Ilustração: Odyr
Era preciso matar Kadafi?
"A eliminação de Muamar Kadafi, no dia 20 de outubro de 2011, significou o fim de seu regime despótico, mas não do caos na Líbia. Os danos colaterais dos ataques aéreos ocidentais afetam todos os moradores do Saara. A fim de evitar tal desastre, antes da intervenção, a União Africana havia proposto uma solução pacífica.
Por Jean Paul Hébert, no francês "Le Monde Diplomatique"
Em 2011, no intervalo de dezesseis dias, duas incursões militares estrangeiras pesadas aconteceram no espaço soberano da África, sem que a União Africana, considerada negligenciável, tivesse sido consultada. Entre 4 e 7 de abril, as tropas francesas intervieram na Costa do Marfim. Alguns dias antes, desde 19 de março, as forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), principalmente francesas e britânicas, tinham começado a bombardear a Líbia.
FONTE: escrito por Jean Paul Hébert no francês "Le Monde Diplomatique" (http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1722). [Trechos entre colchetes acrescentados por este blog 'democracia&política'].
"A eliminação de Muamar Kadafi, no dia 20 de outubro de 2011, significou o fim de seu regime despótico, mas não do caos na Líbia. Os danos colaterais dos ataques aéreos ocidentais afetam todos os moradores do Saara. A fim de evitar tal desastre, antes da intervenção, a União Africana havia proposto uma solução pacífica.
Por Jean Paul Hébert, no francês "Le Monde Diplomatique"
Em 2011, no intervalo de dezesseis dias, duas incursões militares estrangeiras pesadas aconteceram no espaço soberano da África, sem que a União Africana, considerada negligenciável, tivesse sido consultada. Entre 4 e 7 de abril, as tropas francesas intervieram na Costa do Marfim. Alguns dias antes, desde 19 de março, as forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), principalmente francesas e britânicas, tinham começado a bombardear a Líbia.
Para o ex-presidente sul-africano Thabo Mbeki, esses acontecimentos ilustraram “a impotência da União Africana em fazer valer os direitos dos povos africanos perante a comunidade internacional”.
No entanto – fato ignorado pelas mídias –, nesses dois conflitos, a organização cuja comissão eu presidi de 2008 a 2013 tinha formulado soluções pacíficas concretas, que os ocidentais e seus aliados autoritariamente descartaram.
Desde os primeiros dias de 2011, tudo tinha mudado na África do Norte. Em 14 de janeiro, o presidente tunisiano, Zine al-Abidine ben Ali, fugiu. Pega desprevenida, a Europa não interveio. Em 10 de fevereiro, no Egito, Hosni Mubarak renunciou. No dia 12 de fevereiro, a contestação tomava conta da vizinha Líbia. Para os ocidentais, esse último levante foi uma oportunidade: permitiu-lhes interpretar o papel dos "heróis humanitários" e apagar seu apoio aos regimes ditatoriais. Com o voto da Resolução nº 1.973 do Conselho de Segurança da ONU, em 17 de março, eles pensavam [tergiversavam] ter obtido um sinal verde para iniciar uma dança macabra em torno do dirigente líbio Muamar Kadafi.
Entre os protagonistas desse conflito, figuravam em primeiro lugar o "Conselho Nacional de Transição" (CNT) e seus revolucionários heterogêneos, que tinham por único objetivo comum se livrar do tirano. Para isso, um apoio externo era indispensável.
Em segundo lugar, intervinha a coalizão ocidental e seu braço armado, a OTAN, que fizeram uma irrupção, como justiceiros, nessa nova batalha. Eles pretendiam reagir ferozmente às ações de Kadafi e, como tinham feito com Saddam Hussein, eliminá-lo definitivamente. Mas, para se livrar de um único homem e interromper um massacre de civis, era preciso começar uma guerra punitiva dessa amplitude e cometer outro massacre de civis tão inocentes quanto os primeiros? Estavam brincando com fogo e já podiam prever o caos que, como na Somália, no Iraque, no Afeganistão e em outros lugares, resultaria disso.
