Há dois dias, o site “Vermelho” postou boa entrevista com o cientista político Marcelo Coutinho do IUPERJ, publicada no JB Online.
“Ao lado da professora Maria Regina Soares de Lima, o cientista político Marcelo Coutinho fundou, há cinco anos, o Observatório de Política Sul-Americana (OPSA) do Iuperj, transformado nesse período em uma das maiores referências nas análises da região.
Coutinho acaba de lançar o livro Crises institucionais e mudança política na América do Sul, resultado de sua tese de doutorado, defendida há três anos no próprio Iuperj.
No livro, exibe a chave para a compreensão das instituições da América Latina: a inclusão política é o eixo para a estabilização dos regimes democráticos.
A lição serve para os problemas enfrentados por governos como Evo Morales, na Bolívia, Hugo Chávez, na Venezuela, ou Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil.
O segredo da estabilidade, informa o livro, está na capacidade de definir acordos nacionais e estabelecer padrões de cooperação - coisa que, no caso boliviano, não se está conseguindo.
Nesta entrevista, Coutinho vai além. Mostra as raízes políticas e econômicas dos abalos institucionais em alguns países, compara Chávez e Morales e revela que a força política das populações mais pobres da região não é ideológica. À direita ou à esquerda, tanto faz: elas vão reagir se não forem atendidas.
SEU LIVRO ABORDA OS FATORES QUE CONDUZEM OS PAÍSES À INSTITUCIONALIZAÇÃO DA DEMOCRACIA. MOSTRA QUE A ACOMODAÇÃO DA DIVERSIDADE E A COOPERAÇÃO ENTRE OS ATORES POLÍTICOS FAVORECE ESSE CAMINHO. POR QUE ALGUNS PAÍSES CONSEGUIRAM MAIS ESTABILIDADE DEMOCRÁTICA DO QUE OUTROS? O QUE PESA PARA DAR CERTO?
- Tento justamente explicar por que algumas democracias da América do Sul conseguiram se estabilizar no período pós-autoritário e outros ainda vivem um ciclo de crises institucionais, como é o caso da Bolívia.
Em busca dessa explicação, comecei a estudar padrões de interação política de maneira comparada entre esses países e ficou bastante claro o fato de que países que tinham instituições e padrões de comportamento de interação política mais inclusivos foram justamente aqueles que conseguiram estabilizar e institucionalizar suas democracias nos últimos 10 anos ou 15 anos.
Há um grupo mais estável, Brasil, Chile e Uruguai. São aqueles que estabeleceram padrões de interação mais inclusivos. O Chile através da sua concertação no período de transição democrática, de 1990-91 até hoje. O Uruguai também. E Brasil alcançou esse patamar de maior estabilidade institucional a partir de 1989, com o processo de afastamento do presidente Collor. Naquele momento há uma virada da política brasileira em favor de uma maior institucionalização política. Ali houve uma crise muito séria, mas sem qualquer ameaça às instituições. Ao contrário, as instituições processaram a crise de uma maneira muito eficiente. E a própria crise gerou um comportamento mais inclusivo. Foi um marco nas relações políticas do país.
VOCÊ CITA A MEMÓRIA COMO UM FATOR IMPORTANTE. POR QUÊ?
- Veja aquela circunstância de 92. Ficou registrada na memória dos atores políticos, em geral na memória da nação, e aquilo passa a ser muito importante na maneira como vão enfrentar futuras crise. A crise de 92 é uma espécie de retrovisor por onde os atores políticos olham antes de tomar qualquer tipo de atitude.
OS PAÍSES ANDINOS SEGUIRAM TRILHAS MAIS TORTUOSAS. FALTOU-LHES ESSA COOPERAÇÃO E ESSA MEMÓRIA?
- Uma vez encontrado o momento-chave da virada institucional, me interessou também analisar o lado oposto, ou seja, casos em que a estabilidade política é menor, sobretudo nos países andinos: Bolívia, Peru, Colômbia, Equador e Venezuela.
