O legado de Eduardo entre a ideologia e o pragmatismo
Por J. Carlos de Assis
"Rei morto, rei posto. Sai Eduardo, entra Marina. Essa seria a ordem natural das coisas. No sistema republicano, vice assume o lugar do principal nos impedimentos deste. É o que deveria acontecer também no curso do processo eleitoral. E é inevitavelmente o que aconteceria, se se tratasse de uma questão lógica, já que o PSB não tem outro candidato viável. Por que, então, a controvérsia?
Examinemos o processo eleitoral no Brasil. Cada candidato à presidência não é apenas o portador de uma proposta política. É um centro de articulação de interesses de sua própria coligação, e um atrator dos interesses externos a ela. Em termos de coligação, o importante não é propriamente a ideologia do líder, mas o tempo de televisão vendido pela legenda. No círculo externo, o importante é a capacidade de obter financiamentos de campanha.
O que diferencia as duas situações é a fisiologia política em seu mais alto grau. Vejamos por que. Temos duas excrescências políticas no país: primeiro, o chamado Fundo Partidário, pelo qual partidos políticos registrados têm direito a recursos públicos na proporção de suas bancadas; segundo, o tempo de televisão gratuito em campanhas eleitorais, pelo qual os partidos podem vender esse tempo para candidaturas majoritárias.
Por que chamo isso de excrescências? Simplesmente porque, numa democracia republicana, são os partidos políticos que constituem o Estado, e não vice-versa. O partido é uma representação parcial da sociedade que luta pelo poder político de representá-la como um todo. Numa palavra, o partido forma o Estado, como expressão da sociedade organizada, e não o Estado forma partidos, através de subvenções financeiras. Ou deveria ser assim.
Não há nenhum sentido republicano numa situação pela qual a sociedade inteira financie, com recursos da cidadania, partidos políticos que representam, pela própria definição de partido, uma parte da sociedade. Justamente por termos essa excrescência, temos quase 40 partidos políticos registrados no país, a maioria dos quais se vende como legenda de aluguel nas campanhas eleitorais.
A segunda excrescência política não é propriamente o horário eleitoral dito “gratuito” mas a possibilidade de os partidos venderem “seu” tempo de televisão. Esse tempo não é deles. Quando se fala em horário “gratuito” talvez o grande público não saiba que não há nada de gratuito, mas sim tempo pago pela sociedade inteira na tevê e no rádio. Portanto, não há sentido republicano em que um partido venda um tempo que não é seu, mas do povo.
Como conciliar o princípio democrático de acesso dos partidos que representam a sociedade aos meios de comunicação com a moralização desse processo? Primeiro, cancelando o direito de tempo “gratuito” na tevê e rádio para partidos que não os utilizem, nas faixas proporcionais ou majoritárias, em nome de sua própria legenda. Segundo, eliminando o Fundo Partidário, que hoje, na maioria dos casos, não passa de um cartório de manipulação de interesses financeiros por parte de profissionais que captam assinaturas para criação e manutenção de partidos artificiais.
Para conciliar democracia com funcionalidade, no caso de campanhas presidenciais ou de governadores o tempo gratuito seria dividido proporcionalmente às bancadas dos partidos que tivessem candidatos próprios, com o tempo sobrante dos outros partidos dividido igualmente entre todos os candidatos. Seria rigorosamente reprimida a venda de tempo de tevê e rádio. No segundo turno, como acontece hoje, o tempo seria igualmente dividido entre os dois candidatos mais votados.
Na vigência de um sistema desse tipo, a sucessão de Eduardo como candidato da coligação liderada pelo PSB fluiria normalmente. Sem isso, os problemas são quase insolúveis. De um ponto de vista ideológico, Marina é a solução natural para efeito externo. Entretanto, só os muito ingênuos ignoram o fato de que, como cabeça de chapa, Eduardo estava no ápice de uma pirâmide de interesses econômicos que estavam bancando ou iriam bancar sua candidatura. Nessa articulação, Marina não tinha grande relevância.
Na verdade, se tivesse relevância, Marina atrapalharia. Era o candidato, e não ela, a figura confiável para o bloco de empresários paulistas que estava apoiando a chapa. Esse bloco não tem qualquer simpatia pelo discurso ambientalista. Por outro lado, os partidos da coligação tinham mais expectativas de ganhar recursos financeiros para seus esquemas de campanhas proporcionais, com a venda do tempo de tevê e rádio para o PSB, do que participar no esquema ideológico da candidatura. Isso terá de ser rediscutido agora.
Realisticamente, no extravagante sistema partidário brasileiro, a maioria dos partidos aguarda as campanhas eleitorais para ganhar dinheiro, não para gastar com propaganda política. Lembrem-se do mensalão: todo o problema começou quando Roberto Jefferson vendeu tempo de televisão para o PT, por R$ 20 milhões, e o PT só teve como pagar R$ 4 milhões. A tragédia, para o PT, não foi que tivesse ganho muito dinheiro na campanha, mas que ganhou menos do que esperava.
O PSB, como líder da coligação de Eduardo, era o centro de confiança dos demais partidos da coligação. Obviamente, houve muitos entendimentos baseados na confiabilidade de um homem para bancar essa campanha presidencial num país continental, extremamente cara tendo em vista as distâncias a percorrer. Agora isso tem que ser reconstruído. A questão, por certo, não é ideológica; é uma questão prática e, em última instância, de interesses.
Essa é, pois, uma escolha de Sofia para o PSB: quem comandará o caixa de uma campanha presidencial que, normalmente, deve estar na mão do candidato ou candidata? Quem será o elemento confiável para os aliados e para os adversários na condução dos compromissos de campanha? E, finalmente, quem será o melhor candidato do ponto de vista eleitoral? Ou seria melhor fazer o que muitos líderes do partido haviam desejado, a saber, uma aliança com o PT ou com o PSDB pela qual o partido perderia um pouco do perfil ideológico, não teria maiores compromissos com aliados no curto prazo e ainda sairia ganhando no campo dos interesses materiais? Contra isso, só haveria um ponto a refletir: na palavra de Gramsci, um pensador muito caro a Roberto Amaral, “você deve trazer o adversário para uma posição da qual ele só pode recuar com desonra”. Onde estará a honra do PSB?"
FONTE: escrito por J. Carlos de Assis*, economista, doutor em Engenharia da Produção pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB. Artigo publicado no "Jornal GGN" (http://jornalggn.com.br/noticia/o-legado-de-eduardo-entre-a-ideologia-e-o-pragmatismo-por-jcarlos-de-assis).
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