O campo ocidental contava naturalmente com o grande irmão norte-americano, a “nação indispensável”, segundo a expressão da ex-secretária de Estado dos EUA Madeleine Albright. No entanto, acontece que, naquele exato momento, Barack Obama revelava sua nova doutrina de “giro” em direção à Ásia do Pacífico. Os Estados Unidos, atolados em seus problemas internos nascidos da crise econômica e financeira, tinham a necessidade de se voltar um pouco para si mesmos. Eles tinham, por isso, decidido exercer, a partir de então, sua liderança mundial “por trás” (leading from behind). Abandonando as tradições de sua diplomacia, a França, por sua vez, encabeçou a coalizão internacional antikadafista. Ela dirigiu as hostilidades “pela frente” e por procuração [ilegal, segundo a ONU] internacional.
Mas quem iria governar a Líbia pós-Kadafi? Quem saberia acalmar as tensões inter-regionais, intertribais e inter-religiosas que nasceriam indiscutivelmente do terrível confronto por vir? Como evitar o caos no interior e a desestabilização no exterior, principalmente no Sahel? Tais eram as questões essenciais que levantávamos no seio da União Africana.
A Resolução nº 1.973 contentava-se em exigir um cessar-fogo e em proibir todos os voos no espaço aéreo líbio, para proteger os civis. Ela excluía o emprego de um exército de ocupação. Sem utilizarem seu direito de veto, a Rússia e a China, por falta de respostas sobre os meios cogitados para colocar em ação essa resolução, optaram prudentemente pela abstenção (assim como a Alemanha, o Brasil e a Índia). A intervenção militar, com o recurso às forças especiais no solo, a ajuda aos rebeldes e os ataques aéreos contra as tropas e os centros de comando, constituiu assim, para essas duas potências, numa afronta e num desvio de procedimento. O objetivo nunca foi se livrar de Kadafi ou impor uma mudança de regime.
As ações ocidentais, julgadas ilegais e imorais por muitos [e pela ONU], provocaram inúmeras reações internacionais, como aquela, particularmente amarga, de Mbeki: “Pensávamos ter definitivamente colocado fim a quinhentos anos de escravidão, imperialismo, colonialismo e neocolonialismo. [...] Contudo, as potências ocidentais se arrogaram o direito de decidir o futuro da Líbia de maneira unilateral e desavergonhada”. Esse desabafo ilustrou um sentimento de humilhação amplamente compartilhado.
Para nós, evidentemente, o espectro da guerra civil, da divisão, da “somalização”, do terrorismo e do narcotráfico planava sobre a Líbia. Por que éramos os únicos a ver isso? Iríamos lutar ali pela defesa da democracia, pelo controle do petróleo, em função de sórdidas considerações eleitoreiras (Nicolas Sarkozy já estava em pré-campanha por sua reeleição no ano seguinte. [A ação contra Kadafi também seria uma queima de arquivo e "zeração" de dívida, pois Kadafi, segundo publicado na época, havia repassado (caixa 2) US$ 50 milhões para a campanha de Sarkozy] ou ainda por tudo isso junto? Não havia, nesse estágio, outros caminhos possíveis além dos bombardeios maciços?
A União Africana estava convencida de que havia. Foi por isso que ela optou por uma resposta mais política do que militar e concentrou seus esforços na elaboração de um “plano de ações” adotado em 10 de março. Esse documento comportava essencialmente três pontos: uma “cessação imediata das hostilidades”, seguida de um “diálogo”, o qual teria em vista uma “transição consensual” – quer dizer, excluindo a manutenção de Kadafi no poder –, sendo o objetivo principal a continuação da instauração de um “sistema democrático”. O Ocidente queria suprimir um homem; a União Africana pretendia mudar um sistema.
Como que para implodir esse plano, os bombardeios da OTAN começaram em 20 de março, no mesmo dia em que nos preparávamos para ir a Trípoli, depois a Bengasi, para tentar colocar em prática o plano de ações.