O único país do Cone Sul que reproduz esse padrão de maior instabilidade é o Paraguai. Os países andinos são, em geral, mais instáveis e menos inclusivos. Nos casos desses países andinos há uma característica muito interessante: o esgotamento do seu sistema partidário nos últimos 20 anos. O sistema partidário entra em colapso.
Encontramos nos países andinos uma seqüência de crises institucionais, seja por revoltas sociais, como é o caso da Bolívia e do Peru, seja por intermédio de golpes ou tentativa de golpes, como foi mais recentemente o caso venezuelano.
Um outro sinal de crise institucional é a guerra civil interna, no caso colombiano. E a interação política e as instituições que lidam com esses processos mais críticos nos países andinos são interações excludentes, baseadas nos confrontos e não na cooperação.
Nesses países gera-se uma seqüência de crises porque nunca se chega ao um acordo de fato. Falo em acordos mínimos, com respeito à democracia do país. Sempre prevalece o padrão do confronto, do antagonismo e da exclusão.
NÃO SÓ PROTAGONIZADO PELA OPOSIÇÃO, MAS POR QUEM ESTÁ NO PODER.
- Exatamente. Enquanto Brasil e Chile, por exemplo, estabelecem governos de coalizão ampla, esses países, em geral, estabelecem coalizões muito restritas, quando não governos minoritários.
Dois casos se diferenciam: Bolívia e Colômbia, que tiveram grandes coalizões no período pós-autoritário. Acontece que eram coalizões montadas em bases que não correspondiam à diversidade política e social do país. Vou dar o exemplo da Bolívia mais uma vez, que viu ser deixada de fora das coalizões grande parte da diversidade social do país. Foi o caso do movimento indígena, o contingente populacional disperso em alguns movimentos sociais e organizações políticas.
No caso colombiano, embora alguns governos também tivessem estabelecido grandes coalizões parlamentares, a guerra interna diminuiu muito o esforço dessas coalizões porque grande parte desse contingente populacional ou mesmo territorial do país não está contemplada neste cálculo.
Quando se olha o mapa das Farc observa-se claramente que mais ou menos 30% ou 40% do território é tomado por forças não institucionalizadas, forças que estão para fora do processo político democrático.
Tudo isso para dizer que há nos Andes instituições e interações políticas menos inclusivas em comparação aos países do Cone Sul. No caso especificamente do Peru, eu me preocupei em entrar um pouco mais a fundo.
E NA COMPARAÇÃO COM O BRASIL, VOCÊ APONTA O PERU DE FUJIMORI COMO UM PAÍS DE POLARIZAÇÃO E RIVALIDADE, CONTRA A INCLUSÃO E A COMPOSIÇÃO BRASILEIRAS.
- Mais inclusão significa mais estabilidade. Isso fica bastante evidenciado nos primeiros testes de hipótese. Na segunda parte do livro há uma parte mais histórica comparativa. Comparo precisamente o caso brasileiro com o caso peruano, sobretudo porque são coincidentes no tempo. Ambas as crises acontecem em 1992. Mas não só por causa disso. Ambos apresentam padrões institucionais muito semelhantes, anteriores à crise de 92. São sistemas presidencialistas, multipartidários, com regras eleitorais muito semelhantes, um Executivo muito forte. São países que também passaram por regimes autoritários, tiveram sua transição para a democracia através de um processo muito negociado, ao contrário de outros padrões de transição na região, onde houve uma ruptura maior. São também países com uma desigualdade social muito grande.
Há diferença entre eles. O Brasil é uma economia mais diversificada, mas em termos políticos institucionais apresentam grandes semelhanças. Isso tudo me permitiu criar um quadro comparativo que me assegura que o que aconteceu em 92 foi decisivo para a trajetória política posterior de ambos os países.
