quinta-feira, 26 de março de 2015

JÁ ESTAMOS EM PLENA GUERRA GLOBAL



A América Latina na dinâmica da guerra global

Por Jorge Beinstein, doutor em economia e professor catedrático das universidades de Buenos Aires e Córdoba, na Argentina, e de Havana, em Cuba

"Tudo ao mesmo tempo: em meados do mês de março de 2015, os Estados Unidos deram um salto qualitativo de claro perfil belicista nas suas ações contra a Venezuela; também desenvolvem exercícios militares em países limítrofes com a Rússia na chamada operação "Atlantic Resolve", algumas dessas operações são realizadas a uns 100 quilômetros de São Petersburgo [1]; além disso, intensificam-se informações acerca de nova ofensiva do governo de Kiev contra a região do Donbass [2]; aumenta a circulação de naves de guerra da NATO no Mar Negro; continuam as velhas guerras imperiais no Iraque e no Afeganistão às quais acrescentou-se a seguir a ofensiva contra a Síria (passando pela Líbia)... e muito mais...

Evidentemente, o Império está lançado numa catastrófica fuga militar para a frente estendendo suas operações a todos os continentes. Encontramo-nos em plena guerra global. Nem os grandes meios de comunicação, nem os dirigentes internacionais mais importantes registaram publicamente o fato, todos falam como se vivêssemos em tempos de paz, só em alguns poucos casos surgem alguns deles a advertir sobre o perigo de guerra mundial ou regional. Uma exceção recente é a do Papa Francisco quando afirmou que atualmente nos encontramos perante "uma terceira guerra mundial" que ele descreve como a desenvolver-se "por partes", ainda que sem designar os contendores e fazendo vagas referências à "cobiça" e a "interesses espúrios" com a linguagem confusa e jesuítica que o caracteriza [3] .

A cada mês, acrescenta-se algum novo indiciar que anuncia a proximidade de nova recessão global muito mais forte e extensa que a de 2009. O capitalismo, a começar pelo seu polo imperialista, foi-se convertendo velozmente num sistema de saqueio onde a reprodução das forças produtivas fica completamente subordinada à lógica do parasitismo. As elites imperiais e suas lumpen-burguesias satélites "necessitam" superexplorar até ao extermínio seus recursos naturais e mercados periféricos para sustentar as taxas de lucro do seu decadente sistema produtivo-financeiro.

As tendências globais rumo à decadência económica exprimem-se de múltiplas maneiras no dia a dia. Dentre elas, a volatilidade dos preços das matérias-primas, o petróleo por exemplo, chave mestra da economia mundial, cujo estancamento extrativo (que não conseguiu ser superado pelo show midiático em torno do "milagroso" petróleo de xisto) combina-se com desacelerações da procura internacional como ocorre atualmente. A isso somam-se golpes especulativos e geopolíticos que convertem os mercados em espaços instáveis onde as manobras de curto prazo impõem a incerteza.

O curto-prazismo especulativo hegemônico engendra pacotes tecnológicos depredadores como a mineração a céu aberto, a fraturação hidráulica ou a agricultura com base em transgênicos acompanhados por operações políticas e comunicacionais que degradam, desarticulam sistemas sociais procurando convertê-los em espaços indefesos diante dos saqueios.

O otimismo econômico da época do auge neoliberal deu lugar ao pessimismo do "estancamento secular" agora apregoado pelos grandes peritos do sistema [4] . Eles indicam que a salvação do capitalismo não chegará a partir da economia condenada a sofrer recessões ou crescimentos insignificantes; o melhor é nem falar demasiado desses tristes temas. Então, a guerra ascende ao primeiro plano, algum massacre protagonizado por tropas regulares ou mercenárias, algum bombardeio, alguma ameaça de ataque na Europa do Leste, Ásia, África ou América Latina. Os meios de comunicação nos esmagam com essas notícias, contudo ninguém fala da guerra global.