Em 19 de março, o comitê dos chefes de Estado mandado pela União Africana para persuadir os dois lados do conflito líbio a aceitar os termos de uma solução política, reuniu-se em Nouakchott, na Mauritânia, depois de um primeiro encontro em Adis-Abeba, na Etiópia, na sede da organização. No meio das deliberações, Ban Ki-moon, o secretário-geral da ONU, quis urgentemente falar comigo ao telefone. Ele estava participando naquele sábado, em Paris, de outro encontro internacional que reunia os dirigentes árabes, europeus e norte-americanos para “decidir e agir coletivamente sobre a aplicação da Resolução nº 1.973”. Os governos reunidos em Paris, ele avisou, o tinham encarregado expressamente de me pedir que dissuadisse nossos representantes de se dirigirem a Trípoli e Bengasi. Ele invocou uma razão clara: “As operações militares da OTAN vão começar hoje”. Um roteiro semelhante, visando marginalizar a ONU e as mediações da União Africana, aconteceu na Costa do Marfim, demonstrando que, para algumas potências, nenhuma autoridade é superior a elas.
Para nós, foi como recomeçar o jogo. No dia 10 de abril, os representantes da União Africana chegaram a Trípoli para encontrar Kadafi. No dia seguinte, em Bengasi, nossos carros foram cercados desde o aeroporto, e fomos vaiados até o hotel onde deveriam se realizar as negociações. Mustafa Abdeljalil, presidente do Conselho Nacional de Transição, e sua equipe começaram as discussões sob a pressão ininterrupta de uma multidão de manifestantes agressivos que gritaram até nossa partida. Resultado: Kadafi aceitou nossa proposta, mas a resposta do CNT foi negativa. Os pirômanos acabavam de ganhar dos bombeiros e o enfrentamento venceu a negociação.
Com o tempo, notar-se-á que a União Africana foi a única organização internacional que propôs uma saída política. Sem dúvida porque a África tinha vivido experiências análogas e conservava seus estigmas indeléveis. Que se lembre do drama que a Somália vive há mais de vinte anos, abandonada por todos, em seguida da desastrosa operação militar norte-americana “Restore Hope”, em 1993. Que se considere também o caos iraquiano e a desintegração atual desse Estado.
Na Líbia, como tínhamos previsto, o sonho europeu também se tornou um desastre. Os aparelhos de Estado implodiram, para o lucro dos senhores da guerra, dos clãs mafiosos e dos terroristas islâmicos. A pilhagem dos estoques de armas transformou esse país em um gigantesco arsenal a céu aberto. As fileiras de imigração clandestina multiplicaram-se – a ponto de a Líbia ter se tornado, para retomar a expressão de um antigo chefe das informações francês, “o Afeganistão próximo dos europeus”.
Nós advertimos o mundo inteiro: essa bomba-relógio acabaria explodindo na mão daqueles que a criaram, que não sabiam em que história estavam se metendo. A proposta africana que ninguém queria ouvir visava persuadir Kadafi a seguir o caminho do exílio – no estrangeiro, como Ben Ali, ou interno, como Mubarak. Ele deveria renunciar por conta própria ao que lhe restava de poder a fim de poupar seu povo das infelicidades e das humilhações de uma intervenção estrangeira, assim como dos tormentos de uma guerra civil cujo fim lhe seria fatal.
Nós procuramos imediatamente possíveis locais de acolhida. Para o exílio interno, propusemos Sebha, capital da região de Fezzan, próxima de países amigos da África negra – principalmente o Chade. Para o exílio no estrangeiro, a Turquia tinha declinado nossa oferta. A Venezuela tinha se oferecido, mas era muito delicado. O Egito também tinha sido contatado, mas os partidários de Kadafi haviam rejeitado essa proposta...
A diplomacia ainda é a arma principal da União Africana. Nossa lógica é a da “paz preventiva”, e não, como se tornou frequente no caso ocidental, a da “guerra preventiva”, desprovida de qualquer legitimidade. Por que não nos deixaram sequer uma chance de colocar em ação nosso plano, que Kadafi tinha aceitado?
Entre os outros agentes estratégicos figuravam os Estados árabes e sua organização regional. Contrariamente à União Africana, a Liga Árabe estava praticamente alinhada com a posição ocidental, o Catar se mostrando o mais bélico. Quanto ao próprio Kadafi, ele não podia entender que, num mundo que se tornou um vilarejo planetário, todos os povos aspiravam à liberdade, à dignidade e à justiça. Sua relação ao levante popular vinha de outro tempo: a repressão, somente a repressão.
