito disseminador de mais equipamentos e tecnologia na base produtiva brasileira.

Valor: Quanto o PSI representa do total dos desembolsos do banco?

Coutinho:
Dependendo do ano, algo como 40%. Essa cobrança de que o investimento deveria responder automaticamente ao BNDES é mal formulada porque pressupõe uma onipotência do banco. Se o BNDES pudesse comandar toda a FBCF, estaríamos no nirvana. O que o BNDES não pode é substituir todos os fatores econômicos. Se não fossem os programas do banco, a taxa de investimento estaria muito mais baixa.

Valor: O BNDES não cresceu demais e sufocou o desenvolvimento do mercado de capitais?

Coutinho:
Há uma profunda distorção no sistema brasileiro de poupança, que é viesado para o curto prazo, alta liquidez e praticamente ausência de risco. O grosso da poupança está estacionado em instrumentos financeiros com essas características e ancorados em papéis públicos, o que torna o funding bancário muito curto e caro. Isso dificulta para o sistema bancário oferecer crédito de médio e longo prazo. É preciso que um processo de migração do sistema para poupanças mais longas possa gerar o funding para o sistema bancário, de tal maneira que seja possível compartilhar de uma forma expressiva o financiamento de longo prazo entre o mercado, especialmente o de capitais, que me parece a avenida mais promissora para o financiamento de longo prazo, e o BNDES. É de uma profunda injustiça debitar ao BNDES essa responsabilidade, posto que temos sido os principais proponentes e temos buscado trabalhar em intensa parceria com o mercado nessa direção. Precisamos lembrar que a SELIC há dois anos estava em 7,25% e, portanto, estávamos muito próximos de um cenário em que se poderia deslanchar o desenvolvimento de debêntures para investimento em escala expressiva.

Valor: Por que não deslanchou?

Coutinho:
Infelizmente, choques externos, primeiro o de alimentos e agora o de energia, produziram impacto sobre a inflação. Além disso, a inflação tem outros componentes de renitência, especialmente na área de serviços. Tudo isso levou à necessidade de subida da SELIC. Criou-se outra vez uma grande polarização do sistema de poupança em direção ao curto prazo, o que fez minguar o potencial de emissão de debêntures. A expectativa era que pudéssemos operar de R$ 15 bilhões a R$ 20 bilhões em emissões já em 2014.

Valor: Está em quanto?

Coutinho:
Vamos fechar algo como R$ 3,5 bilhões. Mas isso em nada reduz o meu otimismo e convicção de que, uma vez ultrapassado o ciclo de alta da SELIC, poderemos acelerar de maneira muito intensa a emissão de debêntures e o crescimento do mercado de capitais. Olhando quatro anos à frente, poderemos ter o mercado financiando tanto quanto o BNDES, por exemplo, em infraestrutura. Para que isso aconteça, será indispensável a convergência da SELIC com a TJLP [Taxa de Juros de Longo Prazo]. E a graça aqui é que essa convergência venha pela queda da SELIC. Se vier pela alta da TJLP, inviabilizará investimentos de longa maturação, especialmente em infraestrutura, que têm taxas de retorno não tão elevadas e riscos mais altos.

Valor: Por que a SELIC ainda não convergiu para a TJLP?

Coutinho:
Tivemos um momento de convergência [em 2012] que foi transitoriamente afastado. Mas não vejo razão para que não possa convergir no futuro. Isso depende de uma boa coordenação de políticas.

Valor: Não depende do fortalecimento da situação fiscal?

Coutinho:
Sim, depende.

Valor: Uma das principais críticas ao BNDES diz respeito ao custo fiscal dos aportes que o Tesouro tem feito à instituição desde 2008. Foram mais de R$ 400 bilhões. Há estimativas de que, apenas em 2014, o custo do subsídio deve se aproximar de R$ 30 bilhões.

Coutinho:
Esse é um exemplo de debate em que se olha apenas um lado da questão e que me parece parcial e desequilibrado. É preciso olhar o resultado líquido, entre custos e benefícios. Os empréstimos do Tesouro ao BNDES têm um custo fiscal em razão da diferença entre a SELIC e a TJLP. Em 2013 e 2014, por exemplo, a diferença entre o custo de captação do Tesouro e o do BNDES se elevou de 2,8% para 5,5%. Principalmente por isso, o custo fiscal passou de R$ 10,6 bilhões para R$ 23,3 bilhões.

Valor: Esse é o custo. Quais são os benefícios?

Coutinho:
Os benefícios para o Tesouro incluem a rentabilidade do BNDES, os impostos arrecadados nos investimentos adicionais financiados e os tributos gerados na atividade econômica alavancada por esses investimentos - o efeito multiplicador da renda.