Se no Brasil observamos uma gradativa cooperação, formação de um consenso nacional que leva ao afastamento do presidente, dentro das regras democráticas, no caso peruano observamos o oposto. Há um processo de polarização crescente que leva a um autogolpe dado pelo então presidente Fujimori, que rompe com as instituições democráticas e estabelece uma polarização muito aguda dentro do país, um confronto muito aberto. Esse padrão de polarização vai se seguir pelos anos seguintes.
Fujimori sofre, seis meses depois, a tentativa de um contragolpe e a partir disso há uma seqüência de deterioração institucional peruana que leva a um período autoritário, algo que destoa do cenário regional pós-transição.
Toda a América do Sul, a partir de 91, é uma região democrática. Um dos poucos contra exemplos é justamente este período fujimorista peruano. Mesmo depois do Fujimori, no caso o presidente Alejandro Toledo, observamos que essa memória institucional que ficou do conflito e do seu resultado de 92 continua a prevalecer, a condicionar ou a influenciar fortemente o comportamento político dos atores.
HÁ UM CÁLCULO POLÍTICO?
- Sim, um cálculo. O governo Toledo enfrentou grandes dificuldades institucionais. Chegou a ter menos de 10% de popularidade, sofreu revoltas sociais, decretou vários estados de sítio, estados de exceção, sempre rodeados de rumores de golpe, de processo de interrupção precoce, até assumir Garcia.
Veja que isso independe da ideologia do governo e do seu programa econômico. O governo Toledo é um governo de recuperação econômica.
Mesmo agora no caso boliviano, se pegamos as médias de crescimento econômico e de inflação, a média dos últimos anos é superior a qualquer coisa que você queira verificar, até mesmo no que diz respeito à renda derivada do petróleo e do gás que quintuplicou depois da nacionalização.
Uma coisa importante do livro é salientar que o problema institucional sul-americano não é de natureza econômica, mas de natureza política. Não há essa associação: crise econômica, crise institucional; crise institucional, crise econômica. As duas coisas não estão combinadas.
Uruguai e Argentina passaram talvez pela pior crise da história da América Latina, entre 1998 e 2003. A crise no Uruguai é tremenda, conduz a uma fuga dos jovens, mas as instituições políticas passam incólumes. Há uma alternância politica muito importante, que leva à ascensão de uma frente ampla de esquerda. As esquerdas chegam ao poder, mas sem qualquer fissura ou ameaça à estabilidade do país.
A virtude, portanto, está na capacidade de inclusão de novas frentes, de novos atores políticos. Ao incluir, esses regimes fazem com que se reproduzam de maneira mais estável no tempo.
NO BRASIL MUITAS ANÁLISES SE ACOSTUMARAM A IDENTIFICAR ASSOCIAÇÕES DE ELITES, NUM ACORDO PARA MANTER O STATUS QUO. A TESE AINDA É VÁLIDA? COM ELA, A IDÉIA DA INCORPORAÇÃO NÃO FICA ESMAECIDA?
- Essa aliança das elites é o padrão histórico da América Latina. Se olharmos para uma série de 100 ou 200 anos, fica claro que o padrão é de acordos de conveniência das elites. Agora há duas novidades na região. Esse acordo ocorre dentro das regras democráticas. Esse é o marco que diferencia a história política recente. Uma outra característica importante é ascensão de esquerdas, em muitos casos, e de nacionalistas, de outros, dentro das regras democráticas.
Foi um teste. Começou com o Chávez em 99 na Venezuela, depois vieram Lula no Brasil, Kirchner na Argentina, Vásquez no Uruguai, Bachelet no Chile, Correa no Equador, Morales na Bolívia e, por último, a vitória de Fernando Lugo no Paraguai, que finaliza 60 anos de domínio do Partido Colorado.
Esse é um teste decisivo. Não é um teste final, porque uma das contribuições do livro é mostrar que a democracia é algo vivo, um processo inacabado. É mais interessante trabalhar com a idéia de estabilidade do que de consolidação. Consolidação dá uma idéia de permanência, que não existe na democracia.