Tudo acontece como se a dinâmica da guerra se houvesse autonomizado mas empregado um discurso embrulhado, difícil de entender. Mas assim como os superpoderes dos homens de negócios dos anos 1990 não eram independentes e sim compartilhados no interior de uma complexa trama de poderes (políticos, mediáticos, militares etc) que em termos gerais costuma-se denominar como "classe dominante", também a aparente autonomia do poder militar dificulta-nos ver as redes mafiosas de interesses onde se borram as fronteiras entre os seus componentes. As elites da era neoliberal sofreram mudanças decisivas, experimentaram mutações que as converteram em classes completamente degeneradas que, cada vez mais, só podem recorrer à força bruta, à lógica da guerra. Não se trata portanto de a componente militar se autonomizar e sim, antes, de que as elites imperialistas se militarizam. Elas já não seduzem com ofertas de consumo mais algumas doses de violência, agora só propagam o medo, ameaçam com as suas armas ou utilizam-nas.

Progressismos latino-americanos

Dentro desse contexto global, devemos avaliar os progressismos latino-americanos [5] que se instalaram na base das crises de governabilidade dos regimes neoliberais.

Os bons preços internacionais das matérias-primas durante a década passada, somados a políticas de contenção social dos pobres, permitiram-lhes recompor a governabilidade dos sistemas existentes. Em alguns desses casos, desenvolveram-se ampliações ou renovações das elites capitalistas e em quase todos eles prosperaram as classes médias. Os governos progressistas iludiram-se supondo que as melhorias econômicas lhes permitiram ganhar politicamente os referidos setores mas, como era previsível, ocorreu o contrário: as camadas médias iam para a direita e, enquanto ascendiam, olhavam com desprezo os de baixo e assumiam como próprios os delírios mais reacionários das suas burguesias. A explicação é simples, na medida em que são preservados (e ainda fortalecidos) os fundamentos do sistema e em que seus núcleos decisivos radicalizam seus elitismo depredador seguindo a rota traçada pelos Estados Unidos (e "Ocidente" em geral) produz-se um encadeamento de subculturas neofascistas que vão desde acima até abaixo, desde o centro até as burguesias periféricas e desde estas até suas camadas médias. Na Venezuela, Brasil ou Argentina, as classes médias melhoravam seu nível de vida e, ao mesmo tempo, despejavam seus votos nos candidatos da direita velha ou renovada.

Estabeleceu-se um conflito interminável entre governos progressistas que tornavam governáveis os capitalismos locais e direitas selvagens ansiosas por realizar grandes roubos e esmagar os pobres. O progressismo, confrontado politicamente com essa direita qualificada de "irresponsável", cujos fundamentos econômicos respeitava, chantageava aqueles na esquerda que criticavam sua submissão às regras do jogo do capitalismo utilizando o papão reacionário ("nós ou a besta"), acusando-os de fazerem o jogo da direita. Na realidade, o progressismo é um grande jogo favorável ao sistema e em última análise à direita, sempre em condições de retornar ao governo graças à moderação, à "astúcia" aparentemente estúpida dos progressistas que, por vezes, conseguem cooptar esquerdas claudicantes cuja obsessão em "não fazer o jogo da direita" (e simultaneamente integrar-se no sistema) é completamente funcional à reprodução do país burguês e, em consequência, a essa detestável direita.

Agora, o jogo começa a esgotar-se. Os progressismos governantes, com diferentes ritmos e variados discursos, acossados pelo arrefecimento econômico global e pelo crescente intervencionismo dos Estados Unidos, vão perdendo espaço político. Em vários casos, suas dificuldades fiscais pressionam-nos a ajustar despesas públicas (e de modo algum a reduzir os superlucros dos grupos econômicos mais concentrados), a aceitar as devastações da megamineração ou a adotar medidas que facilitam a concentração de rendimentos. No Brasil, o segundo governo Dilma colocou um neoliberal puro e duro no comando da política econômica, encurralado por uma direita ascendente, uma economia oscilando entre o estancamento e a recessão e uma intervenção norte-americana cada vez mais ativa. No Uruguai, o novo governo de Tabaré Vazquez mostra um rosto claramente conservador e no Chile a presidência Bachelet não precisa correr demasiado à direita; depois da sua rosada demagogia eleitoral afirma-se como continuidade do governo anterior e, em consequência, passada a confusão inicial, herdará também a hostilidade de importantes faixas de esquerda e dos movimentos sociais.