Esse curioso personagem parecia, no entanto, estar no topo de sua glória. Ele tinha se tornado novamente frequentável e tinha as melhores relações com os poderosos deste mundo: basta pensar em sua estada em Paris no fim de 2007 e em sua célebre tenda beduína plantada a alguns passos da Champs-Elysées, ou ainda na viagem de Sarkozy a Trípoli em julho do mesmo ano; nas boas notas do Fundo Monetário Internacional, ou ainda nas excelentes relações do dirigente líbio com a Itália de Silvio Berlusconi. Kadafi colaborava inclusive com os serviços de informação norte-americanos, britânicos e franceses. E depois, todos os sonhos grandiosos do “Guia” se desmoronaram como um castelo de cartas, levados pelo “tsunami árabe”. Levanta-se com o mundo aos seus pés, vai se deitar com uma chuva de bombas sobre sua cabeça.
Em 20 de outubro de 2011, a aviação francesa interceptou o comboio do chefe líbio. Fugindo a pé, Kadafi foi notado, espancado horrivelmente por um grupo de insurgidos e finalmente morto. Descobrimos que a “guerra humanitária”, vestida com os "bons e nobres sentimentos" [sic] do novo princípio da “responsabilidade de proteger” – adotado pelas Nações Unidas em 2005 –, era apenas uma mistificação. Ela dissimulava uma política de poder clássica visando derrubar um regime e assassinar um chefe de Estado estrangeiro, tendo, dessa vez, o sinal verde da ONU" [desvirtuado].
[OBS: Em 2002, a União Africana (www.au.int) sucedeu à Organização da Unidade Africana (OUA), fundada em 1963. Ela agrupa os 54 países do continente, todos representados na Conferência dos Chefes de Estado, sua instância dirigente, enquanto a comissão é seu órgão executivo].
Em segundo lugar, intervinha a coalizão ocidental e seu braço armado, a OTAN, que fizeram uma irrupção, como justiceiros, nessa nova batalha. Eles pretendiam reagir ferozmente às ações de Kadafi e, como tinham feito com Saddam Hussein, eliminá-lo definitivamente. Mas, para se livrar de um único homem e interromper um massacre de civis, era preciso começar uma guerra punitiva dessa amplitude e cometer outro massacre de civis tão inocentes quanto os primeiros? Estavam brincando com fogo e já podiam prever o caos que, como na Somália, no Iraque, no Afeganistão e em outros lugares, resultaria disso.
O campo ocidental contava naturalmente com o grande irmão norte-americano, a “nação indispensável”, segundo a expressão da ex-secretária de Estado dos EUA Madeleine Albright. No entanto, acontece que, naquele exato momento, Barack Obama revelava sua nova doutrina de “giro” em direção à Ásia do Pacífico. Os Estados Unidos, atolados em seus problemas internos nascidos da crise econômica e financeira, tinham a necessidade de se voltar um pouco para si mesmos. Eles tinham, por isso, decidido exercer, a partir de então, sua liderança mundial “por trás” (leading from behind). Abandonando as tradições de sua diplomacia, a França, por sua vez, encabeçou a coalizão internacional antikadafista. Ela dirigiu as hostilidades “pela frente” e por procuração [ilegal, segundo a ONU] internacional.
Mas quem iria governar a Líbia pós-Kadafi? Quem saberia acalmar as tensões inter-regionais, intertribais e inter-religiosas que nasceriam indiscutivelmente do terrível confronto por vir? Como evitar o caos no interior e a desestabilização no exterior, principalmente no Sahel? Tais eram as questões essenciais que levantávamos no seio da União Africana.
A Resolução nº 1.973 contentava-se em exigir um cessar-fogo e em proibir todos os voos no espaço aéreo líbio, para proteger os civis. Ela excluía o emprego de um exército de ocupação. Sem utilizarem seu direito de veto, a Rússia e a China, por falta de respostas sobre os meios cogitados para colocar em ação essa resolução, optaram prudentemente pela abstenção (assim como a Alemanha, o Brasil e a Índia). A intervenção militar, com o recurso às forças especiais no solo, a ajuda aos rebeldes e os ataques aéreos contra as tropas e os centros de comando, constituiu assim, para essas duas potências, numa afronta e num desvio de procedimento. O objetivo nunca foi se livrar de Kadafi ou impor uma mudança de regime.