Valor: Há uma estimativa?

Coutinho:
No período 2008-2014, há anos em que o resultado líquido foi positivo e outros em que foi negativo. Supondo um multiplicador de renda de 2,5, os benefícios acumulados nesses anos superam os custos em R$ 7,7 bilhões. Para um multiplicador de 1,5, bastante conservador, o custo fiscal líquido do período é R$ 19,8 bilhões, o que equivale a 0,06% do PIB. Por último, é importante reter que a convergência entre SELIC e TJLP, que certamente ocorrerá nos próximos anos, eliminará de vez esse custo fiscal.

Valor: Outra crítica à sua gestão diz respeito às prioridades e critérios de concessão dos empréstimos. Tiveram acesso a crédito empresas, como os frigoríficos, que agregam pouco valor a seus produtos. Como o Sr. responde a isso?

Coutinho:
No que toca às prioridades, permita-me lembrar que, num regime democrático, cabe ao governo eleito pelo povo a legitimidade para fixá-las. Até entendo que alguns discordem, por isso, temos eleições. Quanto aos critérios, é bobagem dizer que não existem.

Valor: Por quê?

Coutinho:
Os critérios do BNDES para concessão de crédito e para os investimentos em participações acionárias são rigorosos e racionais e isso se traduz em baixíssimas taxas de inadimplência (0,07% em 2013, a menor do sistema financeiro) e em níveis satisfatórios de lucratividade. Temos hoje três grandes prioridades.

Valor: Quais são?

Coutinho:
A primeira é impulsionar investimentos em energia e infraestrutura econômica e social. A segunda é sustentar o processo de inclusão social e produtiva, com redução da pobreza e das desigualdades regionais. A terceira é apoiar o revigoramento da competitividade da indústria e do setor de serviços, enfatizando o aumento da produtividade, eficiência, inovação e sustentabilidade.

Valor: Faz sentido o BNDES financiar, com juro subsidiado, grandes empresas que têm acesso ao mercado de capitais, inclusive, no exterior?

Coutinho:
Essa afirmação não é razoável. Ignora, no caso de muitas empresas grandes, que projetos voltados para o mercado interno ou para infraestrutura têm faturamento em reais. O financiamento externo de longo prazo implicaria forte descasamento de moedas que já vitimou empresas e teve impactos sobre o sistema financeiro no passado. Esse problema importante de risco cambial ainda não está resolvido. O país tem reservas cambiais elevadas, mas também vem aumentando o déficit em conta corrente. Então, é preciso atenção a essa questão. Em 2009, o BNDES fez grande empréstimo à Petrobras, de R$ 25 bilhões, a custo de mercado. Não teve subsídio.

Valor: Por que emprestou à Petrobras se ela tem acesso a recursos mundo afora?

Coutinho:
Porque, naquele momento, não havia crédito para nenhuma empresa, inclusive, para as grandes. A proporção de empréstimos a grandes empresas no BNDES é menor do que o peso das grandes empresas na economia. O banco não é um fator de concentração do crédito nas grandes.

Valor: O ideal não é privilegiar pequenas e médias empresas?

Coutinho:
Há um componente de hipocrisia nessa crítica. O BNDES foi criado nos anos 50 para ser um banco de infraestrutura e para construir a grande indústria brasileira. Foi idealizado para vencer a dificuldade de aglutinar capitais num país em que as classes empresariais eram relativamente débeis. Hoje, diante dos imensos desafios de infraestrutura, é natural e desejável a existência de um banco capaz de emprestar com as condições, principalmente de prazo, que infelizmente o mercado privado não consegue suprir a curto prazo. E também nas condições compatíveis com as taxas de retorno desses investimentos.

Valor: O foco, então, é mesmo a grande empresa?

Coutinho:
Nós aumentamos substancialmente os créditos às pequenas empresas. Conseguimos, sendo um banco de atacado que não tem uma agência, chegar a 30% do crédito do BNDES para micro, pequenas e médias empresas. Emprestamos R$ 66 bilhões em 2013 (a preços de agosto de 2014). De janeiro a agosto deste ano, chegamos a R$ 36,7 bilhões. O cartão do BNDES emprestou R$ 11 bilhões. Se excluirmos da conta a área de infraestrutura, onde não tem empresa pequena, além das operações com governos estaduais e exportação de serviços de engenharia, a participação das pequenas sobe para 50%. Para um banco com as características do BNDES, é um desempenho notável.

Valor: Há também a crítica de que o banco empresta para poucas empresas.

Coutinho:
Quero desfazer essa ideia. Com base nos dados do "Valor 1000", dos mil maiores grupos do país, o BNDES financiou 783 em 2013; dos 500, 406; dos 100, 91. O BNDES está aberto a todas as empresas. Não há favoritismo. O banco buscou reforçar setores onde o Brasil tem vantagens comparativas importantes, já constituídas por fatores especiais.