Na Argentina, o núcleo duro agromineral exportador-financeiro e os grupos industriais exportadores mais concentrados estão mais prósperos do que nunca, enquanto a ingerência norte-americana amplia-se conduzindo o jogo de títeres políticos rumo a uma ruptura ultradireitista. Na Venezuela, a eterna transição rumo a um socialismo que nunca acaba de chegar não conseguiu superar o capitalismo, ainda que torne caótico o seu funcionamento, forjando desse modo o cenário de uma grande tragédia. Por enquanto, só a Bolívia parece salvar-se da avalanche, afirmando-se na maior mutação social da sua história moderna sem superar o âmbito do subdesenvolvimento capitalista, mas recompondo-o integrando as massas submersas, multiplicando por mil o que havia feito o peronismo na Argentina entre 1945 e 1955 (de qualquer forma, isso não a liberta da mudança de contexto regional-global).

Na América Latina, assistimos a um processo de crise muito profundo onde convergem progressismos declinantes com neoliberalismo integralmente degradados, como na Colômbia ou no México, conformando um panorama comum de perda de legitimidade do poder político, avanços de grupos econômicos saqueadores e ativismo imperialista cada vez mais forte.

A esse panorama sombrio, é necessário incorporar elementos que dão esperança, sem os quais não poderíamos começar a entender o que está a ocorrer. Por debaixo dos truques políticos, dos negócios rápidos e das histerias fascistas, aparecem os protestos populares multitudinários, a persistência de esquerdas não cooptadas pelo sistema (para além dos seus perfis mais ou menos moderados ou radicais), a presença de insurgências incipientes ou poderosas (como na Colômbia).

Nem os cantos de sereia progressistas, nem a repressão neoliberal puderam fazer desaparecer ou marginalizar completamente esses fantasmas. Realidade latino-americana que preocupa os estrategas do Império, que temem o que consideram como sua inevitável arremetida contra a região possa desencadear o inferno da insurgência continental. Nesse caso, o paraíso dos grandes negócios poderia converter-se num grande atoleiro onde afundaria o conjunto do sistema.

Geopolítica do Império, integrações e colonizações

A estratégia dos Estados Unidos aparece articulada em torno de três grandes eixos; o transatlântico e o transpacífico que apontam um gigantesco jogo de pinças contra a convergência russo-chinesa centro motor da integração euro-asiática. E, a seguir, o eixo latino-americano destinado à recolonização da região.

Os Estados Unidos tentam converter a massa continental asiática e sua ampliação russo-europeia num espaço desarticulado, com grandes zonas caóticas, objeto de saqueio e superexploração.

Os recursos naturais, assim como os laborais, desses territórios constituem seu centro de atenção principal, na elipse estratégica que cobre o Golfo Pérsico e a Bacia do Mar Cáspio; estendendo-se em direção à Rússia encontram-se 80% da reservas globais de gás e 60% das de petróleo e na China habitam pouco mais de 230 milhões de operários industriais (aproximadamente um terço do total mundial).

A América Latina aparece como o pátio traseiro a recolonizar. Ali se encontram, por exemplo, as reservas petrolíferas da Venezuela (as primeira do mundo, 20% do total global), cerca de 80% das reservas mundiais de lítio (num triângulo territorial compreendido pelo Norte do Chile e Argentina e pelo Sul da Bolívia) imprescindível na futura indústria do automóvel elétrico, as reservas de gás e petróleo de xisto do Sul argentino, fabulosas reservas de água doce do aquífero guarani entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina.

Uma das ofensivas fortes do Império na década passada foi a tentativa de constituição da ALCA, zona de livre comércio e investimentos que significava a anexação econômica da região por parte dos Estados Unidos. O projeto fracassou, a ascensão do progressismo latino-americano somado à emergência de potências não ocidentais, sobretudo a China, e o atolamento estadunidense na sua guerra asiática foram fatores decisivos que, em diferentes medidas, debilitaram a investida imperial.

Mas a partir da chegada de Obama à presidência os Estados Unidos desencadearam uma ofensiva flexível de reconquista da América Latina: foi posta em marcha uma complexa mescla de pressões, negociações, desestabilizações e golpes de estado. Os golpes brandos com êxito em Honduras e no Paraguai, as tentativas de desestabilização no Equador, Argentina, Brasil e sobretudo na Venezuela (onde vai-se perfilando uma intervenção militar), mas também a tentativa em curso de extinção negociada da guerrilha colombiana e a domesticação de Cuba fazem parte dessa estratégia de recolonização.

