Por Mino Carta, em editorial na
revista “CartaCapital”
“Há situações que me causam alguma perplexidade.
Durante o governo Lula, o empresariado queixava-se dos juros escorchantes, com
exceção dos banqueiros, está claro. De sua alegria cuidava o presidente do BC,
Henrique Meirelles. Em compensação, o vice-presidente da República, o
inesquecível e digníssimo José Alencar, defendia com ardor a demanda dos seus
pares.
Agora, o governo Dilma abaixa os juros, e todos se
queixam, em perfeito uníssono. Busco uma explicação, embora me tente recorrer a
um dos grandes escritores do absurdo, movido pela convicção de que somente eles
seriam capazes de explicar o Brasil. Este é um país que consegue viver
contradições abissais, a começar pelo seguinte fato: atravessamos, no mesmo
instante, épocas diferentes. A modernidade tecnológica e a Idade Média política
e social.
No caso dos juros, os lances mais recentes do
governo Dilma revelaram outro fato bastante significativo: muitos brasileiros
que se dizem "empresários" são, de verdade, apenas e tão somente especuladores.
Contaminados pelo vírus do neoliberalismo, acertaram sua irredutível
preferência pela renda no confronto com a produção, e a baixa dos juros os
atinge na parte mais sensível do corpo humano, ou seja, o bolso, como disse há
muito tempo o professor Delfim Netto.
Seria preciso assumir o autêntico papel do empresário e, em vez de acompanhar os movimentos das bolsas e das oligarquias financeiras, trabalhar para produzir e enfrentar a concorrência e riscos variados como, creio eu, vaticinava Adam Smith. Os próprios banqueiros perdem benesses e têm de arregaçar as mangas para voltar às tarefas da Banca di San Giorgio.
O governo Dilma dá um passo adiante em relação
àquele que o precedeu. Mexe com os interesses do poder real, conforme a opinião
de analistas atilados. Ousa o que Lula não ousou. E o balanço da primeira
metade do seu mandato há de registrar esse avanço em primeiro lugar.
É justo perguntar aos nossos botões por que um país
tão favorecido pela natureza não atingiu o grau de desenvolvimento que lhe
compete. E a resposta é inescapável: a “casa-grande” ficou de pé e conseguiu,
sem maiores esforços, a bem da verdade, manter a Nação atada ao seu próprio
tempo de prepotência. “Eles querem um país de 20 milhões de habitantes e uma
democracia sem povo”, dizia Raymundo Faoro.
Poder absoluto de um lado, submissão do outro.
Getúlio Vargas, eleito democraticamente em 1950, tentou enfrentar a casa-grande
e morreu suicidado. O novo desafio demorou 48 anos e começou com a eleição de
Lula, início de um capítulo inédito da história, este por ora a mostrar-se
duradouro. Como se deu com Getúlio, mas em circunstâncias diferentes, o povo
identificou-se com seu líder. No entanto, ao contrário de Getúlio, Lula é seu
povo, e chegou depois de uma ditadura de 21 anos imposta pela casa-grande e de
uma fase da chamada “redemocratização”, na prática voltada à manutenção do
poder real e dos seus privilégios medievais.
Dilma, nesses seus últimos dois anos de mandato,
deu continuidade à obra do antecessor sem deixar de conferir marca pessoal ao
desempenho. De saída, livrou-se de ministros incômodos, como o exorbitante
“operador” Antonio Palocci, ou Nelson Jobim, atucanado militarista. Prosseguiu
pelos caminhos traçados por Lula na política social e exterior e foi recebida
mundo afora como digna sucessora do “cara”. Lança, enfim, as bases de uma
política econômica afinada com os objetivos de um governo social-democrático
habilitado à contemporaneidade do mundo.
Janus bifronte mostra o cenho franzido na face que
encara o passado, enxerga um 2012 difícil, de desenvolvimento econômico medíocre,
abalado por uma crise mundial muito antes que brasileira. Não está desanuviado
o rosto que olha para o futuro. O ministro Mantega promete em 2013 um
crescimento de 4%, ou pouco mais, índice excelente nas circunstâncias. Não me
arrisco a analisar a promessa. As dificuldades para Dilma se espraiam bem além
da situação econômica, a despeito das influências que esta exercerá em outros
quadrantes.
A “Operação 2014”, desencadeada pela mídia contra
Lula e contra o governo não arrefecerá certamente na perspectiva do pleito do
ano próximo. De certa maneira, a campanha eleitoral já partiu e definiu seus
temas recorrentes. Sim, os tempos mudaram e os porta-vozes do poder real não
alcançam a maioria da Nação. Sobram, porém, os problemas criados dentro do PT,
da base governista e até do governo. Semeados, inclusive, pelo Supremo Tribunal
Federal, lunaticamente inclinado a subverter as regras basilares da democracia
e a agredir a Constituição. Será que o ministro da Justiça tem mesmo de
resignar-se diante de tanto descalabro?
Assustam, sejamos claros, um STF e um
procurador-geral da República claramente engajados na "Operação 2014".
Para seu
próprio bem, cabe ao governo uma reação à altura, também em outra frente, para
reestruturar o Partido dos Trabalhadores, hoje dividido, depauperado e em
estado de confusão. Nesse campo, a intervenção do fundador é indispensável.
Lula é o líder em condições de conduzir o partido no retorno ao passado, para
reencontrar aquela agremiação que o sustentou por três eleições e enfim o levou
à Presidência em 2002.
Quanto à base governista, os problemas parecem
insolúveis. Governar exige alianças de ocasião e as melhores intenções acabam
por lastrear o caminho do inferno. Há parceiros confiáveis e outros que veem na
carreira política a escada da vantagem pessoal. Há quem sugira uma ação para
buscar o favor do empresariado. Talvez aqui a tarefa seja menos complicada do
que a tentativa de formular planos comuns com, digamos, o PMDB do
vice-presidente Michel Temer e do senador José Sarney, ou com o PDT de Miro
Teixeira e outros do mesmo jaez.
Permito-me, de todo modo, [indagar] como se daria a
aproximação ao empresariado descontente com a política econômica. Por meio de
um seminário sobre o capitalismo de Adam Smith e John Maynard Keynes? Mesmo
assim, tentativas menos ingênuas poderiam ser experimentadas, com algum êxito,
quem sabe.
Pego-me a olhar para os colegas da redação,
dobrados sobre seus computadores, intérpretes da modernidade, enquanto eu
batuco na minha Olivetti Linea 88. Sou francamente arcaico, mas temo que o
computador me engula como fez e faz com tantos outros. Não escapo à sina,
também eu mereço Ionesco, ou Beckett. Certo é, sem qualquer parentesco com o
absurdo, que às vezes o bonde da história passa pela porta de casa. Não da
minha, é óbvio. Falo de Dilma Rousseff. Sinto nela a crença, a energia, a
determinação, a capacidade e o porte dos escolhidos do destino.”
FONTE: escrito por Mino Carta em
Editorial da revista “CartaCapital” (http://www.cartacapital.com.br/politica/dilma-e-o-destino/).
Transcrito no blog do Noblat (http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2013/01/05/dilma-o-destino-por-mino-carta-481174.asp).
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