Na véspera do carnaval, no primeiro dia deste mês, o jornal Folha de São Paulo, na coluna da sua já famosa e polêmica jornalista Eliane Catanhêde, publicou a seguinte notícia (extraí trechos):
“Em sigilo, Jobim negocia um satélite com a França
Objetivo é a defesa do espaço aéreo e territorial; o ministro tratou do tema com Sarkozy
A implantação de um satélite de monitoramento do espaço aéreo e territorial brasileiro é um dos principais temas tratados em sigilo pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, durante sua estada de uma semana na França. ..."
"....Não falaram de detalhes nem de valores, mas, conforme a Folha apurou, o custo previsto do programa é de cerca de US$ 1 bilhão, mais US$ 500 milhões para infra-estrutura de terra.”
"....O projeto tem a sigla SGB (Satélite Geoestacionário Brasileiro) e foi idealizado para atuar em três frentes: a banda X, de comunicação militar e de defesa estratégica, informações meteorológicas e modernização do controle do tráfego aéreo. Desde a venda da Embratel, o governo não tem controle da banda X, alugando satélites para esse uso.”
ANÁLISE
É óbvio que é obrigatório o Brasil ter o controle do seu espaço aéreo e deve proteger com sigilo suas comunicações militares e de defesa estratégica. Isso justifica a mencionada despesa da ordem de US$ 1,5 bilhão.
A minha indignação é o Brasil gastar de novo com o que já tinha. Por quê?
Para compreendermos a resposta, devemos ir à origem do problema. Ela surgiu no meio de acirrada disputa entre o Brasil e a Argentina.
Recordemos o calor daquela disputa que teve o seu ápice no segundo governo PSDB/DEM/FHC.
A COMPETIÇÃO "NEOLIBERAL" ENTRE O BRASIL E A ARGENTINA
O Brasil e a Argentina pareciam-me eufóricos em competir (Menem x Collor e depois Menem x FHC) quem fazia melhor e mais rápido as lições de casa das medidas ditas neoliberais prescritas desde 1990 em Washington.
Fomos por isso muito elogiados em Wall Street.
Os dois países e “os latino-americanos em geral, no tocante à abertura unilateral de suas economias, realizaram em um ano (1995) o que os asiáticos fizeram em trinta anos, surpreendendo e ganhando muitos elogios até dos propugnadores das medidas, via FMI e Banco Mundial” (palavras de Rodrik, D., Journal of Economic Literature, EUA, mar. 1996).
A determinação política brasileira de concordar radicalmente com aquilo tudo era muito forte.
O Presidente FHC expressou em abril de 1995, com grande vigor e determinação: “Vamos abrir. Vamos privatizar também. Não nos iludamos. Não vai bastar a concessão (de serviços públicos). Não vai bastar a joint-venture, a parceria. Nós vamos ter que abrir...As privatizações serão aceleradas...Está prevista também a participação de capital estrangeiro na privatização de bancos oficiais, inclusive os estaduais. Não me refiro aqui a parcerias, mas à venda de controle acionário.” (trechos da Coletânea oficial de “Pronunciamentos do PR”, 1995).
Um fato que achei audaz, mas na época pouca repercussão teve, foi a decisão de FHC de abrir para empresa estrangeiras a exploração e a apropriação do petróleo brasileiro (Lei no 9.478/1997).
Deve ser reconhecido que o nosso presidente passou a ser muito admirado pelos líderes das grandes potências e pelos grandes empresários e banqueiros estrangeiros.
A imprensa nacional, para a ufania de muitos brasileiros, sempre jactava que no exterior o achavam “muito culto, um intelectual, preparado, fala vários idiomas, é ‘chic’, tem uma elegância cosmopolita”. Também eram muito admirados lá fora o nosso Ministro da Fazenda e o Presidente do Banco Central.
Muitos brasileiros e órgãos da imprensa , até hoje, estão orgulhosos e saudosos dos tantos elogios e homenagens que aqueles nossos dirigentes recebiam no Primeiro Mundo.
A NECESSIDADE DE UM SEGUNDO MANDATO
Menem e FHC, talvez para terem mais tempo para implantar, mais profundamente ainda, aquelas “importantes medidas do agrado do mercado internacional”, empenharam grande parte do tempo e do esforço político dos seus países em ampliar a base parlamentar para alterar a Constituição, visando a permitir as suas próprias reeleições. Conseguiram. Não foi fácil.
No Brasil, muitos parlamentares foram acusados (mas apenas dois cassados) por vender votos favoráveis à reeleição. Nada se soube sobre quem comprava aqueles dispendiosos votos (US$ 150 mil cada, segundo a imprensa), nem com recursos de onde. Não prosperou a idéia de uma investigação parlamentar (CPI) para o assunto. A imprensa também não deu a devida importância; o assunto morreu e não ocorreram outras averiguações.
Alguns dias após a reeleição, o real, que vinha sendo mantido artificialmente valorizado com grande prejuízo para o Brasil, inclusive assim facilitando as importações e inviabilizando as exportações, despencou à metade. A inflação imediatamente tornou a subir, as taxas de juros dispararam para níveis de meliantes (cerca de 45 % a Selic e mais de 170% ao ano para a pessoa física, pelo menos no meu cheque-ouro). Foi a "Crise do Brasil" que abalou os mercados em todo o mundo.
