“A crise revelou os limites
materiais do neoliberalismo, à margem de ideologias. Não haverá superação da
crise a não ser pela ampliação do espaço público em detrimento do
individualismo ilimitado. Em economia, em matéria ambiental, e em geopolítica.
Cedo ou tarde as forças políticas compreenderão isso. O futuro do
neoliberalismo, portanto, é ser contido ao longo de um novo ciclo de
democratização.
Por J. Carlos de Assis
Vem de Kant, no relato de Bobbio, a
distinção entre as duas liberdades, conceituadas dessa forma desde os
primórdios da Idade Moderna: a liberdade como ausência de limites, e a
liberdade como faculdade de impor os próprios limites através de leis. A busca da
primeira é facilmente reconhecível no Partido Republicano dos Estados Unidos,
sendo que, mais recentemente, tomou a forma generalizada de neoliberalismo
mundo afora; a da segunda, no Partido Democrata, que tomou forma melhor
desenvolvida na social democracia europeia, hoje sob ameaça de estrangulamento
pela política econômica imposta pela Alemanha.
É fácil perceber que a liberdade, como não limites, está ligada, sobretudo, ao campo civil, enquanto a liberdade de se impor as leis a que se deve obedecer está vinculada ao campo político. Já não é tão fácil assim compreender essas duas liberdades como complementares, e não antitéticas. Uma jamais eliminará a outra enquanto houver liberdade em termos gerais. As liberdades civis e a liberdade política são conquistas imperecíveis da civilização. No mesmo movimento em que se criou a liberdade civil, criou-se a liberdade política. Uma depende da outra, como subprodutos do mesmo tronco.
O elemento comum de origem das duas liberdades é o direito à propriedade privada. No campo civil, isso é óbvio, pois a propriedade privada é a pedra basilar do direito civil. Mas o fato é que isso é também verdade no campo político, embora bem menos reconhecido. A palavra democracia, que muitos associam a “poder do povo”, na verdade significava, originalmente, poder dos proprietários: demos, em grego antigo, significa uma medida agrária que era usada para definir as propriedades rurais das famílias que vieram, com Péricles, a comandar a política de Atenas. Só mais tarde demos veio a significar povo.
A Revolução Americana, por sua vez, ancorou-se na afirmação do direito de propriedade privada. Assim também as três primeiras convenções da Revolução Francesa. Justamente por isso, são tratadas como revoluções burguesas. Para tentar conciliar direito civil e direito político, Marx distinguiu propriedade privada em geral de propriedade privada dos meios de produção. Com esse expediente conceitual, estava construído, no campo da ideologia materialista, o instrumento essencial para justificar a revolução e impor a democracia proletária como meio de ampliar o espaço público da liberdade e reduzir o espaço da liberdade individual.
Os liberais reagiram ferozmente, como de se esperar, à ameaça comunista à liberdade civil e política. De certa forma, foram ajudados pelos comunistas porque a suposta democracia política soviética converteu-se em ditadura de partido único. Paradoxalmente, em parte por medo do comunismo, permitiu-se, no pós-guerra, que emergisse na Europa um sistema misto que, de alguma forma, conciliava a liberdade civil com a liberdade política. É a socialdemocracia europeia, em especial a construída no norte do continente. Nos Estados Unidos, o Partido Democrata, sobretudo nos governos Roosevelt (New Deal) e Johnson (Grande Sociedade), conseguiu também importantes avanços da liberdade na esfera pública.
Esse relativo equilíbrio foi rompido por Reagan e Thatcher no início dos anos 80, e depois por Bush. Dessa vez, foi o princípio da liberdade ilimitada que avançou sobre a esfera pública. Firmou-se como uma agenda explícita republicana, ainda em ação, que tomou a forma de pregação, justificação ideológica e implementação do Estado mínimo, com redução de impostos principalmente sobre os ricos, e autorregulação, reduzindo, dessa forma, o espaço do poder público para interferir na economia privada, mesmo quando se trata de monopólios e oligopólios, ou de transações financeiras globais. Foi um movimento amplamente vitorioso em termos mundiais, em especial após o colapso de União Soviética.
O sistema neoliberal como princípio de ordenamento das sociedades e das economias poderia ter tido longa duração não fosse a crise iniciada em 2008. É que as forças de esquerda, patrocinadoras tradicionais das liberdades que buscam a ampliação dos espaços públicos nas sociedades, foram em grande parte cooptadas pelo neoliberalismo em face do desafio da globalização financeira. A crise, contudo, revelou os limites materiais do neoliberalismo, à margem de ideologias. Não haverá superação da crise a não ser pela ampliação do espaço público em detrimento do individualismo ilimitado. Em economia, em matéria ambiental, e em geopolítica. Cedo ou tarde as forças políticas compreenderão isso. O futuro do neoliberalismo, portanto, é ser contido ao longo de um novo ciclo de democratização.”