As ações ocidentais, julgadas ilegais e imorais por muitos [e pela ONU], provocaram inúmeras reações internacionais, como aquela, particularmente amarga, de Mbeki: “Pensávamos ter definitivamente colocado fim a quinhentos anos de escravidão, imperialismo, colonialismo e neocolonialismo. [...] Contudo, as potências ocidentais se arrogaram o direito de decidir o futuro da Líbia de maneira unilateral e desavergonhada”. Esse desabafo ilustrou um sentimento de humilhação amplamente compartilhado.
Para nós, evidentemente, o espectro da guerra civil, da divisão, da “somalização”, do terrorismo e do narcotráfico planava sobre a Líbia. Por que éramos os únicos a ver isso? Iríamos lutar ali pela defesa da democracia, pelo controle do petróleo, em função de sórdidas considerações eleitoreiras (Nicolas Sarkozy já estava em pré-campanha por sua reeleição no ano seguinte. [A ação contra Kadafi também seria uma queima de arquivo e "zeração" de dívida, pois Kadafi, segundo publicado na época, havia repassado (caixa 2) US$ 50 milhões para a campanha de Sarkozy] ou ainda por tudo isso junto? Não havia, nesse estágio, outros caminhos possíveis além dos bombardeios maciços?
A União Africana estava convencida de que havia. Foi por isso que ela optou por uma resposta mais política do que militar e concentrou seus esforços na elaboração de um “plano de ações” adotado em 10 de março. Esse documento comportava essencialmente três pontos: uma “cessação imediata das hostilidades”, seguida de um “diálogo”, o qual teria em vista uma “transição consensual” – quer dizer, excluindo a manutenção de Kadafi no poder –, sendo o objetivo principal a continuação da instauração de um “sistema democrático”. O Ocidente queria suprimir um homem; a União Africana pretendia mudar um sistema.
Como que para implodir esse plano, os bombardeios da OTAN começaram em 20 de março, no mesmo dia em que nos preparávamos para ir a Trípoli, depois a Bengasi, para tentar colocar em prática o plano de ações.
Em 19 de março, o comitê dos chefes de Estado mandado pela União Africana para persuadir os dois lados do conflito líbio a aceitar os termos de uma solução política, reuniu-se em Nouakchott, na Mauritânia, depois de um primeiro encontro em Adis-Abeba, na Etiópia, na sede da organização. No meio das deliberações, Ban Ki-moon, o secretário-geral da ONU, quis urgentemente falar comigo ao telefone. Ele estava participando naquele sábado, em Paris, de outro encontro internacional que reunia os dirigentes árabes, europeus e norte-americanos para “decidir e agir coletivamente sobre a aplicação da Resolução nº 1.973”. Os governos reunidos em Paris, ele avisou, o tinham encarregado expressamente de me pedir que dissuadisse nossos representantes de se dirigirem a Trípoli e Bengasi. Ele invocou uma razão clara: “As operações militares da OTAN vão começar hoje”. Um roteiro semelhante, visando marginalizar a ONU e as mediações da União Africana, aconteceu na Costa do Marfim, demonstrando que, para algumas potências, nenhuma autoridade é superior a elas.
Para nós, foi como recomeçar o jogo. No dia 10 de abril, os representantes da União Africana chegaram a Trípoli para encontrar Kadafi. No dia seguinte, em Bengasi, nossos carros foram cercados desde o aeroporto, e fomos vaiados até o hotel onde deveriam se realizar as negociações. Mustafa Abdeljalil, presidente do Conselho Nacional de Transição, e sua equipe começaram as discussões sob a pressão ininterrupta de uma multidão de manifestantes agressivos que gritaram até nossa partida. Resultado: Kadafi aceitou nossa proposta, mas a resposta do CNT foi negativa. Os pirômanos acabavam de ganhar dos bombeiros e o enfrentamento venceu a negociação.
Com o tempo, notar-se-á que a União Africana foi a única organização internacional que propôs uma saída política. Sem dúvida porque a África tinha vivido experiências análogas e conservava seus estigmas indeléveis. Que se lembre do drama que a Somália vive há mais de vinte anos, abandonada por todos, em seguida da desastrosa operação militar norte-americana “Restore Hope”, em 1993. Que se considere também o caos iraquiano e a desintegração atual desse Estado.