A grande aprovação popular ao nosso reeleito caiu em poucos meses a 23%. O FMI e os grandes bancos, como o Citibank, no entanto, ainda queriam adicionais medidas liberalizadoras brasileiras e, por isso, apoiavam fortemente o nosso governo, com intensas campanhas de apoio na nossa grande imprensa. Emprestaram ao Brasil quarenta e dois bilhões de dólares, para que pudéssemos continuar pagando os elevados juros da enorme e crescente dívida externa e para que não alterássemos o curso do aprofundamento no Brasil do modelo que muitos chamavam de "neoliberal". Não me interessa discutir sobre apelidos, pois alguns diziam que era imbecilidade chamar de neoliberal. O correto seria chamar apenas de "medidas flexibilizadoras em benefício do capital".
A EMBRATEL
Nesse contexto surge a origem do problema embutido na acima mencionada notícia de Eliane Catanhede na FSP em 01/02/2008.
O Brasil marcou, no final daquela estranha década de 90, um tento surpreendente e inédito no mundo, que foi muito elogiado no exterior e aqui também.
Foi passarmos 100% do controle dos serviços de telecomunicações de longa distância do país (a EMBRATEL) para somente uma empresa norte-americana!
A compradora estadunidense da EMBRATEL foi para a pré-concordatária MCI, ex-WorldCom, que veio a ser famosa no mundo pelas gigantescas fraudes contábeis em seus balanços.
Aquela decisão brasileira, inusitada no mundo e ousada, de em 1998 tudo passar para os norte-americanos da MCI, até as comunicações militares (banda X) e o controle de todos os satélites que serviam ao Brasil, foi designada pelo nosso governo, modestamente, como simples “moderna flexibilização do monopólio estatal no setor das telecomunicações”. Obteve, por demais, até o apoio do então Ministro-Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA)!
A MCI (EUA) VENDE A EMBRATEL PARA GRUPO MULTINACIONAL MEXICANO
Um parêntese para um fato mais recente correlacionado com aquela avançada medida brasileira.
Em 2004, a MCI vendeu o controle da EMBRATEL para a mexicana Telmex.
O perplexante para mim, àquela altura do jogo, não foi a revenda. Afinal, já era assunto de passagem de propriedade entre estrangeiros, tratada somente no exterior entre eles.
Admirou-me o detalhe de um consórcio de empresas brasileiras (Telemar etc, Grupo Calais), que queria comprar a nossa ex-estatal, pagando 47% a mais do que a mexicana, ter que submeter suas reclamações e reivindicações à justiça, mas a dos EUA!!!
A justiça estadunidense, obviamente, decidiu a favor da venda para a Telmex, como a norte-americana MCI desejava.
Divulgou-se que a justiça norte-americana assim decidira, sobretudo, porque o jornal “Folha de S. Paulo”, em uma feliz coincidência para a MCI, divulgou, nas vésperas do julgamento nos EUA, um possível grande escândalo. Outros grandes jornais também ocuparam seus espaços com aquele enorme eventual problema.
Foi o indício de um consórcio brasileiro, concorrente da MCI/Telmex, estar com a intenção de eventualmente formar no Brasil, no futuro, um cartel, caso assumisse a EMBRATEL, com a possibilidade de depois virem a estabelecer os preços pelo teto, o que poderia ser, caso isso viesse a ser verdade, muito prejudicial para o consumidor brasileiro.
Com grande cobertura jornalística, até a nossa polícia foi acionada para procurar os tais indícios, com repercussão na corte de justiça dos EUA, contribuindo, segundo lá noticiado, para ela decidir pela solução desejada pela dona norte-americana da EMBRATEL: a justiça dos EUA aprovou a venda, pela MCI para a Telmex, das telecomunicações brasileiras, todas, inclusive as sigilosas miltares e as estratégicas. Logo após aquela decisão da justiça norte-americana, o assunto morreu, sem mais notícias na imprensa brasileira.
AINDA ARGENTINA x BRASIL
Voltemos à emocionante competição dita "neoliberal" entre Menem x FHC.
Menem, por intermédio do seu Ministro das Relações Exteriores (Guido di Tella) não quis ficar atrás do Brasil e também ousou desmesuradamente.
Confessou com grande coragem que aquele país desejava “relações carnais” com os EUA, o que levou a inteira nação argentina a posições constrangedoras.
O pagamento para aquelas relações não veio a ser compensador para a Argentina. Ela foi deixada em estado lastimável, apesar do humilhante alinhamento incondicional e automático com os EUA e de, exemplarmente, ter obedecido a todos os desejos e às prescrições das agências internacionais de empréstimos, sendo alvo na época de constantes elogios do G-7, do FMI e do então presidente Clinton.
A cura pela Argentina de suas feridas, depois daquelas “relações carnais”, segundo mais tarde expressou o presidente George W. Bush (filho), “é problema dela, que desse modo quis soberanamente, e näo do contribuinte americano”.
O único mimo que a Argentina recebeu foi um enfeitado diploma de “aliada dos EUA extra-OTAN” honorária (“major non-Nato ally-MNNA”), sem qualquer benefício prático significativo.
Assim, Menem venceu FHC naquela disputada competição.
Ao final de seus respectivos extensos mandatos, Menem (1989-1999) e FHC (1994-2002) ainda tinham, e têm, muitos admiradores. No Brasil, o PSDB/DEM/FHC contam com, praticamente, o apoio total da nossa grande mídia
Desse modo, lembrando aqueles fatos, faz todo o sentido agora gastar novamente US$ 1,5 bilhão para recuperarmos, como bem disse Eliane Catanhêde, ao menos o controle da “banda X, de comunicação militar e de defesa estratégica, informações meteorológicas e modernização do controle do tráfego aéreo.”
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