segunda-feira, 30 de março de 2015

O NEOCOLONIALISMO INTELECTUAL





O neocolonialismo intelectual

Uma certa esquerda europeia tem dificuldade de compreender o caráter nacionalista, anti-imperialista, popular, dos governos pós-neoliberais.

Por Emir Sader, cientista político

"A esquerda ocidental sempre teve forte acento eurocentrista. As próprias definições de esquerda e de direita nasceram na Europa e se propagaram pelo mundo.

A esquerda europeia foi basicamente socialista – ou social democrata – e comunista. Tinha como seus componentes essenciais sindicatos e partidos políticos – estes com representação parlamentar, disputando eleições. E grupos mais radicais – grande parte deles trotskistas – que faziam parte desse mesmo cenário politico e ideológico.

Como um dos seus componentes – que se tornaria um problema – o nacionalismo foi enquadrado como ideologia de direita, por sua modalidade chovinista na Europa. A própria responsabilidade atribuída aos nacionalismos nas duas guerras mundiais contribuía para consolidar essa classificação.

Em outros continentes, especialmente na América Latina, essa classificação se replicava, de forma esquemática, mecânica, com a multiplicação de partidos socialistas e comunistas, além de tendências trotskistas.

A inadequação desse esquema foi se tornando cada vez mais clara conforme surgiram forças e lideranças nacionalistas, além de uma parte dos partidos tradicionais da esquerda latino-americana também assumirem posições politicas nacionalistas. Ocorre que na Europa a ideologia da burguesia ascendente foi o liberalismo, opondo-se às travas feudais para a livre circulação do capital. O nacionalismo se situou à direita, exaltando os valores nacionais de cada pais, em oposição aos dos outros e, mais recentemente, se opondo à unificação europeia, porque enfraquece os Estados nacionais.

Enquanto que na periferia o nacionalismo e o liberalismo tem características diferentes. O liberalismo foi a ideologia dos setores primário exportadores, que viviam do livre comércio, expressando os interesses das oligarquias tradicionais, do conjunto da direita. O nacionalismo, ao contrário da Europa, sempre teve um componente anti-imperialista.

A esquerda europeia teve muitas dificuldades com o nacionalismo e o liberalismo em regiões como a América Latina. Como um dos erros provenientes da visão eurocêntrica, líderes como Peron e Getúlio Vargas chegaram a ser comparados por PC da América Latina com dirigentes fascistas europeus – como Hitler e Mussolini – por seu componente nacionalista e antiliberal. Ao mesmo tempo, varias forças liberais latino-americanas foram aceitas na Internacional Socialista, porque defenderiam sistemas políticos “democráticos” (na verdade, liberais) contra “ditaduras”, que seriam encarnadas pelos lideres nacionalistas e seus carismas e suposta ideologia “populista” e autoritária.

Movimentos como as revoluções mexicana, cubana, sandinista, e lideranças nacionalistas como as apontadas acima, foram dificilmente assimiláveis pela esquerda tradicional. O mesmo acontece, de certa maneira, com as características da esquerda latino-americana do século XXI.

Essas mesmas limitações afetam a intelectualidade de esquerda europeia, que herdou o eurocentrismo e o adaptou às suas visões da América Latina. Por um lado, estão os intelectuais social-democratas que, conforme essa corrente, assumiu o neoliberalismo, que perderam qualquer possibilidade de entender a América Latina e a esquerda antineoliberal.

Mas há os intelectuais livre atiradores ou ligados a correntes de ultraesquerda, que desferem suas analises críticas sobre os governos progressistas latino-americanos com enorme desenvoltura, dizendo o que esses governos fazem de errado, o que deveriam fazer, o que não deveriam fazer etc. e tal. Falam como se suas teses tivessem sido confirmadas em algum lugar, sem poder apresentar nenhum exemplo concreto de que suas ideias tenham frutificado e demonstrado assim que se adequariam melhor à realidade do que os caminhos que esses governos seguem.

Se preocupam com tendências “caudilhistas”, “populistas”, de lideres latino-americanos, julgam processos conforme a situação de um que outro movimento social ou uma que outra temática. Têm dificuldade de compreender o caráter nacionalista, anti-imperialista, popular, dos governos pós-neoliberais. 

Sobrevoam como libélulas perdidas sobre esses processos, elogiam algo, logo criticam algo, sem se identificar profundamente com o conjunto desses processos que representam a esquerda no século XXI. Isso tudo escapa a olhos acadêmicos, individualistas, que não participam no dia a dia da construção concreta de alternativas realmente existentes. Passa o tempo e essas visões eurocêntricas não desembocam em construção concreta alguma, impotentes para captar as nervuras contraditórias do real e, a partir delas, propor alternativas que possam ser assumidas pelas massas.

Atuam como se fossem “consciências criticas da esquerda latino-americana” e como se as necessitássemos, não tivéssemos suficiente consciência das razões dos nossos avanços, dos obstáculos que temos pela frente e das dificuldades para superá-los. Enquanto que essas vozes não apenas não podem apresentar resultados de suas pregações nos seus próprios países – que podem ser França, Portugal, Inglaterra ou outro qualquer -, em que se supõe que suas ideias deveriam frutificar com sucesso, como tampouco conseguem explicar – e nem se atrevem a abordar – o porquê nos seus próprios países a situação da esquerda é incomparavelmente pior do que nos países latino-americanos criticados por eles.


São posturas que carregam ainda o eurocentrismo e que se dirigem à América Latina com ar professoral, como se fossem portadores de um cabedal de conhecimento e de experiências vitoriosas, a partir das quais ditariam cátedra sobre nossos processos. Representam, na verdade, apesar das aparências, formas da velha esquerda, que não faz a devida autocrítica sobre suas posturas, seus erros, suas derrotas e retrocessos. A aura acadêmica mal esconde as dificuldades de se comprometerem com processos concretos e, a partir deles, participarem da construção de alternativas.

Cada vez apresentam menos interesse e análises que não desembocam em propostas alternativas de transformação da realidade. As posturas críticas fazem da sua teoria um instrumento intranscendente, sem nenhuma capacidade de captar a realidade concreta, como de transformá-la. Para retomar o velhos esquema: suas ideias jamais se transformam em força material, porque nunca penetram nas massas."


FONTE: escrito por Emir Sader, cientista político, no portal "Carta Maior"  (http://cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/O-neocolonialismo-intelectual/2/33153).

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