Na Líbia, como tínhamos previsto, o sonho europeu também se tornou um desastre. Os aparelhos de Estado implodiram, para o lucro dos senhores da guerra, dos clãs mafiosos e dos terroristas islâmicos. A pilhagem dos estoques de armas transformou esse país em um gigantesco arsenal a céu aberto. As fileiras de imigração clandestina multiplicaram-se – a ponto de a Líbia ter se tornado, para retomar a expressão de um antigo chefe das informações francês, “o Afeganistão próximo dos europeus”.
Nós advertimos o mundo inteiro: essa bomba-relógio acabaria explodindo na mão daqueles que a criaram, que não sabiam em que história estavam se metendo. A proposta africana que ninguém queria ouvir visava persuadir Kadafi a seguir o caminho do exílio – no estrangeiro, como Ben Ali, ou interno, como Mubarak. Ele deveria renunciar por conta própria ao que lhe restava de poder a fim de poupar seu povo das infelicidades e das humilhações de uma intervenção estrangeira, assim como dos tormentos de uma guerra civil cujo fim lhe seria fatal.
Nós procuramos imediatamente possíveis locais de acolhida. Para o exílio interno, propusemos Sebha, capital da região de Fezzan, próxima de países amigos da África negra – principalmente o Chade. Para o exílio no estrangeiro, a Turquia tinha declinado nossa oferta. A Venezuela tinha se oferecido, mas era muito delicado. O Egito também tinha sido contatado, mas os partidários de Kadafi haviam rejeitado essa proposta...
A diplomacia ainda é a arma principal da União Africana. Nossa lógica é a da “paz preventiva”, e não, como se tornou frequente no caso ocidental, a da “guerra preventiva”, desprovida de qualquer legitimidade. Por que não nos deixaram sequer uma chance de colocar em ação nosso plano, que Kadafi tinha aceitado?
Entre os outros agentes estratégicos figuravam os Estados árabes e sua organização regional. Contrariamente à União Africana, a Liga Árabe estava praticamente alinhada com a posição ocidental, o Catar se mostrando o mais bélico. Quanto ao próprio Kadafi, ele não podia entender que, num mundo que se tornou um vilarejo planetário, todos os povos aspiravam à liberdade, à dignidade e à justiça. Sua relação ao levante popular vinha de outro tempo: a repressão, somente a repressão.
Esse curioso personagem parecia, no entanto, estar no topo de sua glória. Ele tinha se tornado novamente frequentável e tinha as melhores relações com os poderosos deste mundo: basta pensar em sua estada em Paris no fim de 2007 e em sua célebre tenda beduína plantada a alguns passos da Champs-Elysées, ou ainda na viagem de Sarkozy a Trípoli em julho do mesmo ano; nas boas notas do Fundo Monetário Internacional, ou ainda nas excelentes relações do dirigente líbio com a Itália de Silvio Berlusconi. Kadafi colaborava inclusive com os serviços de informação norte-americanos, britânicos e franceses. E depois, todos os sonhos grandiosos do “Guia” se desmoronaram como um castelo de cartas, levados pelo “tsunami árabe”. Levanta-se com o mundo aos seus pés, vai se deitar com uma chuva de bombas sobre sua cabeça.
Em 20 de outubro de 2011, a aviação francesa interceptou o comboio do chefe líbio. Fugindo a pé, Kadafi foi notado, espancado horrivelmente por um grupo de insurgidos e finalmente morto. Descobrimos que a “guerra humanitária”, vestida com os "bons e nobres sentimentos" [sic] do novo princípio da “responsabilidade de proteger” – adotado pelas Nações Unidas em 2005 –, era apenas uma mistificação. Ela dissimulava uma política de poder clássica visando derrubar um regime e assassinar um chefe de Estado estrangeiro, tendo, dessa vez, o sinal verde da ONU" [desvirtuado].
[OBS: Em 2002, a União Africana (www.au.int) sucedeu à Organização da Unidade Africana (OUA), fundada em 1963. Ela agrupa os 54 países do continente, todos representados na Conferência dos Chefes de Estado, sua instância dirigente, enquanto a comissão é seu órgão executivo].
FONTE: escrito por Jean Paul Hébert no francês "Le Monde Diplomatique" (http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1722). [Trechos entre colchetes acrescentados por este blog 'democracia&política'].
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