NO MEIO DO TESTE, PORÉM, HOUVE O GOLPE CONTRA HUGO CHÁVEZ.
- O golpe que afastou Chávez por 48 horas seguiu o modelo clássico, de conveniência das elites, com respaldo das Formas Armadas e em concordância com setores empresariais, corporativos e políticos. Até aí não houve novidade.
A novidade foi o que aconteceu depois: o retorno do presidente. O acordo entre as elites não foi suficiente para derrubar o presidente e resolver aquela questão.
Tanto foi assim que Chávez voltou pelo clamor popular. Não foram forças superiores, obscuras, mas o clamor popular que o levou a retornar ao poder.
Veja com isso que a democracia no país se torna completamente distinta do padrão anterior. Houve um empoderamento da sociedade, sobretudo da população mais carente, que sempre foi uma maioria, mas nunca se expressou coletivamente e de modo tão contundente. Foi justamente essa base popular que o fortaleceu tanto.
NO LIVRO VOCÊ CREDITA A ASCENSÃO DOS GOVERNOS DE ESQUERDA TAMBÉM AO FRACASSO DAS POLÍTICAS DE CORTE NEOLIBERAL.
- Sim, esse novo momento sul-americano é um processo de mudança resultado em grande parte do fracasso das políticas implementadas até o fim dos anos 90 de maneira muito radical, o chamado neoliberalismo, Consenso de Washington ou reformas econômicas em direção ao mercado. Essa agenda predominou do fim dos anos 80 até o fim dos anos 90.
O primeiro país da América do Sul a adotar essa agenda foi o Chile de Pinochet, que se tornou laboratório para o mundo inteiro. E o primeiro país democrático a adotar essa agenda foi justamente a Bolívia. O primeiro decreto neoliberal data de 1985 e se deu justamente na Bolívia.
De lá para cá, privatizações, abertura comercial, desregulamentação da economia, redução do Estado e assim por diante. Passados 20, 15 ou 10 anos, a depender do caso, o resultado final foi desastroso. A Argentina passou pela sua pior crise. O Uruguai também. O Brasil passou por duas crises muito sérias, em 98 e 2002. O mesmo acontece com a Bolívia, o Peru e a Venezuela.
MAS O QUE MUDA DO PONTO DE VISTA DEMOCRÁTICO?
- A Venezuela, por exemplo, sempre foi muito dependente do petróleo. Acontece que o pacto que regia as relações políticas no país até os anos 90 começou a se deteriorar a partir da capacidade desse pacto de se traduzir em benefícios econômicos. O pacto é importante para a institucionalização da democracia, mas ele tem limites. Esbarra na pobreza e na desigualdade social.
O caso venezuelano é exemplar nesse sentido. Levou à estabilidade no país por quase 40 anos e fez com que a Venezuela não experimentasse os regimes autoritários que a América Latina experimentou naquele momento. Mas houve um processo crescente de deterioração das instituições, resultado da incapacidade dessa democracia de se traduzir em um ganho substancial para as populações mais carentes.
Essas populações se tornam nos últimos anos mais autônomas, muito ciosas de seus interesses. Esse processo leva à ascensão de frentes mais à esquerda, ou mais de centro-esquerda, ou nacionalistas.
Começa aí a alternância.
MESMO COM ESSA ALTERNÂNIA, MESMO COM A RECUPERAÇÃO ECONÔMICA DOS ÚLTIMOS ANOS, O NÍVEL DE CONFIANÇA NA POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA EM GERAL CONTINUOU BAIXO. OU SEJA, OS GOVERNOS DE ESQUERDA NÃO FORAM SUFICIENTES PARA RECUPERAR ESSA CONFIANÇA. POR QUÊ?
- Há um desgaste dos políticos, não da democracia. E isso ocorre não só na América Latina, mas também nos EUA e na Europa. Esse desgaste é resultado de outras forças, de outras esferas, que passam a concorrer com os políticos, com a maneira tradicional de representação política.
