Escolhas divinas Por José Luís Fiori "Chegou a hora de enterrar de uma vez por todas, na relação entre as nações, a fantasia arrogante e absurda dos 'povos escolhidos' por Deus. “Agradecemos a Deus pela bomba atômica ter vindo para nós, e não para os nossos inimigos; e oramos para que Ele possa nos guiar para usá-la em Seus caminhos, e para Seus propósitos”. (Por Presidente Harry, S. Truman, cit in P. Anderson, “A política externa norte-americana e seus teóricos”, Ed. Boitempo, SP, 2015 p:42). [OBS deste blog 'democracia&política: Baseados nessa oração, como representantes e monopolizadores da vontade divina, os EUA, "guiados por Deus", usaram as bombas atômicas matando mais de 240.000 civis e deixaram outras dezenas de milhares com terríveis sofrimentos por muitos anos. Foi em Hiroshima e Nagasaki (em 6 e 9 de agosto de 1945), cidades desprovidas de alvos militares. O objetivo foi amedrontar o mundo para assegurar o domínio político-econômico pelos EUA no pós-II Guerra. A supremacia pelo terror. Os norte-americanos foram, até hoje, os únicos com "coragem" suficiente para usar bombas atômicas para matar tantos civis. "Nos primeiros quatro meses após os ataques atômicos, os efeitos agudos das explosões mataram entre 90 mil e 166 mil pessoas em Hiroshima e 60 mil e 80 mil em Nagasaki; cerca de metade das mortes em cada cidade ocorreu no primeiro dia. Durante os meses seguintes, vários morreram por causa do efeito de queimaduras, envenenamento radioativo e outras lesões, que foram agravadas pelos efeitos da radiação. Em ambas as cidades, a quase totalidade dos mortos era de civis" (Wikipedia)]. Do ponto de vista estritamente lógico, é impossível imaginar um Deus que seja único e absoluto e que ao mesmo tempo faça escolhas de qualquer tipo que seja. Mas essa ideia da monopolização unilateral da “vontade divina”, por alguns povos, parece ser muito antiga e persistente, sobretudo entre os que professam religiões monoteístas. O exemplo mais conhecido talvez seja o do povo hebreu, como aparece descrito num dos cinco livros de Moisés, o "Êxodo": “Então Javé chamou a Moisés e lhe disse: agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos, porque a terra é minha. Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Êxodo, 19). Mas essa mesma convicção pode ser encontrada no Zoroastrismo, e na relação preferencial de Ahura Mazda com o povo persa e com o Império Aquemênida, da Ciro, Dario e seus descendentes; na relação de Alá, com os sucessivos impérios islâmicos, desde o século VII d.C; ou na relação do Deus cristão com os povos europeus e seu projeto de expansão e conversão do mundo, a partir do século XVI. E essa mesma ideia está por trás da certeza norte-americana a respeito do seu “destino manifesto” para liderar a humanidade. Uma visão construída pelos seus “founding fathers”, e que permanece viva até hoje, como se pode ler na epígrafe do presidente Truman; ou na ideia do presidente Kennedy, de que “os EUA deviam seguir em frente para liderar a terra... sabedores de que aqui na Terra a obra de Deus deve, em verdade, ser obra nossa” (op cit p 43); ou ainda, na certeza do presidente Bush, de que “a nação americana foi escolhida por Deus e comissionada pela história para ser um modelo para o mundo” (idem, p:43). Essa monopolização da “verdade divina” pode ser absurda do ponto de vista lógico, mas de fato se transformou numa “ideia-força” que cumpriu um papel decisivo através de toda a história humana, tanto dos “povos escolhidos’, como dos “povos não escolhidos” por Deus. Sem essa imagem de si mesmo, talvez o povo hebreu não tivesse conseguido resistir ao assédio dos assírios, dos romanos e de tantos outros povos mais poderosos, superando seu sentimento milenar de inferioridade e de cerco; os persas não tivessem conquistado seu gigantesco império de oito milhões de quilômetros quadrados na África, Europa e Ásia; o Islã não tivesse se expandido de forma tão continua e vitoriosa a partir do século VII; e os europeus não tivessem conseguido impor sua dominação colonial ao redor do mundo a partir do século XVI. Sempre movidos pela mesma certeza ética que levou George Kennan a afirmar, olhando para a destruição alemã, depois da II Guerra Mundial, “que ele se tranquilizava com o fato de que os EUA tivessem sido os escolhidos pelo Todo-Poderoso para ser os agentes daquela destruição”. (op cit, p:42) Nessa história, entretanto, é fundamental distinguir o papel decisivo das religiões na construção das civilizações humanas, da sua monopolização e instrumentalização pelos poderes territoriais e pelos grupos humanos que se autoproclamam superiores e com o direito exclusivo de impor os seus valores aos demais que forem sendo submetidos, convertidos, ou exterminadas pelo avanço e pela “tranquilidade ética” dos “povos escolhidos”. Essa visão unilateral e monopolista da “escolha divina” sempre esteve - e segue estando - por trás de todos os fundamentalismos religiosos, em qualquer tempo e lugar, e que sempre levou à demonização, à desqualificação, à humilhação e à exclusão dos que pensam diferente. Uma