A mesma é implementada através de uma sucessão de tentativas suaves e duras tendentes a desarticular as resistências estatais e os processos de integração regional (Unasul, Celac, Alba) e extrarregionais periféricos (BRICS, acordos com a China e a Rússia etc) assim como a bloquear, corromper ou dissolver as resistências sociais e as alternativas políticas mais avançadas, em curso ou potenciais. Tentando levar avante uma dinâmica de desarticulação, mas procurando evitar que a mesma gere rebeliões que se propaguem como um rastilho de pólvora numa região atualmente muito inter-relacionada.

Sabem muito bem que em muitos países da região a substituição de governos "progressistas" por outros abertamente pró-imperialistas significa a ascensão de camarilhas enlouquecidas que a curto prazo causariam situações de caos que poderiam desencadear insurgências perigosas. Alguns estrategas do Império acreditam poder neutralizar esse perigo com o próprio caos, desenvolvendo "guerras de quarta geração", instalando diferentes formas de violência social desestruturante combinadas com destruições midiático-culturais e repressões seletivas. Nesse sentido, o modelo mexicano é para eles (por agora) um paradigma interessante.

Temem, por exemplo, que um cenário de caos fascista na Venezuela derive numa guerra popular que os obrigaria a intervir diretamente num conflito prolongado, o que somado às suas guerras asiáticas os conduziria a uma superextensão estratégica ingovernável. É por isso que consideram imprescindível obter o apaziguamento da guerrilha colombiana, potencial aliada estratégica de uma possível resistência popular venezuelana.

O panorama é completado com o processo de integração colonial dos países da chamada "Aliança do Pacífico" (México, Colômbia, Peru e Chile). A isso somam-se os tratados de livre comércio de maneira individual com países da América Central e outros como o Chile e a Colômbia e o velho tratado entre EUA, Canadá e México.

Integração colonial e desarticulação, manipulação do caos e fortalecimento de pólos repressivos, Capriles mais Peña Nieto, Ollanta Humana mais Santos mais bandos narco-mafiosos... tudo isso dentro de um contexto global de decadência sistémica onde a velha ordem unipolar declina sem ser substituída por uma nova ordem multipolar. Tentativa de controle imperialista da América Latina submersa na desordem do capitalismo mundial.

O cérebro do Império não consegue superar as mazelas do seu corpo envelhecido e enfermo, os delírios reproduzem-se, as fugas para a frente multiplicam-se. Evidentemente encontramo-nos num momento histórico decisivo."

Notas:

[1] Finian Cunningham, "NATO's Shadow of Nazi Operation Barbarossa", Strategic Culture Foundation, 13/03/2015

[2] Colonel Cassad, "Ukraine: Reprise de la guerre au printemps?", http://lesakerfrancophone.net/le 13 mars 2015

[3] "El papa Francisco advirtió que vivimos una tercera guerra mundial combatida 'por partes' ",http://www.lanacion.com.ar , 13 de septiembre de 2014

[4] Laurence H Summers, "Reflections on the 'New Secular Stagnation Hypothesis'" y Robert J Gordon, "The turtle's progress: Secular stagnation meets the headwinds" en "Secular Stagnation: Facts, Causes, and Cures", CEPR Press, 2014.

[5] Utilizo o termo "progressista" no sentido mais amplo, desde governos que se proclamam socialistas ou pró socialistas como na Venezuela ou Bolívia até outros de corte neoliberal-progressista como os do Uruguai ou Brasil.

FONTE: escrito por Jorge Beinstein, publicado no "Resistir.info", de Portugal (http://resistir.info/), e transcrito no "Jornal GGN"  (http://jornalggn.com.br/blog/antonio-ateu/crise-a-america-latina-na-dinamica-da-guerra-global). 
O autor é doutor em economia e professor catedrático das universidades de Buenos Aires e Córdoba, na Argentina, e de Havana, em Cuba. É autor de "Capitalismo senil: a grande crise da economia global", publicado no Brasil pela editora Record (2001). Dirige o "Instituto de Pesquisa Científica da Universidade da Bacia do Prata" e publica regularmente em "Le Monde Diplomatique" (em castelhano).

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