Uma segunda observação é que é preciso ver com cuidado o resultado dessas pesquisas, não levá-las em consideração de maneira tão severa por questões metodológicas que não vem ao caso.
A terceira observação é que a autonomia da sociedade verificada nos últimos anos vale para qualquer um. Não é uma autonomia ideológica. Não é uma autonomia de esquerda. A autonomia, sobretudo das populações mais carentes sempre alijadas do processo político e econômico, não é partidária. Se atende, ótimo. Se não atende, o problema começa.
Não à toa, os líderes que surgem desse ciclo político regional começam a gerar políticas voltadas para essas populações, com uma série de programas cujo foco são justamente essas populações mais carentes.
O que se destaca nas políticas sociais dos últimos seis, sete anos são as políticas focalizadas, que atendem a um setor da sociedade que hoje tem poder político e consciência do seu poder decisivo de escolha dos futuros governos.
EVO MORALES E HUGO CHÁVEZ SÃO A MESMA COISA?
- Não. Não são a mesma coisa, nem têm a mesma origem. Chávez é um ex-militar, um comandante. A sua inserção no processo político se inicia com um golpe. Não traz consigo um partido. Esse partido é construído à medida que ele governa e estabelece uma hegemonia política dentro do país.
Morales tem uma origem sindical. Ele se insere no processo político de maneira institucionalizada. Passa a participar das eleições, perde a primeira, há uma mobilização política crescente no país e vence em 2005.
Há também diferenças estruturais significativas entre ambos. A Venezuela conta com alguns recursos naturais que na Bolívia não se encontra. Por outro lado, a Bolívia enfrenta problemas internos de maneira bem distinta da Venezuela. Esta era estável e há um processo de desestabilização que leva à ascensão de Hugo Chávez.
No caso boliviano, essa estabilidade nunca ocorreu. A Bolívia é uma seqüência de crises históricas. Morales chegou ao poder e sua força política junto à população não pára de crescer. Há uma singularidade, a nacionalização do seu principal recurso estratégico, o gás. Isso o aproxima a Rafael Correa, do Equador. São governos que se elegem com o compromisso de adotarem outra agenda e utilizar essa receita oriunda dos hidrocarbonetos em benefício das populações mais carentes.
Mas há hoje na região um cenário mais diversificado, mais completo e mais democrático na região. Não dá para colocar tudo no mesmo saco.
CHÁVEZ É UM DEMOCRATA?
- É difícil classificá-lo como democrata ou não. A Venezuela vive hoje o que vivemos no Brasil, resguardadas as diferenças, nos anos 40 e 50: um político que rompe com oligarquias, um país em defesa de um recurso natural (no Brasil, era "o petróleo é nosso") e a convicção de que é preciso olhar mais de perto as populações mais pobres, ultrapassar os limites de um regime elitista.
Tudo o que observamos em meados do século 20 observa-se agora. Não em todos. Peru e Colômbia são casos específicos. Colômbia vive uma questão maior, que supera todos, que é o problema da segurança. Em 2007, o governo Chávez não foi democrático, ao defender a extensão do mandato.
Não estou entre aqueles que a reeleição é, por si, um problema. Reeleições foram inseridas na América do Sul pelos governos liberais.
MAS O PROBLEMA É A MUDANÇA DAS REGRAS COM O JOGO EM ANDAMENTO.
- Foi o que ocorreu nos anos 90. O Chávez hoje é mais democrático do que em 2007. E o Chávez de 2002 é muito mais democrático do que qualquer coisa que existia na Venezuela. Por isso é importante ter essa análise baseada nos atos, nos fatos, no processo político. Os primeiro anos do Chávez são muito democráticos. Ele rompe com um acordo oligárquico de pessoas que estavam alojadas no poder e na PDVSA. Era um governo legitimamente instituído com grande apoio popular. E sem crescimento econômico nos dois primeiros anos. Em 2007, há um período mais obscuro na Venezuela. Foi um ano decisivo. E o que a sociedade venezuelana fez? Disse não. É a sociedade mais autônoma que diz não à sua liderança mais carismática. Ela estabeleceu um limite. É um exemplo claríssimo da força alcançada pela sociedade sul-americana.
