domingo, 25 de janeiro de 2015

RACIONAMENTO DE ÁGUA E DE FATOS




O que sai no jornal ou “o racionamento dos fatos”

Por Fernando Brito

"Uma amiga me conta que a mãe telefonou para saber como ela tinha ficado “durante o apagão”.

- Mãe, aqui não teve apagão!
- Mas como, minha filha, deu no jornal!
- Mas não teve. E aí, teve?
- Não. aqui não faltou luz, nem lá na sua tia fulana que falou comigo agora, lá de Florianópolis.
Pra você, mãe, aprender a não acreditar em tudo o que sai no jornal…

Detalhe: essa amiga é jornalista.

Como é jornalista, dos melhores, o veterano Luciano Martins Costa, que publica, no "Observatório da Imprensa", uma trágica crônica sobre a forma e a escala de destaque do que sai nos jornais brasileiros.


Que me consegue traduzir o nojo com que li a chamada “Dom Evo I”, na manchete de "O Globo", um deboche contra a autenticidade de um índio, Evo Morales, assumir a presidência do país segundo a tradição de seu povo – e seu povo é a imensa maioria do povo boliviano.

E que registra, com explicitude, o tratamento esquizóide com que se analisa a política econômica.

O que é “bom”, é Levy. O que é “ruim”,mesmo sendo bom, é Dilma. 


Quem sai no retrato

Os jornais de quinta-feira (22/1) refletem uma circunstância corriqueira na relação da imprensa com o poder político e reproduzem o estado de guerra que domina o ambiente midiático. As manchetes e outros títulos de destaque nas primeiras páginas procuram exacerbar as dificuldades da economia nacional, ao mesmo tempo em que tentam colocar o problema de abastecimento de água em São Paulo na conta das "mudanças climáticas".

O conjunto de notícias e opiniões que os diários apresentam como a síntese do período induz o leitor a acreditar que o Brasil é um comboio em direção ao abismo, e que o condutor, o ministro da Fazenda Joaquim Levy, está tomando as providências para reduzir a velocidade e desviá-lo de volta para o trilho do desenvolvimento. A presidente da República, responsável pela estratégia que o ministro deve administrar, é citada quase exclusivamente no meio de declarações sobre o escândalo da Petrobras.

Há espaço, ainda, para a fotografia do presidente reeleito da Bolívia, Evo Morales, envergando a bata tradicional na cerimônia indígena que antecede sua posse. Com exceção do "O Estado de S. Paulo", os jornais expõem na primeira página a imagem de Morales junto a xamãs nativos, acompanhada de textos que mal dissimulam o preconceito. No "Globo", o título do conjunto é: “Dom Evo I”. Na "Folha de S.Paulo", o título chega próximo da zombaria: “Pelos poderes de Evo”, diz o jornal paulista.

A imprensa não suporta essa coisa de indígena fora de reservas, ocupando palácio de governo e resolvendo problemas centenários de seus países.

Como se vê, há uma série de elementos a serem observados nas escolhas dos editores. Um dos aspectos mais interessantes é o posicionamento que a imprensa faz dos principais protagonistas da cena pública.

Evo Morales, que vai para seu terceiro mandato com um histórico de êxitos na recuperação da economia e da autoestima dos bolivianos, é retratado como uma aberração excêntrica, numa América Latina cuja elite se imagina europeia. A presidente do Brasil vira personagem secundária na crônica do poder. Por outro lado, o governador de São Paulo, responsável direto pela crise que ameaça o bem-estar de milhões de cidadãos, é retirado de cena quando deveria estar respondendo perguntas incômodas, porém cruciais.

Racionamento de fato

Se a imprensa aprova as medidas anunciadas pelo governo federal, o destaque vai para o ministro da Fazenda. Se a imprensa se vê na contingência de reconhecer o descalabro na gestão dos recursos hídricos e no sistema de distribuição de energia em território paulista, o foco vai para auxiliares do segundo ou terceiro escalão. O governador Geraldo Alckmin aparece apenas para criticar a empresa responsável pela gestão da energia, AES Eletropaulo, numa clara manobra para criar um novo foco de atenção e desviar do Palácio dos Bandeirantes o olhar crítico do público.

O isolamento da presidente Dilma Rousseff no noticiário sobre medidas econômicas (que a imprensa apoia) vem acompanhado de comentários que amplificam supostas reações de dirigentes de seu partido às medidas anunciadas pelo ministro da Fazenda. Assim, o leitor é induzido a pensar que Joaquim Levy conduz a economia à revelia da presidente e contra a orientação do partido que a reconduziu ao poder.

No caso paulista, quem vai para a frente da batalha comunicacional é o presidente da Sabesp, Jerson Kelman, que em artigo na "Folha de S.Paulo" tenta convencer o cidadão de que não há racionamento de água, mas pode vir a acontecer. Aproveita para reconhecer que a principal causa da crise hídrica é a fartura de vazamentos na tubulação. São 64 mil quilômetros de tubos enterrados sob o asfalto da região metropolitana, uma extensão correspondente a uma volta e meia em torno do planeta. 


O presidente da Sabesp só não explica por que seu chefe, o governador Geraldo Alckmin, não exigiu que a empresa corrigisse essa deficiência desde a primeira vez que ocupou o Palácio dos Bandeirantes, em 2001. E a "Folha de S.Paulo" esquece que publicou, no dia 12 de outubro de 2003, um domingo (ver aqui), uma reportagem na qual alertava para o fato de que, se nada fosse feito para reduzir as perdas, a região metropolitana só teria água até o ano de 2010.
Nada foi feito. Tudo que sai dos mananciais do sistema Cantareira se perde nos vazamentos. A Sabesp raciona a água, a imprensa faz o racionamento dos fatos."

FONTE: escrito por Fernando Brito em seu blog "Tijolaço"  (http://tijolaco.com.br/blog/?p=24357).

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