Valor: Por exemplo.

Coutinho:
Os de proteínas e agronegócio, petroquímica, celulose e papel, software. A configuração de competitividade da economia brasileira está concentrada nesses setores. Nesses casos, o jogo competitivo é global. O preço é formado no mercado internacional. A capacidade de competir demanda presença nos mercados internacionais, com 'market share' [participação no mercado] relevante. O BNDES está associado a esses setores via BNDESPar. Mas as operações da BNDESPar são feitas a custo e com recursos do mercado. Não há subsídios nessas operações.

Valor: São as campeãs nacionais?

Coutinho:
Não. São as que têm capacidade de competir internacionalmente. Além dos setores que mencionei, tem o aeronáutico, mas não posso arguir que foi o BNDES que criou. A política de internacionalizar empresas brasileiras foi feita num contexto muito especial.

Valor: Qual?

Coutinho:
O da crise de 2008, que criou grandes oportunidades no exterior. Havia várias empresas nos EUA e em outros países em 'chapter 11' [recuperação judicial]. No Brasil, houve a necessidade de consolidar algumas empresas e setores por causa das perdas com derivativos cambiais. Essa combinação permitiu acelerar o processo de consolidação, que, em retrospecto, foi bem-sucedido. As empresas estão lucrativas, as operações foram feitas a mercado. Nos setores onde era possível, fizemos.

Valor: O governo está trabalhando numa agenda para estimular a compra de bens de capital?

Coutinho:
O Brasil tem três grandes desafios daqui em diante: aumentar de forma consistente a produtividade total dos fatores e especialmente a do trabalho; elevar a taxa agregada de investimento; aumentar a poupança nacional. No nível macroeconômico, precisa chegar a uma convergência de taxas de juros e a um sistema de financiamento de longo prazo; e ampliar e melhorar o sistema logístico. No plano da indústria, temos o desafio de melhorar a produtividade. A resposta a isso é mais automação porque temos hoje uma transição demográfica rápida, um crescimento mais lento da força de trabalho. Isso significa que precisamos tornar o sistema produtivo em geral e de serviços muito mais eficientes. Vamos precisar de mais serviços de tecnologia da informação, banda larga, simplificação tributária, mais automação industrial etc.

Valor: O que será feito na área de máquinas?

Coutinho:
Surgiu a ideia, que está sendo avaliada, sobre como acelerar a renovação do parque produtivo. O Brasil tem um estoque muito grande de caminhões velhos - idade média superior a 20 anos. O parque fabril também está envelhecido - algo superior a 20, 25 anos. Temos um potencial grande de acelerar a renovação do parque fabril e isso tem a ver com a necessidade de recuperar a competitividade da indústria. É algo que é preciso fazer com cautela para assegurar que haverá o devido descarte de máquinas antigas, superadas do ponto de vista tecnológico. O plano é criar condições favoráveis de financiamento e prazo para que as empresas se interessem em renovar suas máquinas.

Valor: Há um debate em curso sobre o papel dos bancos de desenvolvimento. Há os que defendem o encolhimento desses bancos.

Coutinho:
Esse é um caso em que a ideologia liberal impede a real compreensão do que está acontecendo no mundo. Para não centrar nos países em desenvolvimento como China, Coreia, Rússia e Turquia, que têm bancos públicos importantes, tomemos o exemplo recente dos países desenvolvidos como Alemanha, Japão, França, em que os bancos de desenvolvimento possuem grande relevância. O KFW alemão, por exemplo, que tem ativos de US$ 660 bilhões, desempenha papel-chave na oferta de crédito de longo prazo e no apoio às exportações. Esse é também o caso do JFC no Japão e do BPI na França. Registre-se que, hoje, há grande escassez de crédito de longo prazo por parte dos bancos comerciais, que ainda estão se recapitalizando [por causa da crise de 2008] e precisam atender às regras de Basileia 3. Por isso, ao contrário do que propõem alguns, os bancos de desenvolvimento são instituições necessárias e contemporâneas, evoluíram e têm padrões elevados de governança. A ausência de banco de desenvolvimento é um problema para os EUA e para a Inglaterra, em face das necessidades não atendidas de crédito de longo prazo para infraestrutura e sustentabilidade ambiental. O presidente Obama tentou criar um, mas o Congresso não acolheu".

FONTE:
reportagem de 
Cristiano Romero, do jornal "Valor". Transcrita no "Jornal GGN"  (http://jornalggn.com.br/noticia/coutinho-fala-ao-valor-sobre-atuacao-do-bndes-e-momento-atual).

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