FONTE: escrito por J. Carlos de Assis, economista e professor de Economia Internacional da UEPB, autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus”, pela Civilização Brasileira. Artigo publicado no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21461) [Imagem do google adicionada por este blog ‘democracia&política’].
É fácil perceber que a liberdade, como não limites, está ligada, sobretudo, ao campo civil, enquanto a liberdade de se impor as leis a que se deve obedecer está vinculada ao campo político. Já não é tão fácil assim compreender essas duas liberdades como complementares, e não antitéticas. Uma jamais eliminará a outra enquanto houver liberdade em termos gerais. As liberdades civis e a liberdade política são conquistas imperecíveis da civilização. No mesmo movimento em que se criou a liberdade civil, criou-se a liberdade política. Uma depende da outra, como subprodutos do mesmo tronco.
O elemento comum de origem das duas liberdades é o direito à propriedade privada. No campo civil, isso é óbvio, pois a propriedade privada é a pedra basilar do direito civil. Mas o fato é que isso é também verdade no campo político, embora bem menos reconhecido. A palavra democracia, que muitos associam a “poder do povo”, na verdade significava, originalmente, poder dos proprietários: demos, em grego antigo, significa uma medida agrária que era usada para definir as propriedades rurais das famílias que vieram, com Péricles, a comandar a política de Atenas. Só mais tarde demos veio a significar povo.
A Revolução Americana, por sua vez, ancorou-se na afirmação do direito de propriedade privada. Assim também as três primeiras convenções da Revolução Francesa. Justamente por isso, são tratadas como revoluções burguesas. Para tentar conciliar direito civil e direito político, Marx distinguiu propriedade privada em geral de propriedade privada dos meios de produção. Com esse expediente conceitual, estava construído, no campo da ideologia materialista, o instrumento essencial para justificar a revolução e impor a democracia proletária como meio de ampliar o espaço público da liberdade e reduzir o espaço da liberdade individual.
Os liberais reagiram ferozmente, como de se esperar, à ameaça comunista à liberdade civil e política. De certa forma, foram ajudados pelos comunistas porque a suposta democracia política soviética converteu-se em ditadura de partido único. Paradoxalmente, em parte por medo do comunismo, permitiu-se, no pós-guerra, que emergisse na Europa um sistema misto que, de alguma forma, conciliava a liberdade civil com a liberdade política. É a socialdemocracia europeia, em especial a construída no norte do continente. Nos Estados Unidos, o Partido Democrata, sobretudo nos governos Roosevelt (New Deal) e Johnson (Grande Sociedade), conseguiu também importantes avanços da liberdade na esfera pública.
Esse relativo equilíbrio foi rompido por Reagan e Thatcher no início dos anos 80, e depois por Bush. Dessa vez, foi o princípio da liberdade ilimitada que avançou sobre a esfera pública. Firmou-se como uma agenda explícita republicana, ainda em ação, que tomou a forma de pregação, justificação ideológica e implementação do Estado mínimo, com redução de impostos principalmente sobre os ricos, e autorregulação, reduzindo, dessa forma, o espaço do poder público para interferir na economia privada, mesmo quando se trata de monopólios e oligopólios, ou de transações financeiras globais. Foi um movimento amplamente vitorioso em termos mundiais, em especial após o colapso de União Soviética.
O sistema neoliberal como princípio de ordenamento das sociedades e das economias poderia ter tido longa duração não fosse a crise iniciada em 2008. É que as forças de esquerda, patrocinadoras tradicionais das liberdades que buscam a ampliação dos espaços públicos nas sociedades, foram em grande parte cooptadas pelo neoliberalismo em face do desafio da globalização financeira. A crise, contudo, revelou os limites materiais do neoliberalismo, à margem de ideologias. Não haverá superação da crise a não ser pela ampliação do espaço público em detrimento do individualismo ilimitado. Em economia, em matéria ambiental, e em geopolítica. Cedo ou tarde as forças políticas compreenderão isso. O futuro do neoliberalismo, portanto, é ser contido ao longo de um novo ciclo de democratização.”
FONTE: escrito por J. Carlos de Assis, economista e professor de Economia Internacional da UEPB, autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus”, pela Civilização Brasileira. Artigo publicado no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21461) [Imagem do google adicionada por este blog ‘democracia&política’].
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