radicalização que parece se repetir através da história, em todos os grandes momentos de ruptura e ”perda de horizonte” por parte da humanidade, como está acontecendo de novo, neste início do século XXI. Depois do fim da Guerra Fria, e em particular nesta segunda década do século XXI, os EUA estão vivendo um momento sem precedente de fragmentação do seu establishment, do seu sistema político e da sua sociedade mobilizada por um fundamentalismo religioso cada vez mais agressivo e excludente. E o mesmo está acontecendo na Europa, onde o esvaziamento ideológico do projeto de unificação abriu portas para um aumento contínuo da intolerância dentro do seu próprio território e dentro de toda sua antiga zona de dominação colonial, em particular no Grande Oriente Médio. Um panorama regional que se agrava ainda mais com o distanciamento recente entre EUA e Israel, dois povos que se consideram “escolhidos” e que compartilham a mesma genealogia divina. Mas essa fragmentação e essa radicalização não se restringem mais a esses pontos estratégicos da geopolítica mundial, e têm avançado mesmo em sociedades que pareciam imunes a esse tipo de fundamentalismo e que agora aparecem divididas pela intolerância e pela proposta explicita de negação do diálogo e da convivência, e de exclusão – muitas vezes - da própria pessoa física dos adversários. Como é o caso mais recente da sociedade brasileira, que até hoje se considerava “cordial”, e apenas “abençoada por Deus”. Frente a essa situação que tende a se agravar em todo mundo, só cabe resistir à intolerância com a tolerância, à irracionalidade com a razão, ao fanatismo com a tranquilidade dos que sabem que não existem os “escolhidos” nem existem pessoas superiores aos demais. Junto com a defesa intransigente, no plano internacional, de que chegou a hora de enterrar de uma vez por todas, na relação entre as nações, a fantasia arrogante e absurda dos “povos escolhidos” por Deus." ["Manifestante em Copacabana, em 15 de março, expulsa raivoso da "marcha democrática" um senhor porque ele usava camisa vermelha] FONTE: escrito por José Luís Fiori no portal "Carta Maior" (http://cartamaior.com.br/?/Coluna/Escolhas-divinas/33149). Sobre o autor: José Luís da Costa Fiori estudou Filosofia na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica do Chile (1968-70), se graduou em Sociologia no Instituto de Sociologia da Universidade do Chile (1970), fez Mestrado em Economia na ESCOLATINA, do Instituto de Economia da Universidade do Chile (1973), doutorado em Ciências Políticas, no Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (1985) e pós-doutorado na Faculdade de Economia da Universidade de Cambridge, Inglaterra (2005). Foi professor assistente de Ciência Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em 1974/75. É professor titular de Economia Política Internacional do Instituto de Economia, e do Núcleo de Estudos Internacionais da UFRJ, e professor titular de Medicina Social (aposentado) do Instituto de Medicina Social da UERJ. Foi Diretor de Pós Graduação do Núcleo de estudos Internacionais da UFRJ, e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional do Instituto de Economia e do Núcleo de Estudos Internacionais da UFRJ, desde julho de 2009 até 2011. É conselheiro da Universidade Estadual de Campinas, consultor ad hoc do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, consultor do Ministério das Relações Exteriores - DF, consultor ad hoc do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, consultor ad hoc do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - DF, consultor ad hoc - Editora Brasiliense e membro da Associação Nacional de Pós Graduação Em Ciências Sociais. Já trabalhou e escreveu em vários campos da Ciência Política, mas pesquisa e ensina há mais de 20 anos no campo das Relações Internacionais e, em particular, na área de Economia Política Internacional, com ênfase no estudo das relações entre a geopolítica e a economia política do “sistema inter-estatal capitalista”. Até 2008, publicou 9 livros e organizou 5 coletâneas. Ganhou o Premio Jabuti de Economia, Administração, Negócios e Direito, na Bienal do Livro de São Paulo, em 1998, com o livro “Poder e Dinheiro. Uma economia Política da Globalização”, organizado com a professora M.C.Tavares; e recebeu Menção Honrosa, na Bienal do Livro de 2002, com o livro “Polarização Mundial e Crescimento”, organizado com o professor C. Medeiros. Desde 1990, publicou mais de 300 artigos em jornais como Valor Econômico, Correio Brasiliense, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Jornal do Comercio, e em revistas como Carta Capital, Exame, Praga, Margem Esquerda, Carta Maior, SinPermisso e La Onda. Foi eleito Homem de Idéias de 2001, pelo Caderno de Idéias do Jornal do Brasil. Atualmente é Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ, “O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo”. [Título, imagens do google, trechos entre colchetes e dados sobre o autor acrescentados por este blog 'democracia&política']. |
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