O jornal espanhol El País ontem publicou a seguinte reportagem de Soledad Gallego-Díaz, em Buenos Aires (li no UOL em tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves):
"O trabalho duro começa depois da cúpula. Todos sabemos que o futuro da América Latina depende em boa parte do papel predominante dos dois países decisivos no hemisfério: Estados Unidos e Brasil. O futuro depende das relações de compreensão e equilíbrio que se construam entre Washington e Brasília". A análise de David Rothkopf, especialista americano que ocupou um alto cargo no Departamento do Comércio, resume um dos grandes temas que permeiam a cúpula de Trinidad e Tobago. Como o governo de Barack Obama responderá às tentativas do Brasil de imprimir sua marca no continente e de exercer uma liderança pouco dissimulada?
Tradicionalmente, Washington tentou isolar o Brasil do resto da América Latina, buscando relações bilaterais, país a país, e fazendo os países latino-americanos disputar uma posição de favor ou um tratamento preferencial. Durante décadas, os EUA tentaram se apoiar diretamente no México, Brasil, Chile e Peru como parceiros isolados, mas a situação na América Latina, sem ser homogênea, mudou substancialmente nos últimos anos. Os 32 chefes de Estado que estiveram em Trinidad e Tobago foram eleitos democraticamente, e sobretudo o Brasil adquiriu experiência e força e reivindica, com discrição, mas sem deixar dúvidas, que seja reconhecido em uma posição predominante.
O Brasil, afirma Rothkopf, não quer estar no mesmo plano que a Argentina ou o México. "É uma nação que não quer ser vista simplesmente como o maior país da América Latina, mas como um protagonista internacional respeitável e respeitado." Hoje o Brasil é muito mais sensível a qualquer estratégia americana que pretenda isolá-lo do continente ou que se esforce para conter sua influência.
O teste foi a megacúpula convocada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro na Costa do Sauípe, da qual pela primeira vez participaram representantes de toda a América Latina e do Caribe, incluindo Cuba, sem a presença dos EUA nem da Espanha. Sauípe foi uma grande demonstração da força diplomática brasileira e marcou um feito importante, não só pelo regresso de Cuba aos fóruns latino-americanos, mas também por representar o poderoso reaparecimento do México como interlocutor do Brasil.
Obama tem consciência de que os EUA precisam recompor seu prestígio na América Latina, muito deteriorado na etapa Bush, e de que sua oferta para acabar com o unilateralismo não pode ser válida só para a Europa. A forma como reagirá à nova posição do Brasil pode ser muito reveladora. É certo que nem Obama, nem qualquer presidente dos EUA, estará disposto a renunciar a seu papel de protagonista na área americana, entendida de maneira global.
"A presença de outros poderes na América Latina", disse Obama em um dos debates presidenciais, "é mais notória devido à nossa ausência."
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A presença de China, Japão e inclusive Rússia e Irã na América Latina se acentuou na última década, em busca dos produtos alimentícios e minérios que muitos países da região, especialmente o Brasil, podem exportar em quantidades maciças. Mas essa presença se fez ainda mais notória, como advertiu Obama, devido à progressiva ausência dos EUA, absorvidos no Oriente Médio, Iraque e Afeganistão.
Isso provavelmente é algo que o governo Obama vai querer corrigir com urgência, aproveitando também a formidável popularidade do presidente americano na América Latina e no Caribe, que não é alheia a sua condição racial. Até o regime de Castro encontra dificuldades para aceitar o enorme orgulho que Obama desperta entre os negros cubanos.
O que importa saber agora é se o governo americano continua acreditando que o destaque do Brasil pode ser uma ameaça para seus próprios interesses, ou se considera possível compatibilizar as agendas dos dois países, afirma Kellie Meiman, autor de um trabalho sobre as possibilidades de cooperação entre EUA e Brasil. Essa é uma das perguntas que muitos especialistas na América Latina estão se fazendo nestes dias nos corredores de Trinidad e Tobago.
O reequilíbrio das relações entre os dois maiores países da América, decisivo para a estabilidade democrática e econômica do hemisfério, não está isento de grandes dificuldades, porém.
Primeiro porque para exercer essa liderança o Brasil tem de resolver alguns problemas diplomáticos sérios com Paraguai, Bolívia e Equador, e porque tem de conseguir também que a Argentina aceite um desenho mais realista de seu papel na América Latina. A Argentina, que sempre pensou no Brasil como um país "periférico", menos educado e mais desigual, percebe hoje que é Buenos Aires que ocupa essa posição secundária. Absorta em seus problemas políticos internos, a Argentina tem enormes dificuldades para voltar a analisar seu papel internacional e para reconhecer que, provavelmente, sua melhor opção seria ligar-se a Brasília, como um dia a França se ligou à Alemanha.
Para os EUA também não será fácil aceitar a liderança do Brasil, que rejeita taxativamente qualquer ingerência de Washington nos assuntos internos dos países latino-americanos e que se oferece como interlocutor não só na região como em todos os organismos internacionais. Entretanto, os dois países terão de encontrar uma solução para o futuro da Organização de Estados Americanos (à qual Cuba não pertence, mas os EUA sim, e na qual, diga-se de passagem, a Espanha está pressionando novamente para conseguir uma melhor posição que a de simples observadora) e para o assentamento de outros organismos sem a presença de Washington, como o Unasul, que ajudem o Brasil a manter a estabilidade na região.”
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