quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O PROBLEMA NÃO É O ISLÃ. NUNCA FOI



Créditos da foto: The U.S Army / Flickr

Não é sobre o Islã: nunca foi

Por que, quando acontecem ataques como os de Paris, começamos a discutir o Islã e não nos referimos às verdadeiras raízes da violência?

Por Ramzy Baroud, no "CounterPunch", publicação quinzenal norte-americana

"Ainda não é sobre o Islã, mesmo que a mídia e os militantes atacando alvos ocidentais digam que sim. Na realidade, nunca foi. Mas foi importante para muitos fundir política com religião, pois é conveniente.

Primeiro, sejamos claros em alguns pontos. O Islã botou em ação um sistema para abolir a escravidão mais de 1200 anos antes de o tratado de abolição chegar ao seu pico no mundo ocidental.

Libertar os escravos, que pertenciam a tribos árabes pagãs, foi um tema recorrente no Alcorão, sempre ligado aos sinais mais básicos de piedade e virtude:

As caridades vão para os pobres, aos necessitados, aos que trabalham para coletá-las, àqueles cujos corações se uniram, aos escravos livres, aos em dívidas, aos unidos com Deus e aos viajantes. Uma tarefa de Deus, e Deus é Conhecedor, Sábio.” [Alcorão. 9:60]

Infelizmente, lembretes como esse devem ser regularmente relembrados, graças à constante propaganda anti-Islã em muitos países ocidentais. O comportamento estranho e frequentemente bárbaro do então chamado Estado Islãmico (EI) forneceu maior impulso às propagandas e aos preconceitos existentes.

Segundo, a igualdade de gênero no Islã tem sido consagrada na linguagem do Alcorão e no legado do Profeta Mohammed.

Para os homens e mulheres muçulmanos, para os homens e mulheres crentes, para homens e mulheres devotos, para homens e mulheres honestos, para homens e mulheres pacientes, para homens e mulheres humildes, para homens e mulheres caridosos, para homens e mulheres que realizam o jejum, para homens e mulheres castos e para homens e mulheres que frequentemente se lembram de Deus - para eles Alá preparou o perdão e uma grande recompensa.” [33:35]

Terceiro, a santidade da vida é suprema no Islã à medida que “…se qualquer um mata uma pessoa (..) seria como se ele tivesse matado todas as pessoas: e se qualquer um salvar uma vida, seria como se ele tivesse salvado a vida de todos.” [5:32]

Ainda assim, isso não é sobre o Islã. Isso é sobre o porquê de o Islã ser o sujeito dessa discussão em primeiro lugar, quando deveríamos estar nos referindo às verdadeiras raízes da violência.

Quando o Islã foi introduzido à Arábia muitos séculos atrás, era, e de fato continua a ser, uma religião revolucionária. Era e se mantém radical, certamente o tipo de radicalismo que, se visto objetivamente, seria considerado um verdadeiro desafio à divisão de classes na sociedade, à desigualdade em todas as suas formas, e mais importante, ao capitalismo e sua insaciabilidade, ganância e insensibilidade.

Para evitar uma discussão racional sobre problemas reais, muitos transformam os não-assuntos na cruz do debate. Então, o Islã é discutido juntamente com o Estado Islâmico, com conflitos tribais e sectários nigerianos, resistência palestina à ocupação israelense, problemas de imigração na Europa e muito mais.

Enquanto muita violência se propaga ao redor do mundo no nome do cristianismo, judaísmo, até budismo em Burma e Sri Lanka, raramente coletivos inteiros são estigmatizados pela mídia. Ainda assim, todos os muçulmanos são diretamente tidos como responsáveis por muitos, mesmo se um criminoso que por um acaso era muçulmano iniciou um tumulto violento. Sim, ele ainda pode ser designado como “lobo solitário”, mas pode-se ter quase certeza de que os muçulmanos e o Islã de alguma forma se tornarão relevantes ao debate da mídia no desenrolar dos eventos.

Em sua forma desesperada de rechaçar acusações, muitos muçulmanos, frequentemente liderados por intelectuais e jornalistas, têm, por quase duas décadas, se esforçado para distanciar o Islã da violência e para lutar contra o estereótipo persistente. Com o tempo, esses esforços culminaram em um fluxo constante de desculpas coletivas em nome do Islã.


Quando um muçulmano no Brasil ou na Líbia reage a uma crise de reféns em Sidney na Austrália, condenando a violência em nome do Islã, e tentando defender o Islã e negando a militância, a pergunta é, por quê? Por que a mídia faz com que os muçulmanos se sintam responsáveis por qualquer coisa feita em nome do Islã, até mesmo por uma pessoa desequilibrada? Por que os membros de outras religiões não são responsabilizados pelos mesmos padrões? Por que os cristãos suecos não são questionados para explicar e se desculpar sobre o comportamento do "Exército de Resistência Senhor" de Uganda, ou os judeus argentinos a explicarem diariamente a violência sistemática e o terror continuados por judeus extremistas em Jerusalém e na Cisjordânia?