E MORALES? ELE ENFRENTA A FORÇA DOS AUTONOMISTAS?
- Com Morales há sem dúvida uma mobilização de setores da sociedade boliviana, até então desalojadas do processo político, e a incorporação de outras forças . A maioria, indígenas. Se acrescentarmos setores de trabalhadores, do proletariado, isso chega com facilidade a 60% da população ou mais. Uma maioria que surge com muita força. Não foi uma revolução, mas uma eleição que levou à vitória de Evo. Nesse sentido, a sociedade confere a esse novo governo a prerrogativa de mudar uma série de coisas.
A história da Bolívia é de expropriação de riquezas. O único bem que eles têm é o gás. A Bolívia compete com o Paraguai para ver quem é o país mais pobre da América do Sul. E a maioria da sociedade boliviana confere ao Evo a prerrogativa de mudar essa situação. Eles dizem: "Dessa vez é preciso que esse bem nos traga algum benefício concreto". Se o presidente Evo não executasse isso certamente ele cairia rápido. Ele tem consciência disso, não só porque é oriundo desses setores como também é um animal político.
MAS COMO ELE SAIRÁ DO IMPASSE?
- O livro mostra que o segredo da estabilidade da democracia na América Latina está na capacidade de inclusão política, no estabelecimento de acordos nacionais, de padrões cooperativos, de consensos mínimos, de ações orientadas para a cooperação e não para o confronto. Esse é o segredo institucional sul-americano.
A Bolívia está precisando resolver esse dilema institucional. Eu diria que nem ele nem a oposição estão conseguindo até aqui. Mas as crises institucionais são uma oportunidade para o início de processos virtuosos de estabilização política. Esse momento é decisivo. Temos o privilégio de poder assistir e verificar. Acredito que o estabelecimento de uma federação seja uma saída para o caso boliviano. Não uma federação com autonomia completa. Mas um equilíbrio entre o governo central, que responde à maioria maciça da população, e partes do país muito delimitadas que querem algum grau de autonomia para gestão dos negócios públicos. Se nessa mesa de concertação for alcançado o equilíbrio dessas duas coisas teremos a institucionalização de uma democracia não só multiétnica como federativa. Sairão todos ganhando. Se o padrão for outro, nenhum dos dois sairá vencedor. Seja a oposição, que não terá a autonomia almejada, seja o presidente que, embora tenha a maioria da população, não conseguirá implementar as suas políticas e garantir a vigência da nova Constituição.
Constituição esta preparada sob critérios não inclusivos. Lembre-se que a oposição não participou. Começou mal. Se não há um entendimento de todos, aquela Constituição sempre vai ficar sob suspeita, sempre será uma fonte de instabilidade muito grande.
A RECÉM-CRIADA UNASUL PODE AJUDAR?
- Esta é a grande novidade histórica, que está sendo decisiva para o estabelecimento do diálogo interno da Bolívia. Existe agora um fórum, um espaço que não havia. O conflito foi discutido entre os presidentes sul-americanos. Não foi levado para uma outra instância. Foi discutido em Santiago, não em Washington. Favorece esse diálogo interno porque estabelece um parâmetro. É como um alerta dos sul-americanos: "Não adianta porque não vamos aceitar golpes".
A Unasul constrange atitudes não institucionais e comportamentos não cooperativos. Auxilia a alcançar o segredo institucional sul-americano com mais velocidade. É uma novidade e tanta. Um marco regional. Podemos observar a institucionalização da democracia boliviana, a partir do entendimento nacional, mas que encontra respaldo de uma instância regional com países vizinhos, que compartilham ou compartilharam processos políticos muito semelhantes”
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