Desde que Francis Fukuyama declarou o “Fim da História” em 1992 - revelando que os livres mercados e as “democracias liberais” reinariam supremos para sempre - seguido pela suposta visão contrastante de Samuel Huntington, mas ainda assim igualmente pretensiosa, do “embate das civilizações e a necessidade de “refazer a ordem mundial”, uma nova indústria intelectual envolveu muitos em Washington, Londres e outros lugares. Uma vez que a Guerra Fria havia terminado triunfante com um senso inflado de validação política, o Oriente Médio se tornou o novo quintal para ideias sobre domínio e aparatos militares.

Desde então, tem sido uma guerra aberta, instigada por, ou envolvendo, vários poderes ocidentais. Foi uma guerra prolongada e multidimensional: uma guerra destrutiva no chão, uma guerra econômica (bloqueios em uma mão e globalização e exploração do livre mercado na outra), invasão cultural (que tornou o ocidentalismo equivalente à modernidade); concluída com uma propaganda de guerra massiva mirando a religião principal do Oriente Médio: o Islã.

A guerra ao Islã foi particularmente vital, pois parecia unificar uma gama de intelectuais ocidentais, conservadores, liberais, religiosos e seculares. Tudo feito por "boas razões":

- Islã não é somente uma religião, mas um modo de vida. Demonizando o Islã, você demoniza tudo ligado à ele, incluindo é claro, os muçulmanos.

- A vilificação do Islã a qual levou a uma massiva Islamofobia liderada pelo ocidente, ajudou a validar as ações dos governos ocidentais, violentos e abusivos. A desumanização dos muçulmanos se tornou uma arma essencial na guerra.

- Também foi estratégico: odiar o Islã e todos os muçulmanos é uma ferramenta bem flexível que tornaria as sanções e intervenções militares possíveis em qualquer lugar onde o ocidente tenha interesses políticos ou econômicos. Odiar o Islã se tornou um grito uníssono, desde advogados de sanções no Sudão à grupos neonazis anti-imigrantes na Alemanha, e em vários outros lugares. O problema não é mais os meios violentos usados para alcançar dominação política e controle dos recursos naturais, mas, magicamente, tudo foi reduzido à uma única palavra: Islã; ou, no melhor, Islã e mais alguma coisa: liberdade de expressão, direitos das mulheres, e por aí vai.

Portanto, não foi surpresa ver os likes de Ian Black comentando no "Guardian", horas depois do atentado contra "Charlie Hebdo" em Paris, com a linha de inicio: “Sátira e Islã não sentam bem juntos...”

Nenhuma palavra sobre o exército francês e as intervenções militares no Oriente Médio; seu papel destrutivo na Síria; sua liderança na guerra na Líbia; sua guerra no Mali, e por aí vai. Nenhuma palavra sobre a declaração recente de Hollande sobre estar “pronto” para bombardear os rebeldes na Líbia, mesmo tendo sido feita alguns dias antes do atentado.

Claro, a sátira pornográfica de "Charlie Hebdo" e seu alvo no Profeta Mohammed foi mencionada, mas pouco foi dito, por Black, ou pelos muitos outros que foram rápidos em ligar o assunto ao “Islã do século 7”, às guerras hediondas e suas manifestaçõoes pornográficas de tortura, estupro e outros atos; atos que vitimaram milhões de pessoas; muçulmanos. Ao invés, é sobre a arte ocidental e a intolerância muçulmana. A linha fina foi: sim, de fato, é um “embate de civilizações.”

Algum desses intelectuais parou para pensar que talvez, só talvez, as respostas violentas aos símbolos islâmicos degradados refletem um sentimento politico real, por exemplo, um sentimento coletivo de humilhação, dor e racismo que se estende a todos os cantos do globo?

E que é natural que a guerra, que é constantemente exportada do ocidente para o resto do mundo, possa ser ultimamente exportada de volta para as cidades do ocidente?

Não é possível que os muçulmanos estejam com raiva de algo muito mais profundo do que a arte sem gosto de "Charlie Hebdo"?

Evitar a resposta irá atrasar a tentativa de achar uma solução, a qual deve começar com o fim do intervencionismo ocidental no Oriente Médio."

FONTE: escrito por Ramzy Baroud, no "CounterPunch", publicação quinzenal norte-americana. Transcrito no portal "Carta Maior" com tradução de Isabela Palhares (http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Nao-e-sobre-o-Isla-nunca-foi-/6/32656).

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